1 UNIVERSIDADE DE CAXIAS DO SUL PRÓ-REITORIA DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS, CULTURA E REGIONALIDADE ANTONIO IRAILDO ALVES DE BRITO POÉTICA SERTANEJA: ASPECTOS DO SAGRADO EM PATATIVA DO ASSARÉ Caxias do Sul 2009 2 3 ANTONIO IRAILDO ALVES DE BRITO POÉTICA SERTANEJA: ASPECTOS DO SAGRADO EM PATATIVA DO ASSARÉ Dissertação apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Letras, Cultura e Regionalidade da Universidade de Caxias do Sul, para a obtenção do título de Mestre. Orientador: Prof. Dr. Jayme Paviani Caxias do Sul 2009 4 AGRADECIMENTOS A Deus, autor da poesia, pela vida. À minha família, com especial carinho aos meus pais Antônio e Mirian porque me acolheram no mundo, me amam e me ensinam a poesia do existir. A Jayme Paviani pela presteza e sensibilidade na orientação deste trabalho. À Pia Sociedade de São Paulo, particularmente a Valdecir Conte que me apoiou desde o início. A Abramo Parmeggiani e a Mário Pizetta, por compreenderem meu empenho. A Zolferino Tonon, pelo apoio, confiança e companheirismo. A Nilo Luza, pela a amizade e presença. Aos irmãos de caminhada: Augusto, Carlos Alberto e Jakson, pela torcida e os contatos durante este período. À Ana Maria de Oliveira Galvão, da UFMG, pela conversa e ajuda no pré-projeto A Gilmar de Carvalho, da UFC, pela primeira dica por e-mail. À Branca Sólio, ao Paulo Ribeiro, e ao Álvaro Benevenuto Jr., da UCS, meus professores no jornalismo, porque me indicaram horizontes para este texto ainda na graduação. À coordenação do Mestrado em Letras, Cultura e Regionalidade, pela acolhida e tratamento dispensados. Aos professores do mestrado, particularmente à Luciana Murari, pela atenção e sugestões Aos colegas e amigos, especialmente Adri, Aline, Carol, Júlia, Raquel e Dângelo, pela partilha do saber e da amizade. A todos que, de um modo ou de outro, estiveram ao meu lado, obrigado! 5 DEDICATÓRIA Aos meus pais Antônio e Mirian, Homem agricultor e filósofo por natureza, na escrita nem o nome aprendeu assinar. Mulher artista, oleira na arte e na vida, nas letras apenas o nome sabe rabiscar. Os dois são mestres na poesia e na lida, e na fé classificados em primeiro lugar. 6 EPÍGRAFE “O RIO” Ser como o rio que deflui silencioso dentro da noite. Não temer as trevas da noite. Se há estrelas no céu, refleti-las e se os céus se pejam de nuvens, como o rio as nuvens são água, refleti-las também sem mágoa nas profundidades tranquilas. (Manuel Bandeira. Estrela da vida inteira, p.229). 7 RESUMO Trata-se de um estudo sobre a poética de Patativa do Assaré (Antônio Gonçalves da Silva). O viés se refere às “marcas” do sagrado em sua obra. A abordagem tem como ponto de partida a oralidade, tendo em vista que a poesia em questão é essencialmente oral. Em seguida, faz-se um perfil do poeta destacando aspectos considerados relevantes em sua trajetória. Segue-se a apresentação de suas principais obras, antes “armazenadas” na mente e no coração do vate, agora convergindo para a letra no papel, bem como para outras mediações, por exemplo, na música, no cinema, no teatro, na internet. Finalmente, discorre-se sobre os aspectos do sagrado, considerando o corpus de poemas escolhido. A pesquisa tem caráter interdisciplinar, entre outras contribuições, ela se apoia na teoria literária, na filosofia, na sociologia da religião e na teologia. Palavras-chave: Patativa do Assaré, oralidade, cordel, poética, sagrado, mito. 8 ABSTRACT This study deals with the Patativa do Assaré’s poetics (Antônio Gonçalves da Silva). The bias refers to the "marks" of the sacred in his work. The approach takes as its starting point the orality, having in view that the poetry at issue is essentially oral. Afterwards, one makes a profile of the poet highlighting important aspects considered in his trajectory. Then, there follows the presentation of his major works, before "stored" in the bard’s mind and heart, now converging to the letter on paper, as well as to other mediations, for example, in music, film, theater, on the Internet . Finally, one talks about the aspects of the sacred, considering the chosen corpus of poems. The research has an interdisciplinary character, among other contributions, it is based on literary theory, philosophy, sociology of religion and theology. Keywords: Patativa do Assaré, orality, poetics, sacred, mith. 9 SUMÁRIO AGRADECIMENTOS………………………………………………………………………... I DEDICATÓRIA……………………………………………………………………………….II EPÍGRAFE……………………………………………………………………………………III RESUMO……………………………………………………………………………………..IV ABSTRACT…………………………………………………………………………………...V SUMÁRIO…………………………………………………………………………………... VI INTRODUÇÃO........................................................................................................................10 CAPÍTULO I: A VOZ COMO POTÊNCIA CRIADORA.......................................................17 1.1. No princípio era a voz .......................................................................................................17 1.2. A letra como remédio.........................................................................................................22 1.3. Índice de oralidade.............................................................................................................26 1.4. Vozes d’além-mar..............................................................................................................28 1.4.1. A Cantoria.......................................................................................................................30 1.4.2. O Cordel..........................................................................................................................35 1.4.2.1. Ciclos temáticos...........................................................................................................39 CAPÍTULO II: PATATATIVA DO ASSARÉ OU FRAGMENTOS DE UMA VIDA..........42 2.1. Poeta sertanejo...................................................................................................................43 2.1.1. Poesia híbrida..................................................................................................................47 2.1.2. O nome de pássaro..........................................................................................................51 2.3. Letras livres........................................................................................................................53 2.3.1. Entre o “dom” e os livros................................................................................................54 2.3.2. A predileção de Patativa.................................................................................................57 2.4. Defesa das tradições...........................................................................................................60 2.5. Voz profética do sertão......................................................................................................62 2.5.1. Artesão da linguagem......................................................................................................64 2.6. O último vôo......................................................................................................................66 10 CAPÍTULO III: A VOZ NA LETRA ......................................................................................70 3.1. A verdade nas folhas .........................................................................................................71 3.2. O retrato do sertão..............................................................................................................75 3.3. Outros mundos...................................................................................................................78 3.4. Sobre destino e liberdade...................................................................................................83 3.5. O sertão e a cidade.............................................................................................................86 3.6. Em nome da poesia............................................................................................................88 CAPÍTULO IV: A INSTÂNCIA DO SAGRADO...................................................................93 4.1. Experiência do sagrado......................................................................................................94 4.2. Elementos do sagrado........................................................................................................96 4.3. Manifestação do sagrado..................................................................................................100 4.4. Marcas do sagrado em Patativa........................................................................................105 4.4.1. Apresentando os poemas...............................................................................................106 4.4.2. Enredos: teia de significado..........................................................................................108 4.4.2.1. Filosofia de um trovador sertanejo.............................................................................108 4.4.2.2. A menina e a cajazeira...............................................................................................115 4.4.2.3. Uma do diabo.............................................................................................................120 4.4.2.4. O caçador...................................................................................................................126 4.5. O mito e a convergência de sentidos................................................................................130 CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................................135 REFERÊNCIAS......................................................................................................................140 ANEXOS................................................................................................................................147 11 INTRODUÇÃO “Eu sei, por experiência, Pois desde a minha inocência, Nesta estrada, a Providência Dirigiu os passos meus. A vida vivo gozando, Sempre amando e admirando As maravilhas de Deus.”1 Patativa do Assaré. Não só popular, não só erudito. Os dois imbricados. Num primeiro contato parecia bem mais cômodo simplesmente enquadrá-lo numa categoria e ponto. Mas, percebeu-se que sua obra extrapola os rótulos rígidos, as dicotomias abissais. Uma palavra se impôs e ela só bastaria: poeta. Poeta que no princípio fora violeiro, repentista, cordelista. E ao longo da vida foi isso tudo junto. Expressões essas oriundas de um saber ancestral que lhe legaram a forma primordial da linguagem: a fala. Sua poesia é voz, um eco herdado dos tempos originais. A audição pela primeira vez da declamação de um cordel abriu-lhe os ouvidos e despertou-lhe a vontade de beleza: poderia explicar o mundo por meio da palavra poetizada. A revelação do belo lhe veio pelos ouvidos. A partir de então nada o detinha na busca por saciar a fome de poesia. Daí seus versos fartos, vertidos como que de água limpa de cacimba, nas fontes oásicas do sertão. Envolto no universo da oralidade, desde muito cedo sentiu-se vocacionado a porta- voz, mediador da palavra. Mensageiro oracular. Recadeiro do “deus”. De modo que muito além de mero artefato estilístico, pode-se pensar o poeta do Assaré como Hermes grego, um intérprete, veículo da mensagem. É qual Homero ou um profeta bíblico, intermediário e agente divino. O encargo é o mesmo: portador da linguagem. Assim, este trabalho objetiva averiguar, identificar e interpretar aspectos do sagrado presentes na sua poética: o que é o sagrado em Patativa do Assaré? O interesse da pergunta é apreender o significado humano, vivo e implícito no poema, revelador da “visão do mundo” do poeta, como guardião do imaginário coletivo. Ele tem o papel de criador, de intérprete e de anunciador de uma mensagem. Isso Patativa parece fazer, movido por uma “força superior”. Para ele há uma sacralidade que move o mundo: 1 ASSARÉ, Patativa. Melhores poemas, p. 309. 12 Quando canta o sabiá sem nunca ter tido estudo eu vejo que Deus está por dentro daquilo tudo aquele pássaro amado no seu gorjeio sagrado nunca uma nota falhou na sua canção amena só canta o que Deus ordena só diz o que mandou.2 Referindo-se ao sabiá, é como se o poeta se referisse a si próprio. Sabe-se que ele não passara mais que seis meses frequentando a escola oficial. Adquiriu o saber como autodidata, em um esforço contínuo por entender o mundo a sua volta e satisfazer a curiosidade. Percebe-se que o eu-poético fica muito à vontade para revelar a fonte na qual se iniciou na arte da poesia. Seu mestre foi um só, Deus: Neste globo terrestre apresento os versos meus porém eu só tive um mestre e esse mestre é Deus.3 Tendo o sagrado como “pano de fundo”, ele se utiliza de matrizes míticas clássicas e construções da capacidade imaginativa humana, de domínio público, para compor o seu quadro próprio, usando artefatos e criatividade na preparação e proclamação do discurso: traduz, interpreta e presentifica os mitos por meio da voz, com os elementos constitutivos da performance. Por isso, notou-se que para fruir da poesia patativana exige-se imaginar uma voz, seus tons e o corpo todo do poeta em ato gestual. Nesse sentido, optou-se pelo método analítico interpretativo, por meio do qual se pode “dissecar” o quanto possível os elementos exteriores e interiores do poema.4 Por exemplo, contextualização, intertextualidade, cenário, rima, ritmo, estrofação, vocabulário, símbolos regionais e universais e outros. Porém, o interesse em questão não é tanto pela forma, mas pelo conteúdo. De modo que, não se procura somente dissecar analiticamente as estruturas em separado, mas também e, sobretudo, apreender sua “teia de significação" com o “mundo da vida”, o vivido. O procedimento vai ao encontro das observações de Ezra Pound5 a respeito do método mais adequado para o estudo da poesia e da literatura. Ele sugere um “exame cuidadoso e direto da matéria e contínua comparação de um espécime com outra.” Convém mencionar o episódio do estudante de pós-graduação e Agassiz, professor de História Natural. 2 ASSARÉ, Patativa do. Digo e não peço segredo, p. 18. 3 Idem, 17. 4 Cf. CÂNDIDO, Antônio. Na sala de Aula, pp. 69-70. 5 POUND, Ezra. ABC da literatura, pp. 23-24. 13 Diz-se que certo dia o estudante pós-graduado, coberto de honrarias e diplomas foi ter com o mestre a fim de receber os ótimos e últimos retoques em seu trabalho. No entanto, ficou surpreendido: o professor deu-lhe um pequeno peixe e pediu-lhe para o descrever. Pasmo ante a simplicidade da tarefa, responde: “Mas este é apenas um peixe-lua.” Ao que o naturalista retruca: “Eu sei. Descreva-o por escrito”. Passados alguns minutos, o estudante volta com a descrição Ichtus Heliodiplodokus (ou qualquer outro elucidário, desses de manuais sobre o assunto, fora do conhecimento vulgar: família dos Ichtus Heliodiplodokus etc.) Agassiz pede ao estudante para que descreva de novo o peixe. O jovem obedece e ao regressar traz um ensaio de quatro páginas sobre o assunto. Então o professor diz-lhe: “Olhe para o peixe”. Passadas três semanas, o peixe estava em adiantado estado de decomposição. Porém, a esta altura o estudante sabia alguma coisa sobre ele. Assim, metaforicamente a poética de Patativa se nos apresenta como o “peixe de Agassiz”. A tarefa é ir além do que já dizem os manuais, as terminologias estanques, e descobrir algo “novo” em sua obra. Parte-se obviamente do texto, porém considera-se que ele é essencialmente voz. De forma tal que se faz necessário um aguçamento da capacidade intuitiva e imaginativa, como já mencionado, para pensar inclusive sobre os possíveis gestos de uma dicção. É a busca por perceber o “índice de oralidade” subjacente ao texto. Como base para a análise e interpretação do corpus consideram-se os pressupostos conceituais a respeito do sagrado. A abordagem parte sobretudo da concepção de Rudolf Otto a respeito do tema. Sua perspectiva objetiva clarificar o caráter específico da experiência do sagrado a partir dos elementos não-racional e racional. Outro teórico a que se recorre é Mircea Eliade, que por sua vez situa o assunto numa perspectiva histórica: o fenômeno é tratado em sua totalidade e de um modo que o sagrado se opõe ao profano. Nesse sentido, o homem só tem acesso ao sagrado porque este se manifesta. Aliados a esses, outros comentadores contribuem para o suporte teórico. Procura-se, nesse sentido, na totalidade do trabalho, “entrelaçar” teoria e poemas, de modo que, concomitantemente ao processo analítico interpretativo, compõe-se uma peça única. Vale dizer que religião aqui se pretende no sentido aberto de fé, ou seja, não institucionalizada. Embora se possa perceber que a visão do mundo do poeta é a partir do catolicismo, carrega em si marcas de uma “fé autônoma”, um tipo de catolicismo marginal, ou, dito em outros termos, religiosidade popular. Em suma, o que está em questão é averiguar os elementos do sagrado que caracterizam o homem religioso, na linguagem, nas personagens e na pluralidade de sentidos sugeridos pelos poemas. 14 Para chegar a esse ponto, o primeiro capítulo se ocupa de evidenciar o papel da oralidade. Parte-se de uma breve panorâmica da antiguidade grega, onde a palavra falada ocupava lugar especial e o poeta era personagem principal da cena social, cultural, religiosa. Era um arquivo vivo. De forma que, mesmo quando a letra já ascendia havia certa desconfiança quanto à validade e eficiência do discurso escrito. Grandes obras antigas, como Ilíada e Odisséia, foram compostas para serem ditas em voz alta e serem ouvidas. Um exemplo citado de oposição à escrita é Platão. Para ele a escrita seria incapaz de se igualar à expressividade da voz. A abordagem, porém, não faz uma apologia inocente da oralidade em detrimento da escrita. Sabe-se que na contemporaneidade quem não domina os códigos gráficos, isto é, quem é analfabeto, é excluído. E depois, num país como o nosso em que a chaga do analfabetismo ainda não foi totalmente cicatrizada e o sistema de ensino ainda é tão ineficaz, pode soar sem sentido o discurso no que se refere à valorização do conhecimento espontâneo, nesse caso a oralidade, conseguido apenas com a boa vontade e resistência do povo. E por outro lado a omissão dos governos, que ao longo da história deixaram multidões à margem, sem o acesso aos meios necessários para o domínio da letra. Certamente que não se deseja recuar no tempo para uma transmissão comunicacional puramente oral. O que se problematiza é o modo absoluto, construído ao longo da história, de ver o mundo apenas pela ótica letrada. Ao invés da conjugação dos saberes, preferiram-se as divisões extremadas entre ambos. O saber proveniente da oralidade é tão importante quanto o da escrita, e não impede uma atividade intelectual complexa. Aliás, a voz constitui um saber primordial. Nesse sentido, observa-se a primazia da oralidade e sua “onipresença” no texto: a voz subjaz na escrita, o que Zumthor (1993) denomina de “índice de oralidade”. Exemplo é a Idade Média, que a história nos apresenta como um vasto espaço de tempo; apresenta-se como uma época também regida pela voz. De lá nos vieram as “vozes d’além-mar” com o colonizador, que trouxe na bagagem, no coração e na garganta um eco vocal europeu. Desse eco se formou, aqui no Brasil, uma cultura marcada pela oralidade. Destacam-se neste estudo a cantoria e o cordel, expressões orais, fontes nas quais Patativa “bebeu”. Dessa forma, no segundo capítulo entra em cena Patativa do Assaré. Trata-se de abordar alguns aspectos da sua trajetória, ou, como se optou chamar, fragmentos de vida. Não há a pretensão de um discurso linear. Interessa apresentar o poeta e certos elementos marcantes para a composição da poética. Descreve-se sua origem sertaneja, agricultor-poeta, homem ligado à terra, “pé no chão” e ouvidos atentos ao “poder do onipotente.” Como poeta 15 e profeta, homem da palavra e do gesto, proclama de viva voz a beleza e os dramas do sertão, e denuncia o luxo das elites opressoras. Luxo fruto da miséria. É voz profética que clama por justiça. Justiça, por assim dizer, baseada num cristianismo primitivo, onde se dividiam os bens da terra e ninguém passava necessidade. Utopia e realidade declamando o porvir. Percebe-se que tudo em volta do poeta podia ser traduzido em verso. Nem mesmo o cansaço e o suor do trabalho duro no roçado lhe impediam de ouvir a voz da “musa”: compunha de cabeça, sem a necessidade de retoques no papel. Quem sabe essa capacidade de criar tenha sido resultado de sua busca incessante, não somente por conhecimento, no sentido puramente racional, mas por sabedoria e sentidos. Embevecido pelo poder da palavra, o que se nota é que não lhe faltava inspiração e capacidade criativa: pra toda parte que eu óio / vejo um verso se bulí. Verso que podia dizer, proclamar tanto na linguagem “cabloca” como na linguagem “erudita”, nos moldes do cordel ou em soneto clássico. Poesia é um dom da natureza Que nos enche de graça e de alegria Mesmo o tema tratando de ironia, De revolta, de choro de tristeza. Foi Olavo Bilac com certeza, Com o Guima na sua companhia Nos mostrando a maior filosofia Versejando com muita realeza. 6 (...) Dizia-se possuidor de um “dom natural”, nem por isso se descuidou do aperfeiçoamento de sua lira, bebendo também na fonte dos poetas “letrados” e aprendendo com eles. O resultado disso é a diversidade de poemas compostos na forma camoniana e em outros moldes da poesia chamada erudita, dependendo da audiência. Mas resulta, sobretudo, numa obra que prima pela variedade linguística de sua gente “cabloca”. Impressiona a capacidade do poeta em convergir. Converge também para o escrito. Não porque sentisse necessidade para tal, a voz parecia lhe bastar. Mas como poeta livre devia saber que a poesia pode ser veiculada nos mais variados meios e modos. Através da escrita, sua obra registrada no papel ficaria acessível às gerações que não puderam acompanhá-lo em viva voz, em ato performático. É desse processo de convergência de voz para a letra que se discorre no terceiro capítulo. Faz-se o caminho de sua voz ditada para tornar-se letra em livro. Mas não somente em livro; em outras mediações igualmente, por exemplo, no cinema, na música, nas artes plásticas, na internet, no estudo de sua obra nas universidades, e tradução para outras línguas. 6 ASSARÉ, Patativa do. Melhores poemas, p. 208. 16 No quarto capítulo trata-se do interesse central da pesquisa: a faceta do sagrado, sobre a qual o poeta expressa sua visão do mundo, narrando mito e fé. Para isso o corpus selecionado contempla quatro poemas, nos quais se procura analisar e interpretar os aspectos característicos de uma obra marcada pelo “sobrenatural”. Sobrenatural entendido como a capacidade de imaginação religiosa do homem, por meio da qual ele enfrenta o sagrado como uma realidade imensamente poderosa, misteriosa, temerosa, e pauta a vida com esses significados. Haveria uma áurea sagrada preenchendo os espaços de vida e o significado que o homem do sertão de Patativa lhe confere. Algo distinto do mundo puramente humano, mas terreno do profano também, que sofre interferência do sagrado. Isso se observa em Filosofia de um trovador sertanejo, no qual é narrado o mito da criação judaico-cristã. O poeta se personifica num cantador popular, que muito lembra um menestrel medieval. Atendendo a uma solicitação de um certo dotô, ele verseja acompanhado de sua viola sobre um tema contado e recontado na cultura cristã ocidental: a figura bíblica do primeiro homem e da primeira mulher, opinando sobre a origem do mal no mundo, com ênfase para a questão da morte e o destino da humanidade. No poema A menina e a cajazeira há como que a busca de um elo originário perdido. Considera-se uma reflexão existencial acerca da vida humana e da natureza. Tudo movido por uma força de outro mundo. Percebe-se na composição certa sensação de angústia e tristeza: o destino de todos os seres estaria traçado, portanto ninguém escaparia dele. A explicação dos descaminhos humanos se daria por um evento primordial: a culpa de Adão e Eva. A composição Uma do diabo narra as proezas de um sujeito de nome Mané Gibão, afamado no sertão por sua coragem; de tão corajoso, não cria em nada nas coisas do “outro mundo”. Mas um dia teve de deparar-se com o “capeta”. Os versos com algumas “doses” de humor sugerem um universo regido por algo além deste mundo, no qual se evidencia o imaginário a respeito da figura do diabo e o poder intermediário dos santos. Já em O caçador, junto à presença do mito, especialmente a figura da Caipora, desenrola-se uma crítica social incisiva ao que se refere à questão do latifúndio. Problema esse escravizador do sertanejo. Há nessa composição, por assim dizer, um artefato sobrenatural que sai da boca do caçador e culmina com seu posicionamento crítico e consciente a respeito do sistema que o oprime. O caçador teme e respeita os sinais sobrenaturais; guiado por eles até evita fazer suas caçadas. Porém o problema da terra mal repartida se explica pelas artimanhas do homem. E ele não está alienado disso. Sua visão 17 mítica da vida não é álibi para se deixar dominar pelos poderosos da terra. Ele teme, sim, o poder dos céus e os mistérios da mata. Mas as tramas injustas ele enfrenta com astúcia. Nesse sentido, constata-se uma poética que se utiliza do imaginário do homem do sertão, não para fazer caricaturas ou chacotas desse, mas para valorizar os símbolos constitutivos de sua identidade. Daí uma das relevâncias – literária, social e cultural – do estudo da obra de Patativa. É possível dizer que ele parece ser verdadeiro porta-voz e representante do homem simples, de seu povo, da beleza e do valor da cultura. Não é preciso muito esforço para perceber isso. Bastaria um olhar rápido em suas composições. Esta abordagem quer ser um pouco desse esforço. 18 CAPÍTULO I: A VOZ COMO POTÊNCIA CRIADORA A voz de Iahweh sobre as águas, O Deus glorioso troveja, Iahweh sobre as águas torrenciais. A voz de Iahweh com a força, A voz de Iahweh no esplendor! 7 “No princípio, Deus criou o céu e a terra. Ora, a terra estava vazia e vaga, e as trevas cobriam o abismo, e um sopro de Deus agitava a superfície das águas. Deus disse: ‘Haja luz’, e houve luz.”8 O poema bíblico referido evidencia a voz divina como que ecoando no vazio da terra e ordenando que “haja luz” e dissipe a escuridão. O poeta põe na boca de Deus uma voz potente, capaz de ordenar o caos. É, pois, um acontecimento primordial, no qual, segundo o autor, o “Ser Supremo” age através de uma ação vocal. É desse modo que se inicia agora o estudo da poética de Patativa do Assaré, que impreterivelmente passa pela voz e nela tem seu lugar essencial. Nesse sentido, diz-se que o poeta está inserido na tradição oral. Nesta abordagem ele é posto como um “agente poético” que atualiza a tradição dos cantadores, na mesma linhagem do grego Homero, dos bardos celtas, dos profetas bíblicos e outros. Usando uma expressão de Zumthor, referindo-se aos intérpretes medievais, o poeta em questão seria “o eco de um tempo poético muito vivo desde a baixa Antiguidade”.9 Isso para dizer que Patativa tem por trás de si uma fila, ou melhor, uma tradição de poetas cantadores que fizeram de sua voz e de seu corpo a expressão da palavra e do gesto. 1.1. No princípio era a voz Partindo do mito bíblico que dá à voz um lugar especial no ato criador divino, refere-se agora à baixa Antiguidade, isto é, à Antiga Grécia (séculos XII-VIII a.C.). Nesse período a voz exercia o papel principal na cena social e cultural. De modo que, mesmo quando a escrita já existia ocupava tão-somente a função de coadjuvante, porque era um tempo regido pela voz, e os poetas constituíam figuras centrais na transmissão de valores, ou, no dizer de Vernant,10 eles eram ali os arquivos de uma sociedade que nasceu sem escrita. 7 Bíblia de Jerusalém, Salmo 29,3-4. 8 Ibid., Gênesis 1,1-3. 9 ZUMTHOR, Paul. A letra e a voz, p. 73. 10 Cf. VERNANT, J. P., Mito e Pensamento entre os gregos, 76. 19 Nesse ambiente de oralidade, o verso era o meio de se preservar qualquer texto até que obras em prosa começassem a ser escritas, o que só vai ocorrer por volta do final do século VI a.C.11 O verso era, portanto, o modo de guardar a memória coletiva, e o responsável direto por isso era o poeta. Havelock informa que, na Grécia sem escrita, e nas culturas pré-gregas onde só peritos-letrados dominavam a escrita, as condições de preservação eram mnemônicas, envolvendo o uso de ritmo verbal e musical, pois cada pronunciamento tinha de ser lembrado e repetido.12 Assim, se é verdade que a civilização grega legou uma herança cultural para o Ocidente, deve-se, em boa parte, a pessoas “iletradas”,13 os poetas não escreviam. Isso poderia soar estranho aos ouvidos e até turvar os olhos acostumados a enxergar o mundo do ponto de vista estritamente letrado. No entanto parece certo que assim foi. Desse modo, ao se fazer referência à Antiguidade Grega – invenções, mitos, poetas, filósofos – o papel da voz não poderia passar despercebido. Até porque, olhar o passado é também uma forma de evitar conclusões equivocadas a respeito das expressões orais de nosso tempo, por vezes ignoradas, ou tratadas com preconceito e discriminação. E, no entanto, elas podem carregar em si uma riqueza cultural incomensurável e uma sofisticação intelectual que só tem a somar com o “mundo letrado”. Nessa perspectiva, Havelock defende que obras como a Ilíada e a Odisséia podem refletir o começo de uma relação de complementaridade, “uma tensão dinâmica” entre o oral e o escrito.14 Não obstante sua óbvia sofisticação, os poemas seguem regras formulares, características da composição oral, rítmica, “poetizada”. Usa-se a expressão “poetizada”, justamente porque os termos “poético” e “poesia” equivalem a “letrado”, portanto “arte escrita.” Isso para dizer que, sendo a obra de Homero considerada fundante da literatura ocidental, ela foi antes de tudo um acontecimento oral. Cita-se nesse sentido um trecho da Odisséia em que se pede “ouvir” a voz da musa: O homem canta-me, ó Musa, o multifacetado, que muitos males padeceu, depois de arrasar Tróia, cidade sacra. Viu cidades e conheceu costumes de muitos mortais. No mar, inúmeras dores feriram-lhe o coração, empenhado em salvar a vida e garantir o regresso dos companheiros. (...) Das muitas façanhas, Deusa, filha de Zeus, conta- nos algumas a teu critério.15 11 Cf. THOMAS, Rosalind. Letramento e Oralidade na Grécia Antiga, p. 159. 12 HAVELOCK. Éric A. A revolução da escrita na Grécia e suas conseqüências, p. 85. 13 Entre aspas justamente porque não se pode confundir oralidade ou cultura oral com analfabetismo ou cultura iletrada. Procura-se discutir essa questão ao longo da abordagem. Aliás, referindo a Patativa, convém antes de tudo ressaltar que ele não foi poeta analfabeto, como se costuma dizer. Ele conhecia a escrita e leu, inclusive, clássicos, conforme se constata neste trabalho. Sua forma de compor, no entanto, se caracteriza pela forma própria da oralidade, que é um modo distinto de saber. Diz-se distinto e não menor. 14 Cf. HAVELOCK, op. cit., p. 63 15 HOMERO. Odisséia. V. 1, Canto 1,5-10, p.13. 20 A voz era, portanto, o veículo de relevante valor para manter vivos na memória os efeitos grandiosos dos heróis. Além disso, convém chamar a atenção para o seguinte: ser culto e ser letrado, na Grécia Antiga não eram necessariamente sinônimos. Havelock defende que “somente no século IV a palavra grammatikós entrou em uso para designar uma pessoa capaz de ler, sem implicar que essa habilidade fosse sinônimo de educação”.16 Isso parece sugestivo e abre horizontes para se pensar as expressões artísticas, nascidas na oralidade, a partir de um viés menos condicionado por uma visão estritamente letrada. Nesse sentido, a etimologia pode ajudar a entender essa tensão complexa, porém dinâmica, que se formou entre oral e escrito ao longo dos tempos. A palavra Literacy vem do latim littera (letra), com o prefixo -cy indica condição, ou qualidade de ser. O termo, “letrado”, litteratus, foi cunhado pelos romanos, bem como o seu oposto, “iletrado”, iliteratus. O primeiro para designar “pessoa de letra”, de alto nível cultural, culta. O seu contrário carrega forte sentido pejorativo, como “gente sem cultura”, que pode se ramificar em vocábulos não menos depreciativos, como: atrasados, ignorantes e assim por diante. Dessa forma, dominar as letras é também ter mais chance de “dar-se bem na vida”. E mais que isso, não ler e não escrever em uma sociedade regida e dominada pela escrita teria o mesmo sentido de ser gente menor, destituída de valor. A esse respeito Havelock, referindo a evolução da escrita, informa: A palavra escrita, crescentemente dominante à medida que a literacia europeia de massas avançava sob governos liberais ou democráticos, tornou-se o único contexto no interior do qual se consideravam os problemas da consciência e da comunicação. Quem não escrevesse nem lesse era, culturalmente falando, uma não-pessoa.17 No entanto, para o mesmo autor, dizer que uma cultura não-letrada é uma não- cultura, ou que o letrado e o iletrado pertencem a mundos distintos, trata-se de um preconceito moderno de uma experiência herdada de dois mil anos de prática letrada. É o modo pelo qual os estudos clássicos tradicionais costumam ler a História Grega, geralmente a partir de um olhar letrado. Ele afirma: A cultura clássica dos gregos já existia, porém, quando essa invenção se efetivou [escrita]. Ela começou a sua carreira como uma cultura não-letrada, e permaneceu nessa condição por um vasto período depois da invenção do alfabeto, pois civilizações podem ser não-letradas e contudo possuir suas próprias formas de arranjo institucional, de arte e de linguagem criativamente elaborada. No caso dos gregos, essas formas próprias fizeram sua aparição na instituição da polis, na arte geométrica, na arquitetura arcaica dos templos e na poesia preservada no hexâmetro homérico. Tudo isso já estava a funcionar quando a Grécia era não-letrada.18 16 HAVELOCK, op. cit., p. 46. 17 HAVELOCK, Éric A. A musa aprende a escrever. p. 55. 18 HAVELOCK. Éric A. A revolução da escrita na Grécia e suas consequências, p. 188. 21 Nota-se que, antes mesmo da escrita, a sociedade grega já se organizava e funcionava de modo muito bem elaborado. No que concerne à poesia, convém ressaltar que para os gregos ela tinha por finalidade ser ouvida ou cantada, transmitida oralmente, como se pode perceber no trecho da Odisséia situado há pouco. Nisso consiste a forma original da poesia. Conforme sustenta Thomas, “havia uma forte corrente de aversão pela palavra escrita, mesmo entre os altamente letrados: documentos escritos não eram considerados, por si mesmos, prova adequada em contextos legais até a segunda metade do século IV a.C.”19 Mesmo o texto escrito era comumente composto para ser lido em voz alta, e a transmissão oral em público era ainda comum no século II d.C.20 Percebe-se, portanto, que o advento da escrita21 não transformou a vida grega de repente, como se diz, da noite para o dia. Certamente agregou um novo modelo de comunicação. Aliás, pode-se dizer que foi uma verdadeira revolução: tanto como sistema de escrita quanto como instrumento de desenvolvimento e sofisticação intelectual. Porém, o oral coexistia com a escrita. “Os métodos orais continuam a ser dignos de crédito, assim como a tradição oral era considerada a fonte perfeitamente normal para o passado, ao menos até o século IV e um pouco além.”22 De sorte que tratar dessa questão não é simplesmente colocar o oral e o escrito em oposição. Pelo que parece são dois modos distintos da capacidade humana conceber o mundo, e que podem coexistir sem que um tenha que desaparecer em detrimento do outro. A soberania da letra, ao que tudo indica, está mais no plano ideológico, de poder, no sentido de que, quem a deteve primeiro no decurso da história foram as classes privilegiadas. E essas mesmas classes, para manter a prerrogativa, ao que tudo indica trataram de diminuir a importância da oralidade, quando não, ignorá-la. Nesse sentido, Havelock defende que o próprio fato de as discussões eruditas não precisarem a datação da primeira escrita grega, sinaliza uma notável negligência, considerando que é marca da erudição clássica a meticulosidade. Prefere-se, no entanto, dizer que a criação do alfabeto deu-se de um modo muito impreciso: no século VIII, ou em meados 19 THOMAS, op. cit., p. 4. 20 Ibid., p. 5. 21 Considera-se que a escrita alfabética chegou ao mundo grego por volta da primeira metade do século VIII a.C., adotada dos povos fenícios. De acordo com Havelock, o texto de Hesíodo (Teogonia) talvez seja o mais antigo composto com o auxílio da escrita alfabética. Mas ele pondera: “Não é provável que tenha sido a primeira peça de tal escrita. Os mais antigos espécimes sobreviventes da língua grega clássica até agora conhecidos ocorrem em cinco artefactos – um vaso, fragmentos de outros dois vasos, um fragmento (provavelmente) de uma placa de argila e uma estatueta de bronze (...) as letras são talhadas, cinzeladas ou pintadas; as datas da manufactura e da inscrição não são necessariamente coincidentes. A segunda pode ser posterior à primeira, excepto no caso da placa. Esta distinção é crucial no caso de um objecto – supostamente o mais antigo – o famoso “vaso de Dípilo” cuja manufactura tem sido colocada, variavelmente, entre 740 e 690 a.C. A primeira data, ou uma próxima, provou ser a mais aceitável. É geralmente aceite que o vaso constitui o mais antigo exemplar de escrita grega.” (Cf. HAVELOCK, Éric A. A musa aprende a escrever, pp. 100-101). 22 THOMAS, op. cit., p. 124. 22 desse mesmo século, e ainda tende de preferência considerar o início do século VII como datação para o alfabeto. De acordo com o autor, suspeita-se que as razões de tal preferência sejam ideológicas. Para ele, isso tem duas vantagens: (1) Confina a história não literária dos Gregos tão estreitamente quanto possível, dado que a não-literacia, na moderna analogia, é julgada indigna da honra de criar a civilização grega; (2) permite, em particular, que os poemas homéricos sejam “transcritos” no século VIII, e não mais tarde, o que é sentido como mais apropriado ao seu conteúdo tradicional e à sua herança micénica.23 Diante disso, e tendo em vista o “peso” da letra, convém frisar que ela foi uma das invenções que mais impulsionou o espírito humano e o lançou para frente. Porém, não foi, não é, nem será a única possibilidade de o homem realizar seu pensamento. Seguramente a escrita representa um avanço enorme na civilização ocidental. Diz-se até que a história da humanidade se divide em duas eras: antes e depois da escrita.24 Isso é certo. O curioso, porém, de acordo com o que indica Havelock, não é tanto a falta de precisão da data de quando realmente surgiu o alfabeto, mas o que subjaz a essa imprecisão. A suspeita é de que há quase uma “arrumação” do tempo histórico a fim de tirar de cena a possibilidade de uma civilização fundada no conhecimento provindo da oralidade. A esse respeito, e reportando-se ao que se “esconde” por trás de nomenclatura como: código, codificação, codificar, imprimir e outras palavras usadas para descrever o tipo de informação que uma cultura segue, Havelock declara: A presunção genérica é a de que as civilizações, para merecerem o nome, têm de se basear nalgum tipo de escrita, têm de ser, nalgum grau, letradas. Provavelmente, a maioria dos especialistas que se ocuparam destes assuntos, incluindo os clássicos, ainda partilham esta visão. É certamente verdade para os leigos. Quando se vê que algumas culturas avançadas, como a dos Incas do Peru, são totalmente não letradas, a lição que pode extrair-se, nomeadamente de que uma sociedade civilizada, com uma arte, arquitectura e instituições políticas próprias, não precisa de depender da escrita para a sua existência, é rapidamente ultrapassada.25 A partir disso se argumenta que, mais que apenas considerar a soberania da letra, se deveria também considerar a importância da oralidade como “veículo” de saber, de cultura, de civilização. Certamente que não se quer recuar no tempo para uma comunicação puramente oral. A transmissão escrita tem suas grandes vantagens. E como tem. Mas é pertinente dizer que ela nasceu como soma do esforço humano para compreender o mundo, e não como única e cristalizada forma de expressão. Por isso, não exclui a riqueza própria da oralidade. A esse respeito no que se refere à literatura é interessante o que afirma Palmer: A literatura faz derivar muito do seu dinamismo, do poder da palavra falada. Desde tempos imemoráveis que as grandes obras da linguagem são feitas para serem ditas 23 HAVELOCK, Éric A. A musa aprende a escrever. p. 101. 24 Cf. HIGOUNET, Charles. A história concisa da escrita, p. 10. 25 HAVELOCK, op. cit., p. 73. 23 em voz alta e para serem ouvidas. Os poderes da linguagem falada deveriam recordar-nos um importante fenômeno: a fraqueza da linguagem escrita.26 Na perspectiva de Palmer, a fraqueza da palavra escrita é justamente sua falta de expressividade primordial que é própria da palavra falada. A palavra escrita fixa e conserva a língua, dá base e sustentação à história e à literatura, porém, ao mesmo tempo em que torna a língua estável, também a enfraquece. Em que consiste esse enfraquecimento é o que se propõe averiguar agora. 1.2. A letra como remédio O tema da tensão entre oralidade e escrita é complexo e vem de longa data. Não é o objetivo aqui explorá-lo à exaustão. O interesse no momento é situar ainda mais o objeto de estudo, percebendo que ele é herdeiro de um processo histórico. Nesse sentido, um exemplo clássico no que refere à tensão entre oral e escrito é o filósofo Platão (428/27 a.C. – 347 a.C): sua obra escrita é toda em forma de diálogo e debates orais. O filósofo não considerou a escrita um meio adequado para a verdadeira educação e a filosofia. Vale lembrar que não está aqui em questão a legitimidade deste ponto de vista, mas suas implicações no que tange o assunto posto. Nessa perspectiva, Franco Trabattoni entende que para Platão “o saber mais precioso de que o homem dispõe é aquele que permanece na sua alma, muito ou pouco que seja da visão das ideias, advinda antes de nascer; nenhum logos, nenhuma tradução em palavras pode resultar senão imperfeita e de menor valor em relação a ela.”27 Trabattoni está se referindo justamente à teoria da reminiscência platônica,28 segundo a qual há um saber inato na alma humana que pode ser recordado. E esse saber seria melhor adquirido por meio do discurso oral. Dito em outros termos, a comunicação oral facilitaria a rememoração, uma vez que o exercício da mente estaria mais presente. O escrito, ao contrário, causaria uma ilusão de saber. Ele “petrificaria” o pensamento e por ser uma cópia dele poderia levar à possibilidade do engano, não levar à reflexão. Daí sua escrita ser em forma de diálogo para manter a dialética. 26 PALMER, Richard E. Hermenêutica, p. 26. 27 TRABATTONI, Franco. Oralidade e Escrita em Platão, p. 158. 28 Anamnese ou reminiscência: palavra grega que significa recordação. “O termo indica a teoria de origem mítico-filosófica com que Platão tenta explicar o problema do conceito e do conhecimento em geral. A alma (a mente humana) não adquire conhecimentos a partir do exterior, mas recorda, no seu interior, aquilo que outrora adquiriu e depois esqueceu. (...) A percepção do mundo externo não fornece nenhum conhecimento, somente um estímulo à recordação. O conhecimento dá-se por meio de uma visão intelectual, quando conseguimos reconhecer na complexidade do mundo real as formas essenciais e prototípicas, ou seja, as ideias.” (Cf. NICOLA, Ubaldo. Antologia ilustrada de filosofia, p. 64). 24 O discurso oral, portanto, seria mais eficaz para fixar o saber, recordar o que já é inerente à alma. Essa discussão se encontra em seu diálogo Fedro. O filósofo ressalta a fraqueza e a inutilidade da linguagem escrita. Para ele escrever uma língua seria uma “alienação da língua”.29 Ele se reporta a um mito egípcio para falar sobre a invenção da escrita. O diálogo se dá entre os personagens Sócrates e Fedro. Convém conferir um trecho: (...) Sócrates Sabes na verdade qual é o melhor meio de agradar à divindade em matéria de discurso, quer na prática quer na teoria? Fedro De maneira nenhuma. E tu? Sócrates Posso narrar pelo menos uma tradição dos Antigos. Mas a verdade sabem-na eles. No entanto, se conseguíssemos descobri-la por nós mesmos, acaso precisaríamos ainda de nos preocupar com as opiniões dos homens? Fedro Pergunta ridícula a tua. Mas conta lá o que afirmas ter ouvido dizer. Sócrates Pois ouvi contar que, perto de Náucratis, no Egito, havia um daqueles deuses do lugar, cujo símbolo sagrado era a ave a que chamam íbis. O nome dessa divindade era Theuth. Pois dizem que foi ele o primeiro a descobrir a ciência do número e do cálculo, a geometria e a astronomia, o jogo das damas e o dos dados e sobretudo a escrita. O rei de todo o Egito nessa altura era Tamos, que habitava a grande cidade da parte alta do país que os Helenos chamam Tebas Egípcia e cujo Deus é Amon. Theuth foi até ao seu palácio, mostrou-lhe os seus inventos e disse que precisavam de ser distribuídos aos outros habitantes do Egito. O rei, no entanto, perguntou-lhe que utilidade tinha cada um deles e, perante as explicações do Deus, conforme lhe parecessem bem ou mal formuladas, a uma censurava e a outra louvava. Tão numerosas foram na verdade – ao que se diz – as observações que Tamos apresentou a Theuth, a favor e contra cada uma das artes, que seria tarefa longa referi-las em pormenor. Quando, porém, chegou a ocasião da escrita, Theuth comentou: “este é um ramo do conheciemnto, ó rei, que tornará os Egípcios mais sábios e de melhor memória. Está pois descoberto o remédio da memória e da sabedoria”. Ao que o rei responde: “Engenhosíssimo Theuth, um homem é capaz de criar os fundamentos de uma arte, mas outro deve julgar que parte de dano e de utilidade possui para quantos dela vão fazer uso. Ora tu neste momento, como pai da escrita que és, por lhe quereres bem, apontas-lhe efeitos contrários àqueles que ela manifesta. É que essa descoberta provocará nas almas o esquecimento de quanto se aprende, devido à falta de exercício da memória, porque, confiados na escrita, é do exterior, por meio de sinais estranhos, e não de dentro, graças a esforço próprio, que obterão as recordações. Por conseguinte, não descobriste um remédio para a memória, mas pra a recordação. Aos estudiosos oferece a aparência da sabedoria e não a verdade, já que, recebendo, graças a ti, grande quantidade de conhecimento, sem necessidade de instrução, considerar-se-ão muito sabedores, quando são ignorantes na sua maior parte e, além disso, de trato difícil, por terem a aparência de sábios e não o serem verdadeiramente”. 29 PALMER, Richard E. op. cit., p. 26. 25 Fedro Ó Sócrates, quanta facilidade tens tu em inventar histórias egípcias e de qualquer outro país que queiras! Sócrates E certas delas, meu amigo, referem que, no santuário de Zeus em Dodona, os primeiros oráculos saíram de um carvalho. É que os homens de outrora – visto que não eram sábios como vós, os jovens –, na sua simplicidade bastava-lhes ouvir um carvalho e uma rocha, conquanto que proferissem verdades. Para ti, porém, talvez seja importante saber quem fala e de que país é, uma vez que não te basta examinar se as coisas são verdadeiras ou de outro modo. Fedro Repreendes-me com razão. E no que respeita à escrita, parece-me ser precisamente como diz o Tebano. Sócrates Por conseguinte, quem julgasse transmitir na escrita uma arte e quem por sua vez a recebesse, como se dessas letras escritas pudesse derivar algo certo e de seguro, mostraria muita ingenuidade e desconheceria realmente o oráculo de Amon, se creem que os discursos escritos são algo mais do que um meio de fazer recordar a quem já sabe as matérias tratadas nesses escritos. Fedro Muito justamente. Sócrates É isso precisamente, Fedro, o que a escrita tem de estranho e que torna muito semelhante à pintura. Os produtos desta apresentam-se na verdade como seres vivos, mas, se lhes perguntares alguma coisa, respondem-te com um silêncio cheio de gravidade. O mesmo sucede também com os discursos escritos. Poderá parecer-te que o pensamento anima o que dizem; no entanto, se, movido pelo desejo de aprender, os interrogares sobre o que acabam de dizer, revelam-te uma única coisa e sempre a mesma. E uma vez escrito, cada discurso rola por todos os lugares, apresentando-se sempre do mesmo modo, tanto a quem deseja ouvir como ainda a quem não mostra interesse algum. Não sabe, por outro lado, a quem deve falar e a quem não deve. Além disso, maltratado e insultado injustamente, necessita sempre da ajuda do seu autor, uma vez que não é capaz de se defender a si mesmo. 30 (...) De acordo com a narrativa mítica sugerida pelo filósofo, a escritura tem um valor duvidoso: se auxilia os egípcios e os torna mais aptos para recordar, também carrega o risco da ilusão do saber. A ilusão do saber se refere justamente à falta do cultivo da memória. Estando os homens dependentes da escrita, correriam o risco de tornarem-se esquecidos, pois confiando no registro visível do escrito, lembrariam de assunto apenas na exterioridade. Além disso, a escrita poderia torná-los convencidos de que saberiam muito, quando na verdade mais ignorantes ficavam, uma vez que apenas teriam, a muito custo, a mera aparência de sábios. Jacques Derrida, em A Farmácia de Platão, toma o referido trecho do Fedro para pensar a relação entre voz e escrita. Ele parte da palavra grega phármakon que indica ambiguidade: ela significa tanto um remédio, uma droga, como um veneno, que pode ser 30 PLATÃO. Fedro, 274c-275d. pp. 119-122. 26 benéfico ou maléfico. Nesse sentido, a escrita aparece como transgressora por poder dizer aquilo que o agente da fala jamais diria estando longe. Ao que Derrida enfatiza: “A escritura não é a repetição viva do vivo”.31 Ela se caracteriza, precisamente, pela ausência do pai-autor, ao contrário da fala viva, cujo pai-autor é presente. “Contrária à vida, a escritura – ou, se preferimos, o phármakon – apenas desloca e até mesmo irrita o mal. Tal será, no seu esquema lógico, a objeção do rei à escritura: sob pretexto de suprir a memória, a escritura faz esquecer ainda mais; longe de ampliar o saber, ela o reduz.”32 A escrita está, portanto, associada à ideia de imobilidade, de morte. Ela sozinha, sem a presença da voz, é órfã indefesa. Nessa perspectiva, discutindo a mesma passagem do Fedro, Jayme Paviani argumenta que Platão parece indicar que o problema da escrita reside no seu caráter fixo, na dificuldade de redigir o texto capaz de expressar a verdade. “Os discursos fixados na escrita andam daqui, dali, tanto entre os conhecedores de seus temas como entre aqueles que os ignoram, e deles não se sabe para quem servem ou não servem.”33 Ele indica alguns elementos a considerar na discussão sobre o problema da escrita em Platão: Primeiro é o fato de o filósofo usar o mito para desvendar o processo da escrita. O segundo diz respeito aos vinte séculos que esse diálogo “teve de esperar” para que fosse considerado como um texto bem escrito. O terceiro se refere às perguntas que se devem fazer ao próprio texto platônico, por exemplo, o exame de palavras, como: phármakon (remédio, droga) e outras expressões do diálogo. O quarto sugere a necessidade de levar em conta o contexto histórico para visualizar a concepção de escrita em Platão.34 Com as chaves de leitura acima, propõe-se simplesmente o seguinte argumento: (1) Se o mito é por natureza uma narrativa oral e Platão se utiliza dele para pôr em questão a escrita, de certa forma a própria narrativa mítica parece apresentar a oralidade em relevo. (2) Quem sabe os vinte séculos em que o Fedro passou despercebido poderiam ser consequência de uma visão fechada por parte do mundo letrado, que de algum modo fez a palavra emudecer na letra, num mundo à parte, onde somente uns poucos privilegiados poderiam acessar o saber acumulado através das escrituras. (3) Além disso, os vinte séculos em que essa obra platônica foi desconsiderada podem ser vistos como suspeita ideológica: peritos guiados por um horizonte estritamente letrado. É uma leitura possível. Segue-se agora com um “pulo” rápido à Idade Média 31 DERRIDA, Jacques. A Farmácia de Platão, p. 86. 32 Ibid., p. 47. 33 PAVIANI, Jayme. Escrita e linguagem em Platão: notas introdutórias, p. 55. 34 Cf. Ibid., p. 56. 27 1.3. Índices de oralidade Nessa perspectiva de abordagem considerando o lugar da voz ou de uma relação de complementaridade entre oral e escrito, convém se referir à Idade Média, vasto período histórico que certamente deixou sua marca no homem ocidental e no seu modo de ser e conceber o mundo. Esse longo período, que Zumthor denomina de oralidade predominante, estender-se-ia do século IV d.C. até aos começos da Era Industrial ou Idade Moderna, por volta do século XV, quando se passa de uma vivência mais espontânea e comunitária, a uma vida mais voltada para o sujeito, para o indivíduo, justamente porque a letra vai aos poucos se tornando hegemônica. Embora seja já uma época fortemente regida pela escritura, o que ainda contava era a palavra vocalizada. Além disso, por exemplo, a lei era a palavra do rei, dita em “viva voz” pelos agentes régios, os arautos, porta-vozes encarregados de tornar a palavra real declarada em praça pública. Nesse sentido, Zumthor informa que no século XIV ou XV, qualquer corte de alguma importância tinha seus menestréis: “Ainda por volta de 1500, a rainha Ana, o rei Carlos VIII mantêm perto de si rhétoriqueus célebres, Jean Lemaire, André de La Vigne. Esses poetas designam a si próprios pelo termo orador, com o qual, aparentemente, evocam a função tradicional de porta-voz.”35. De igual modo, mesmo entre os dignitários eclesiásticos, de acordo com Zumthor, havia quem contratasse poetas e cantores para o encargo da publicidade da igreja junto aos peregrinos. “Na região de Santiago de Compostela (e mais de uma dúzia de pequenos santuários locais), devemos a esse costume os cantos de romaria que foram conservados por alguns cancioneiros ibéricos.”36 Assim, como um tempo da voz, a Idade Média é também uma época característica do uso da memória e da musicalidade poética, da palavra “poetizada”. Portanto, tendo em vista a vastidão desse período, observa-se o que Paul Zumthor apresenta a respeito dos tipos de oralidade. Ele a distingue em três níveis: a primeira e imediata, a oralidade mista e a oralidade segunda.37 A primeira e imediata é aquela que não apresenta contato algum com a escrita. Esse tipo de oralidade encontra-se apenas nas sociedades desprovidas de todo sistema de simbolização gráfica ou nos grupos isolados e analfabetos. O autor considera que esse foi o caso de amplos setores do mundo camponês medieval. A oralidade mista se caracteriza por uma influência parcial da cultura escrita. Aqui o oral e o escrito coexistem, no entanto a 35 ZUMTHOR. A voz e a letra, p. 64. 36 Ibid., p. 64. 37 Ibid., p. 18. 28 ascendência do escrito permanece externa, parcial e atrasada. Nesse caso a oralidade procederia de uma cultura “escrita”. A oralidade segunda é típica de uma “cultura letrada”, nela toda expressão é marcada mais ou menos pela presença da escrita. Dessa maneira, inicia- se um processo de censura à oralidade. Tudo se recompõe com base na escritura num meio onde este tende a esgotar os valores da voz no uso e no imaginário. Conforme o autor, esses tipos de oralidade variam de acordo não somente com as épocas, mas com as regiões, as classes sociais e também com os indivíduos. Além disso, haveria certa onipresença da voz no que concerne à escrita, o que Zumthor denomina “índice de oralidade”. Ele diz: “Acontece-nos frequentemente perceber no texto o rumor, vibrante ou confuso, de um discurso que fala da própria voz que o carrega”.38 É como se no interior de cada texto, nalgum momento de sua existência, houvesse o indício da intervenção da voz humana. Para o autor, o texto foi um acontecimento oral, existiu antes de tudo na atenção e memória dos indivíduos. De maneira que todo texto é, de algum modo, essencialmente oral. Nessa mesma perspectiva, Palmer defende que toda linguagem escrita apela para uma reconversão na forma falada; apela para um poder perdido. As palavras orais parecem ter o poder quase mágico, mas ao tornarem-se imagens visuais perdem muito desse poder. A literatura usa palavras de modo a tirar o máximo partido da sua “eficácia”, mas, no entanto, muito do seu poder se esgota quando a audição se converte num processo visual de leitura.39 A audição, portanto, é o que caracteriza a linguagem em sua forma originária. De acordo com Palmer, a linguagem oral tem a vantagem de ser mais facilmente “compreendida” do que a linguagem escrita. Nesse sentido, mesmo romances e poemas compostos para serem lidos em silêncio, à medida que são lidos é possível que o leitor imagine sons, como se a letra ao alcance dos olhos cobrasse a participação do ouvido. E mais que isso, nos dizeres de Palmer, “toda a leitura silenciosa de um texto literário é uma forma disfarçada de interpretação oral.”40 É, portanto, a busca pela voz, pela sonoridade para compensar a fraqueza e a debilidade da palavra escrita. Assim, conclui-se que a escrita em sua forma visual se completa, encontra plenitude, recorrendo à sua forma originária, isto é, à sua dimensão oral. Nessa perspectiva, é importante ressaltar a questão do ato performático, através do qual o poeta se torna voz pura, texto e obra se mesclam. A esse respeito Zumthor sustenta: No momento em que diz, a voz transmuta o simbólico produzido pela linguagem, ela tende a despojá-la do que ele comporta de arbitrário; ela o motiva com a presença deste corpo de onde emana. À extensão prosódica, à temporalidade da linguagem, a voz impõe assim sua espessura e a verticalidade de seu espaço.41 38 Ibid., p. 35 39 PALMER, op. cit., pp. 26-27. 40 Ibid., p. 28. 41 ZUMTHOR, Paul. Escritura e nomadismo. pp. 145-146. 29 Dessa forma, o ato de dizer a palavra poetizada, isto é, a performance,42 entre outras implicações, envolve a ideia e de “recepção”.43 De acordo com Zumthor, a palavra performance, com prefixo e sufixo combinados, sugere o exercício de um esforço em vista da consumação de uma “forma”. O termo teria sido emprestado da linguagem da dramaturgia pelos etnólogos anglo-saxões do pós-guerra.44 Nessa perspectiva a performance é um momento privilegiado de recepção: aquele em que um enunciado é realmente recebido. “Num instante determinado, este texto foi transmitido por uma voz humana e que (mesmo que ele fosse, por outro lado, objeto de cem leituras solitárias, puramente visuais) este exato instante o transformou em um monumento incomparável, porque único.”45 A voz, portanto, extrai a “obra” do texto. Obra no sentido em que entende Zumthor: aquilo que é poeticamente comunicado aqui e agora: texto, sonoridades, ritmos, elementos visuais, isto é, as partes constitutivas da performance.46 Poesia e corpo em apresentação teatral. Essa teatralidade, que tem a voz como a essência, chegou até aqui no Brasil. É sobre isso o item seguinte. 1.4. Vozes d’além-mar Dessa menção ao que se chamou vasto período medieval, não é forçoso agora dar-se conta de certa “vocalidade” que nos veio nas caravelas, nas bagagens e na garganta do colonizador europeu, e porque não dizer também no coração deles. Luyten defende que quase todos os que vieram para cá em 1500 não eram pessoas “letradas”, “com raras exceções de membros do clero católico e a pequena elite que se foi formando.”47 Não chegaram aqui, portanto, “gente ilustrada, informada das novas descobertas da Renascença. Eram em geral camponeses, afastados do Reino pela falta de terras, ou desocupados urbanos que decidiam cruzar o Mar Oceano à procura da fortuna que não tinham em sua terra natal.”48 42 No que concerne à etimologia da palavra performance o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa assim descreve: do inglês, performance (1531), de to perform 'alcançar', 'executar' e, este, do francês antigo, parfourmer 'cumprir, acabar, concluir', de former 'formar, dar forma a, criar', do latim, formáre 'formar, dar forma'. 43 Convém assinalar, em poucas palavras, que a Estética da Recepção defende que “qualquer obra de arte literária só será efetiva, re-criada ou “concretizada”, quando o leitor a legitimar como tal, relegando para plano secundário o trabalho do autor e o próprio texto criado. Para isso, é necessário descobrir, segundo os teóricos, qual o ‘horizonte de expectativas’ que envolve essa obra, pois todos os leitores investem certas expectativas nos textos que leem em virtude de estarem condicionados por outras leituras já realizadas, sobretudo se pertencerem ao mesmo gênero literário”. (Cf. Dicionário de Termos Literários: acessível em: http://www2.fcsh.unl.pt/edtl/verbetes/E/estetica_recepcao.htm. Acesso em 20/3/09. 44 ZUMTHOR, Paul. Escritura e nomadismo, p. 140. 45 Ibid., p. 141. 46 Ibid., p. 142. 47 LUYTEN, Joseph Maria. A notícia na literatura de cordel, p. 15. 48 REGO, André Herácio do. Oralidade na Europa medieval e no sertão nordestino, http://www.revista.akademie-brasil-europa.org/cm62-03.htm. Acesso em 15/8/2008. 30 Além disso é bom frisar que somente em 1808 chegou a primeira gráfica ao Brasil, vinda de Portugal. Ou seja, contando a partir da chegada do colonizador (1500) e a vinda da imprensa imperial (1808), tem-se mais anos de predominância da oralidade (308 anos) do que da imprensa e outros meios de comunicação (201 anos completos em 2009). Referindo-se a certa recusa do escrito e à predominância do oral na cultura brasileira, Luyten expõe alguns possíveis resultados disso: Ainda somos um dos países onde menos se leem jornais e onde menos livrarias e bibliotecas per capita se encontram. Por outro lado, para compensar a falta de usos mais sistemáticos de comunicação escrita, foram se arraigando, com muito mais ênfase, padrões de cultura oral. É por isso que, entre nós, ainda é tão importante alguém que saiba “falar bem”. (...) Nos meios de comunicação eletrônicos a mesma tendência se faz sentir. Haja vista a utilização do telefone para tipos mais variados de comunicação interpessoal. Somente nos anos recentes parece que o Correio chega a ser mais utilizado. No Brasil, os sistemas de comunicação de massa, como o rádio e a televisão, conseguem audiências superadas ano após ano, em detrimento de outros cuja evolução é muito mais lenta, chegando a ser regressiva em relação ao aumento do número de habitantes. É sobretudo nos meios populares que a comunicação oral mantém primazia.49 Essa é certamente uma questão aberta e, por vezes, usada como uma das possíveis justificativa do “atraso cultural” do Brasil em relação a outras nações mais afeitas à comunicação escrita. É fato que a oralidade aqui tem uma força enorme. Agora pensar que isso contribui para o atraso é, de novo, um fechamento, uma concepção de saber afeita apenas considerando o saber provindo da escrita. Nessa perspectiva, as informações de Luyten são interessantes para pensar em duas expressões orais herdadas do colonizador: a cantoria e a de cordel. É o que se pretende fazer agora. Dentre as mais importantes fontes dessas expressões culturais, que têm suas raízes na oralidade, de acordo com Slater,50 acham-se as baladas orais, o livreto europeu, mais especificamente português (que inclui baladas escritas e almanaques astrologia), e os diálogos ou competições de versos improvisados bem brasileiros (desafios ou pelejas), que demonstram a tenzone dos trovadores medievais. Slater defende que outras fontes principais incluem material religioso como estórias bíblicas e os exemplários, o conto folclórico conhecido como trancoso, e uma diversidade de elementos africanos e indígenas. 1.4.1. A Cantoria A cantoria ou o repente parece um bom exemplo de um “eco de oralidade” dos tempos passados de que nos fala Zumthor. Trata-se de uma expressão artística que se realiza 49 LUYTEN, op. cit., p.16. 50 Cf. SLATER, Candance. A vida no barbante, p. 4. 31 por meio de um duelo verbal entre cantadores. Recebe também o nome de peleja ou desafio. Andrade entende que o desafio entre cantadores é uma manifestação artística que pertence a uma linhagem cujas origens extrapolam os limites da herança ibérica chegando até a cavilação grega, nobre berço da cultura ocidental. O fato, porém, é que mesmo guardando em si todas as marcas e feições de uma manifestação muito primitiva, a prática do desafio perdura até os dias de hoje, seja na forma original, nos ‘longínquos territórios’ sertanejos, seja na forma de molde cultural recuperado por inúmeros artistas cultos, tanto da literatura quando da música urbana.51 Além disso, afirma-se que o repente nordestino tem forte influência do “espírito improvisador” africano: a África árabe, que por muitos anos dominou a Espanha e Portugal,52 e a África negra por meio da escravidão. De modo que essas duas fontes africanas se encontraram no Brasil via colonizador. As marcas dessa herança se pode perceber nos desafios de maracatu, no coco de embolada, na cantoria de viola e outras manifestações artísticas.53 De acordo com Diegues Júnior, a cantoria pode ser apresentada em duas formas: uma tradicional, outra improvisada: A tradicional é a chamada “obra feita”, e se traduz, na persistência de versos que o poeta conserva acerca de fatos históricos, de assuntos matemáticos, geográficos, gramaticais, ou astronômicos, definições e conceitos, numa exibição de conhecimentos auferidos em certos livros lidos. São versos que o cantador pode lançar ou apresentar perante seu público, em qualquer oportunidade, quase como um desafio ao seu contendor ou a outros cantadores. (...) A improvisada é o repente, o verso do momento, dito à face de um fato momentâneo, ou a propósito de uma pessoa presente; este último é o autêntico improviso, muito comum, sobretudo no desafio. 54 O ato de uma cantoria mais tradicional se constitui geralmente, no início, de uma apresentação dos cantadores, é o momento em que cada um aproveita para narrar suas façanhas: fala de sua origem, terra em que nasceu, exalta a própria fama, as vitórias nos embates e com que cantadores pelejou. Quanto ao espaço, já foi mais comum a realização de encontro em residência no interior, casa de fazenda, onde a vizinhança se encontrava para ouvir, prestigiar, rir e aplaudir os repentistas. É comum ainda hoje também nas cidades do interior do Nordeste (precisamente nos Estados do Ceará, Paraíba, Pernambuco, Rio Grande do Norte etc.) a realização de cantoria através do rádio e também da televisão. No que diz respeito à cantoria “ao vivo”, os cantadores saúdam os presentes como forma de atrair a atenção e se dirigem principalmente aos donos da casa. Há também o 51 ANDRADE, Patativa do Assaré: as razões da emoção, p. 71. 52 Trata-se da invasão muçulmana da península Ibérica que se deu entre os anos 711-714. Com a invasão, os árabes dominaram a península Ibérica de 711 até 1492. 53 Cf. documentário “poetas do repente” no qual o músico e escritor Bráulio Tavares faz referência ao papel do africano no repente nordestino. Acessível em: http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraDownload.do? select_action=&co_obra=53742&co_midia=6. Acesso em 17/8/08. 54 JÚNIOR, Diegues M. Literatura de Cordel, pp. 7 e 15. 32 costume de, a certa altura da cantoria, geralmente no meio do desafio, pedir oferta em dinheiro aos presentes. Coloca-se uma bandeja ou outro recipiente próximo aos cantadores onde a plateia é convidada a depositar alguma quantia. Os cantadores citam diretamente nomes de alguém presente, elogiam quando o pedido é atendido ou criticam quando ocorre o contrário. Faz parte da brincadeira e todos se divertem com o humor e a criatividade dos repentistas. Mas isso não é regra geral e foi mais comum quando os cantadores atuavam mais na zona rural e não consideravam a cantoria uma profissão. Hoje em dia geralmente o preço da cantoria é estipulado quando o interessado procura o cantador. Os momentos oportunos para a celebração de uma cantoria podem ser por ocasião de festa de casamento, batizados, aniversários ou outras circunstâncias comunitárias ou gosto pessoal de alguém. Além disso, é bom ressaltar que a cantoria deixou de ser unicamente rural, pois à medida que o país se urbaniza, ela também se urbaniza. Nesse sentido parece oportuno pensar brevemente a cantoria em suas características do passado e de hoje: imaginam-se, por exemplo, os cantadores sentados nalgum alpendre de um casarão antigo, numa “boca de noite” nos recônditos sertanejos, tendo à frente uma plateia atenta à palavra dita de “improviso”, ou mesmo pensar num grande festival de violeiros, que pode ser acompanhado “ao vivo” pela audição radiofônica, televisiva ou ainda pela mediação da internet. A propósito, citam-se agora algumas estrofes, disponíveis na internet, onde dois cantadores versejam sobre a própria poesia, algo que se poderia denominar de metapoesia: Cantor1: Poesia é a estrela Herdada da antiguidade Nasceu do parto da luz É doída como a saudade Ninguém mais tem o direito De saber da sua idade. Cantor2: Poesia é a saudade Da dor da separação Nasce no pomar do peito Para fazer germinação Peça abstrata que enfeita O museu do coração. Cantor1: Foi na Grécia inspiração Nos tempos anteriores Na Europa fez história Dos antigos trovadores E no Nordeste é a vida Dos poetas cantadores. Cantor2: 33 Poesia, uma das flores Que só Deus beija a corola Joia que a mão não segura, Se aprende sem escola Imagem que a gente amarra Com dez cordas de viola.55 Essa apresentação é o que se pode chamar de “obra feita”, isto é, trata-se de um assunto corrente, não exige esforço para o improviso, não é palavra dita no “calor” da hora. É possível que os dois cantadores tenham se preparado antes para discorrer sobre o tema. Conforme Diegues Júnior, “em todos os desafios, ou cantorias, há uma grande parte de ‘obra feita’, até que a animação da disputa comece a provocar a improvisação sobre os fatos momentâneos ou as pessoas presentes.”56 Observa-se na cantoria acima que é uma composição em sextilha, ao que se chama no desafio de “obra de se seis pés”. “Pé” ou linha é o nome que se dá ao verso. A estrofe completa chama-se “verso”. Cada cantador começa seu verso a partir da última linha dita pelo parceiro. Por exemplo, na cantoria acima o cantor 1 concluiu seu verso com a palavra “cantadores”, o outro seguiu com a rima “flores”. Nessa perspectiva, há um poema de Manuel Bandeira que é bem ilustrativo quanto ao tema cantoria. Cita-se: Cantadores do Nordeste Anteotem, minha gente, Fui juiz numa função De violeiros do Nordeste. Cantando em competição, Vi cantar Dimas Batista E Otacílio, seu irmão. Ouvi um tal de Ferreira, Ouvi um tal de João. Um, a quem faltava um abraço, Tocava cuma só mão; Mas, como ele mesmo disse Cantando com perfeição, Para cantar afinado, Para cantar com paixão, A força não está no braço: Ela está no coração. Ou puxando uma sextilha Ou uma oitava em quadrão, Quer a rima fosse em inha Quer a rima fosse em ão, Caíam rimas do céu, Saltavam rimas no chão! Tudo muito bem medido 55 Poesia cantada por dois cantadores, ouvida e transcrita do documentário poetas do repente, exibido pela TV Escola. (Cf.: http://www.dominiopublico.gov.br.) 56 JÚNIOR, Diegues M., op. cit., p. 7. 34 No galope do sertão. A Eneida estava boba; O Cavalcanti, bobão O Lúcio, o Renato Almeida; Enfim, toda comissão. Saí dali convencido Que não sou poeta não; Que poeta é quem inventa Em boa improvisação, Como faz Dimas Batista E Otacílio, seu irmão; Como faz qualquer violeiro Bom cantador do sertão, A todos os quais, humilde, Mando a minha saudação!57 Percebe-se que em poucas palavras o poeta condensou a experiência de esteticidade feita por meio de uma cantoria. “Juiz da função” sugere que ele deveria ser um jurado. Isso evidencia que o evento diz respeito a um festival de competição entre violeiros: cantadores em disputa verbal. Na menção aos cantadores é de nota a referência a Dimas Batista (1921- 1986) e Otacílio (1932-2003), seu irmão. Trata-se de dois nomes representativos dos Cantadores do Nordeste.58 Ambos são pernambucanos. O último é autor da famosa letra Mulher Nova Bonita e Carinhosa, musicada por Zé Ramalho.59 Outro aspecto que vale observar é o modo de compor o repente. Bandeira lembra uma das características básicas: a rima. A rima é um efeito estético importantíssimo na cantoria e como tal no cordel escrito. No poema de Bandeira é lembrada a sextilha (estrofes de seis versos, em que o primeiro rima com o terceiro e o quinto, o segundo rima com o quarto e o sexto), que é a modalidade mais usada pelos cantadores. Mas há uma variedade grande de modos de composição. O chamado galope beira-mar, por exemplo, constitui um dos mais difíceis gêneros da cantoria. Ele é composto de Estrofe de 10 versos hendecassílabos (11 sílabas), com o mesmo esquema rítmico da décima clássica, concluindo a estrofe sempre com o verso "cantando galope na 57 BANDEIRA, Manuel. Estrela da vida inteira, pp. 298-299. 58 Nomes representativos de poetas da cantoria: Ugulino Nunes da Costa (1832-1895), José Porfírio, Silvino Piruá Lima, Manoel Carneiro, Germano da Lagoa e tantos outros. Um dos repentistas atuais e que teve papel significativo para a profissionalização do repentista é Ivanildo Vila Nova, natural de Caruaru, PE. É considerado o mais aperfeiçoado repentista da atualidade. 59 A letra: “Numa luta de gregos e troianos / Por Helena, a mulher de Menelau / Conta a história que um cavalo de pau / Terminava uma guerra de dez anos / Menelau, o maior dos espartanos / Venceu Páris, o grande sedutor / Humilhando a família de Heitor / Em defesa da honra caprichosa / Mulher nova, bonita e carinhosa / Faz o homem gemer sem sentir dor. // (...) A mulher tem na face dois brilhantes / Condutores fiéis do seu destino / Quem não ama o sorriso feminino / Desconhece a poesia de Cervantes / A bravura dos grandes navegantes / Enfrentando a procela em seu furor / Se não fosse a mulher mimosa flor / A história seria mentirosa.// (...) Virgulino Ferreira, o Lampião / Bandoleiro das selvas nordestinas / Sem temer a perigos nem ruínas / Foi o rei do cangaço no Sertão / Mas um dia sentiu no coração / O feitiço atrativo do amor / A mulata da terra do condor / Dominava uma fera perigosa / Mulher nova, bonita e carinhosa / Faz o homem gemer sem sentir dor.//” 35 beira do mar" ou variações dele. A palavra do último verso é sempe "mar". Cita-se uma “amostra”: Falei do sopapo das águas barrentas De uma cigana de corpo bem feito Da Lua, bonita brilhando no leito Da escuridão das nuvens cinzentas Do eco do grande furor das tormentas Da água da chuva que vem pra molhar Do baile das ondas, que lindo bailar Da areia branca, da cor de cambraia Da bela paisagem na beira da praia Assim é galope na beira do mar.60 Além das variações do modo de composição do repente, há um elemento que não pode deixar de ser mencionado. Diz respeito ao instrumento usado pelo cantador: a viola. Ela constitui peça importante nos desafios e cantorias. A melodia repetida pelo cantador é como que a amarração para as rimas ou fonte de inspiração e aguçamento da memória, contribuindo para a improvisação e a habilidade na composição. E mais que isso, ela é o símbolo da cantoria nordestina. Noutras formas de cantoria de improviso o instrumental varia. Na embolada, por exemplo, o cantador toca pandeiro ou ganzá. A modo de exemplo, cita-se agora parte de um desafio clássico: A peleja do Cego Aderaldo com Zé Pretinho. Essa é uma peleja que já teve várias versões. O trecho que segue é da versão de Firmino Teixeira do Amaral: 61 (...) P- Eu vou mudar de toada Para uma que mete medo Nunca achei um cantor Que desmanchasse esse enredo É 1 dedo é 1 dado é 1 dia É 1 dia é 1 dado é 1 dedo C- Zé Preto este teu enredo Te serve de zombaria Tu hoje cegas de raiva O diabo será teu guia É 1 dia é 1 dado é 1 dedo É 1 dedo é 1 dado é 1 dia. (...) A partir dessa apresentação é importante lembrar que embora a marca da cantoria e do repente receba a característica do Nordeste, semelhantes expressões se espalharam por todo o país, “onde surgiram variações na forma de compor, tocar e cantar. Hoje são conhecidos pelo menos cinco tipos de repente: a trova gaúcha (Rio Grande do Sul), o calango (Minas Gerais), o cururu (São Paulo), o samba de roda (Carioca) e o repente (Nordeste)”62, 60 Autoria de Joaquim Filho. (Cf.: http://www.ablc.com.br/popups/metrica/metrica.htm#09. Acesso em 23/3/09). 61 LOPES, José de Ribamar (Org.). Literatura de cordel, p. 142. 62 Cf. PAVAN, Alexandre; PERPETUO, Irineu Franco. Populares e Eruditos, p. 45. 36 sem falar noutras manifestações musicais, principalmente das periferias das cidades: hip-hop, rap e outros estilos da música popular brasileira, que podem ter características da cantoria, como o improviso e a disputa verbal, tendo também a marca da poesia rimada e a companhia de um instrumento musical. Mas esse é outro assunto. 1.4.2. O Cordel Cantoria e cordel podem ser considerados como duas manifestações artísticas inseparáveis. Um e outro têm a mesma fonte: são essencialmente orais. Claro que literatura de cordel, como o próprio nome indica, tem mais relação com a escrita. Mas ambas são literatura oral, compostas para serem declamadas. A esse respeito convém conferir o que diz a pesquisadora francobrasileira Idelette Muzart-Fonseca dos Santos. Sobre a peculiaridade do cordel brasileiro ela assim afirma: O que é característico, o que é inovador no Brasil é esta passagem da prática da cantoria sobre as narrativas tradicionais da oralidade e de alguns livros que tinham sido publicados para a versificação. A partir disso cria-se uma literatura de mascate, de cordel, folhetos de feira (que é a denominação popular), em um processo extremamente original. (...) No século XIX, fim do XVIII, eu encontrei apenas um folheto. Existem outros em Portugal que são em verso, mas a enorme maioria está em prosa, assim como na França. Então nós temos uma originalidade profunda da literatura de cordel brasileira que está em verso. Isso significa que ela está ligada à voz. É por isso que se diz que o folheto é a escritura da voz. Historicamente, isso foi verdadeiro, pois havia composições orais que depois eram passadas para a escrita. (...) Depois, muito rapidamente a criação foi diretamente escrita, mas sempre conservando esta dimensão da voz, pois a voz dá a sonoridade, o ritmo e a vida à escrita do cordel. (...) No Brasil há uma originalidade profunda da literatura de cordel, essa escrita que mantém a relação com a voz e ao mesmo tempo não hesita em utilizar técnicas mais recentes disponíveis no mercado. Isso acontece no final do século XIX, durante o século XX e agora, mais recente, com poetas escrevendo e vendendo na internet.63 Isso para dizer da característica marcante que essa expressão artística adquiriu no Brasil, tendo como suporte a voz. Conforme Sandroni, os folhetos surgiram e desenvolveram- se através de performances orais, não apenas “faladas”, mas também “cantadas”. Eles eram vendidos nas feiras e praças com a ajuda do chamariz constituído pela melodiosa recitação feita por seu editor e/ou vendedor. Depois, em casa, eram de novo cantados por algum membro da família que sabia ler, para deleite e proveito dos ouvintes, incluindo os que não sabiam ler.64 63 Entrevista feita pela jornalista e pesquisadora Karina Janz Woitowicz, da Universidade Federal de Santa Catarina. Este trecho está disponível em: http://www.revistas.uepg.br/index.php?journal=folkcom&page=article&op=viewFile&path%5B%5D=545&path %5B%5D=379. Acesso em 23/3/09. 64 Cf. 100 Cordeis históricos segundo a Academia Brasileira de Literatura de Cordel, p. 13. 37 Sandroni ainda se refere à convergência entre o cordel e a cantoria: os grandes improvisadores repentistas tiveram na literatura de cordel o meio de formação para a sua poética. O verdadeiro cantador de repente aprendia de cor folhetos inteiros. Além disso, o modo de composição de ambas as expressões é similar: “As principais formas poéticas empregadas na cantoria, tanto no que se refere à métrica, quanto aos esquemas de rimas, são encontradas também na poesia de cordel. Existe também uma grande similitude de temas entre as duas formas de expressão.”65 Nessa perspectiva o pesquisador norte-americano Mark Curran declara: A ligação da literatura de cordel com a poesia oral e improvisada – o duelo- performance poético e folclórico de dois cantadores, com sua estrutura básica de dasafio-resposta – e com os temas tradicionais folclóricos é só uma faceta de seu papel de meio impresso muito difundido no cenário urbano, mas de grande relevância no cenário rural.66 O cordel e sua relação com a cantoria, de fato, representa apenas uma faceta de sua riqueza temática. Alguns estudiosos tentaram delimitar essa expressão em alguns ciclos temáticos, como se pontuará logo mais. Antes convém citar o modo como Curran apresenta a literatura de cordel, mencionado alguns de seus temas. A literatura de cordel é uma poesia folclórica e popular com raízes no Nordeste do Brasil. Consiste, basicamente, em longos poemas narrativos, chamados “romances ou “histórias”, impressos em folhetins ou panfletos de 32 ou, raramente, 64 páginas, que falam de amores, sofrimentos ou aventuras, num discurso heróico de ficção. Esta é uma parte significativa do cordel em termos de número de poemas publicados, mas nem de longe representa todo gênero. Um segundo tipo de impresso, o folheto com oito páginas de poesia circunstancial ou de acontecido, também contribui para o corpus total, completa o quadro o duelo, chamado “peleja”, “desafio” ou termo equivalente. Assim, o cordel tem características tanto populares quanto folclóricas, ou seja, é um meio impresso, com autoria designada, consumido por um número expressivo de leitores numa área geográfica ampla, enquanto exibe métricas, temas e performance da tradição oral. Além disso, conta com a participação direta do público, como plateia.67 Quanto às origens dessa expressão que Curran denomina de “popular e folclórica”, de acordo com Diegues Júnior, remetem às “folhas volantes” ou “folhas soltas” lusitanas, que eram vendidas em Portugal “nas feiras, nas romarias, nas praças ou nas ruas; nelas registravam-se fatos históricos ou transcrevia-se igualmente poesia erudita.”68 Chegando aqui encontrou terreno fecundo no Nordeste e fez o sincretismo entre os mitos indígenas e as narrativas africanas, gerando, como afirma Carvalho, “um conjunto fantástico que envolve amor, luta, mistério e fé.”69 Além disso, Segundo Slater, em Portugal, a literatura de cordel, 65 Ibidem. 66 CURRAN, Mark J. História em Cordel, pp.17-18. 67 Ibid., p.17. 68 JÚNIOR, Diegues M, op. cit., p. 5. 69 Cf. CARVALHO, Gilmar. Vozes e letras do cordel, p. 43. 38 por um tempo, foi associada a “uma ordem torpe e plebeia”, e as estórias nela contidas eram conhecidas também como literatura de cego. A autora assim escreveu: Ninguém sabe exatamente quando, em que quantidade e sob quais condições esses livros penetraram no Brasil-colônia. É provável que, como suas contrapartidas espanholas, tenham chegado com os primeiros colonos, mas é difícil garantir. Há provas de que a filial no Rio de Janeiro da Livraria Garnier, uma das editoras importantes de livros da França, conhecidos como littérature de colportage, começou a importar literatura de panfletos portugueses em meados do século XIX. As velhas estórias acerca de Carlos Magno, da Princesa Magalona e do Soldado Jogador tornaram-se assim rapidamente acessíveis aos leitores brasileiros da época. Apesar de ser provável que versões tantos orais quanto escritas dessas estórias circulassem no Brasil desde muito antes, o certo é que o folheto nordestino aproveita muito dessas importações do século XIX.70 Saber a origem de tudo é sempre um desejo do homem que deseja conhecer e resolver suas dúvidas. Mas nem sempre isso é possível. Quanto à precisão de quando, de fato, o cordel chegou por aqui é mais razoável apostar nas evidências e nas probabilidades, como indica Slater. Nesse sentido, mais do que o esforço pela exatidão, parece mais sugestivo e importante tentar compreender o significado desta expressão herdada do colonizador, bem como seu papel artístico e social na cultura brasileira. No que tange à força do cordel principalmente no Nordeste do país, Diegues Júnior assim defende: No Nordeste, por condições sociais e culturais peculiares, foi possível o surgimento da literatura de cordel, de maneira como se tornou hoje em dia característica da própria fisionomia cultural da região. Fatores de formação social contribuíram para isso; a organização da sociedade patriarcal, o surgimento de manifestações messiânicas, o aparecimento de bandos de cangaceiros ou bandidos, as secas periódicas provocando desequilíbrios econômicos e sociais, as lutas de família deram oportunidade, entre outros fatores, para que se verificasse o surgimento de grupos de cantadores como instrumento do pensamento coletivo, das manifestações da memória popular.71 Nessa perspectiva, Luiz da Câmara Cascudo denomina a literatura de cordel de a “literatura do povo.” Para ele a literatura oral, possuindo a característica de transmissão verbal, é anônima, visto que “seus elementos de formação constituem multidão, vindos dos horizontes mais distantes e das fontes mais variadas. A oralidade modifica, determinando versões locais, adaptações psicológicas e ambientais.”72 Para ele, a literatura de cordel ou literatura popular é “reflexo poderoso da mentalidade coletiva em cujo meio nasce e vive, retrato do seu temperamento, predileções, antipatias, fixando o processo de compreensão, do raciocínio e do julgamento que se tornará uma atitude mental inabalável.”73 É o que se poderia chamar de tecido social da história do povo e sua peculiar visão do mundo. 70 SLATER, op. cit., p. 10. 71JÚNIOR, Diegues M, op. cit., p. 6. 72 CASCUDO, Luíz da Câmara. Cinco livros do povo, pp. 10-11. 73 Ibid., p.13. 39 Sabendo da peculiaridade desta manifestação cultural no Brasil, é importante também pensá-la em contextos e lugares antes de chegar aqui. Diz-se que na Espanha este mesmo tipo de literatura era chamado de pliegos sueltos. Essa denominação passou à América Latina como hojas e corridos, através dos quais se veiculam “narrativas tradicionais e fatos circunstanciais – exatamente como a literatura de cordel brasileira.”74 Na França o mesmo fenômeno era denominado de littèrature de colportage, “literatura volante, mais dirigida ao meio rural, através dos occasionannels, enquanto nas cidades prevalecia o canard.”75 Outra fonte desta manifestação poderia estar na Alemanha, e data dos séculos XV e XVI: Na Alemanha, os folhetos tinham formato tipográfico em quarto e oitavo, de quatro a dezesseis folhas. Editados em tipografias avulsas, destinavam-se ao grande público, sendo vendidos em mercados, feiras, tabernas, diante de igrejas e universidades. Suas capas (exatamente como ainda hoje, no Nordeste brasileiro) traziam xilogravuras, fixando aspectos do tema tratado. Embora a maioria dos folhetos germânicos fosse em prosa, outros apareciam em versos, inclusive com indicação, no frontispício, para ser cantado com melodia conhecida na época.76 Isso para dizer que o cordel brasileiro tem uma tradição atrás de si, e seu poder “encantatório”, seu significo artístico e social vem de longa data. De novo se pode recorrer a Zumthor, quando ele ressalta o lugar dos “intérpretes” medievais: daqueles homens de outrora, portadores da voz poética, os quais tinham a vocação de proporcionar o prazer do ouvido para suas plateias.77 De modo que se pode inserir cordelistas e cantadores de todos os tempos na mesma linhagem desses homens, que fizeram de sua voz e de seu corpo a expressão da palavra poetizada. 1.4.2.1. Ciclos temáticos O campo da literatura de cordel é vasto. Até no que se refere ao próprio nome são várias as denominações, como: folheto, livrinho de feira, obra, cordel, romance etc. A esse respeito, a classificação popular mais frequente que se faz é entre folheto e romance. Isso se esclarece de acordo com o número de páginas de cada um. Assim, as publicações que contenham de 8 a 16 páginas são denominadas folhetos. As de 24, 32, 48 e 64 páginas são 74 MELO, Veríssimo de. Literatura de cordel, p. 10. 75 Idem. 76 Ibid., p. 11. 77 ZUMTHOR. A letra e a voz. p. 57. 40 conhecidas como romances. Nessa classificação não é menos densa a variedade de assuntos trotados. De acordo com Câmara Cascudo os assuntos são infinitos: Todos os motivos políticos, locais e nacionais fazem nascer dezenas de folhetos, todos em versos, quadras, ABCB, sextilhas, décimas. Rarissimamente aparece o folheto em prosa. Há o registro dos acontecimentos sociais, grandes caçadas ou pescarias, enchentes, incêndios, lutas, festas, monstruosidade, milagres, crimes, vitórias eleitorais. Há a série permanente ao redor dos temas que têm devotos, odisseia de cangaceiros, milagres de santos, prisão de bandidos famosos, fugas espetaculares, sonhos, visões ligadas ao “meu padrinho padre Cícero de Juazeiro (...).78 Evidentemente que se deve entender o posicionamento de Cascudo no seu devido contexto. Ele se refere ao cordel situando-o num tempo em que o gênero era exclusividade do sertão nordestino e com características tipicamente rurais. Hoje o cordel avança nas cidades e se adéqua aos assuntos da época e aos meios de publicação, por exemplo, a internet. Aliado a isso, há um novo perfil de consumidores, Como indica Luyten: Praticamente todos os pesquisadores e vendedores de folhetos referem-se com frequência à grande alteração no consumo de Literatura de Cordel, verificada sobretudo nos últimos anos. Muitos atribuem-na ao fato de os migrantes levaram consigo o gosto pelos folhetos para seu novo destino. Tanto assim que São Paulo, Rio de Janeiro e o Distrito Federal acabaram se tornando os novos centros de irradiação dos livretos.79 Nesse sentido, o autor apresenta como os novos consumidores do cordel estudantes universitários, estudiosos, profissionais liberais e turistas. Afirma-se ainda que entre esses se encontram, na sua maioria, os descendentes de nordestinos espalhados pelo Brasil que se interessam por suas raízes culturais, ao que defende: O Nordeste não é um país isolado: é o Brasil, no sentido de constituir a região menos submetida à influência de imigrantes europeus e japoneses, portanto mais luso-brasileira. Hoje, qualquer pessoa que deseje conhecer mais a fundo seu passado cultural-histórico deve consultar a arte popular nordestina, pois além de regional, é ela legetima e essencialmente luso-brasileira.80 Dessa forma, além do novo perfil consumidor, o cordel mais afeito ao mundo urbano, também se adéqua às temáticas características da cidade. “Uma das evidências é o aumento da produção de folhetos noticiosos e políticos, além dos pornográficos.”81 Nessa perspectiva de mudança do cordel é oportuno fazer uma breve menção às tentativas dos estudiosos em dividi-los em ciclos temáticos. Tendo em vista a variedade de temas que ele abarca, é possível considerar o cordel metaforicamente como uma colcha de retalhos; pensar a literatura de cordel como uma grande colcha colorida, confeccionada com vários tecidos, formando material que paradoxalmente é 78 CASCUDO, op., cit. p. 11. 79 LUYTEN, Joseph Maria. A notícia na literatura de cordel, p. 67. 80 Ibid., p.69. 81 Idem. 41 confuso e harmonioso, ordenado e anárquico, conservador e liberal. O interessante é a beleza e o papel que cada fio dessa colcha desempenha, formando a vastidão do imaginário popular e impulsionando para uma participação ativa no modo de dizer a palavra e transformar a realidade. Pois a literatura de cordel não é somente um meio de comunicação. Segundo Martín-Barbero ela é mediação. Por sua linguagem, que não é alta nem baixa, mas a mistura das duas. Mistura de linguagens e religiosidades. É nisso que reside a blasfêmia. Estamos diante de outra literatura que se move entre a vulgarização do que vem de cima e sua função de válvula de escape de uma repressão que explode em sensacionalismo e escárnio. Que em lugar de inovar estereotipa, mas na qual essa mesma esteriotipia da linguagem ou dos argumentos não vem só das imposições carreadas pela comercialização e adaptação do gosto a alguns formatos, mas também do dispositivo da repetição e dos modos do narrar popular.82 É a partir do cordel como mediação que se pode perceber uma de suas características marcante: o caráter combativo. Quem sabe isso seja pela liberdade com que o autor se permite diante da linguagem. Aos poetas parece importar dizerem a sua palavra e por meio dela explicar o mundo em suas várias facetas. Facetas essas que Liêdo Maranhão apresenta com as seguintes terminologias: “folhetos de conselhos, de eras de santidade, de corrupção, de cachorrada, de carestia, de exemplos, de discussão, de pelejas, de pião, de Antônio Silvino, de Getúlio, de Política, de safadeza, e folhetos de propaganda.”83 Já Ariano Suassuna dispõe a literatura de cordel, a que ele chama de romanceiro popular do Nordeste, dividida em dois grandes grupos: o da poesia improvisada e o da literatura de cordel. A última disposta em seis ciclos principais: “o heróico; o satírico, cômico, e picaresco; o de amor; o religioso e de moralidades; o do maravilhoso; o histórico e circunstancial e o de safadeza e putaria.”84 Nota-se, pois, tratar de uma temática densa e variada. No entanto, a divisão em ciclos temáticos não reduz a fertilidade peculiar desta expressão artística que deve ser livre de certa rigidez característica dos cânones literários acadêmicos. Ademais, um aspecto essencial da literatura de cordel é o fato de ser escrita em verso. As estrofes, a métrica, as rimas marcam o “índice de oralidade”, a voz em potência no texto. De modo que o cordel não é uma coisa feita de qualquer jeito, como às vezes se pensa. Há regras,85 inclusive rígidas, a serem observadas. O tipo de estrofe mais usado nos folhetos de cordéis são as sextilhas (estrofe de seis versos). Ou seja, é uma estrofe com rimas deslocadas, constituída de seis linhas, ou de 82 MARTÍN-BARBERO, Jesus. Dos meios às mediações: comunicação e hegemonia, p. 158. 83 SOUSA, Liêdo Maranhão de. Classificação popular da literatura de cordel, p. 14. 84 SUASSUNA, Ariano, apud Ibid., p. 12. 85 Citam-se alguns gêneros que compõem a métrica do cordel, conforme indica a Academia Brasileira de Literatura de cordel, acessível em http://www.ablc.com.br/historia/hist_cordel.htm, são: Parcela ou Verso de quatro sílabas, Verso de cinco sílabas, Estrofes de quatro versos de sete sílabas, Sextilhas, Setilhas, Oito pés de quadrão ou Oitavas, Décimas, Martelo Agalopado, Galope à Beira Mar, Meia Quadra etc. 42 seis versos de sete sílabas. Na sextilha, rimam as linhas pares entre si, conservando as demais em versos brancos. O exemplo clássico de composição assim se constata na estrofe que segue: Tinha as feições de fidalga era uma espanhola bela ele perguntou ao mouro quanto queria por ela entraram então em negócio negociaram a donzela.86 A sextilha constitui o melhor exemplo, uma vez que é a modalidade mais rica, sobretudo, nos Folhetos de Época ou de Acontecido,87 bem como nas sátiras políticas e sociais. Há, no entanto, outras tantas modalidades de gêneros na poesia popular brasileira; não é, porém, interesse alongar-se nesse aspecto. A partir desses pressupostos acerca da cantoria e do cordel que têm na oralidade sua razão de ser, “abrem-se as cortinas” e “entra em cena” o poeta Patativa do Assaré: misto de cantador e cordelista. Ou para ser mais preciso, diga-se Poeta e pronto. Ele é herdeiro de toda essa tradição dita até aqui. Poeta portador da palavra, “intérprete” dela, “homem, personagem, mito, enfim, poeta embevecido pela compreensão crítica do mundo.”88 É nesse sentido que se propõe agora averiguar sua trajetória. 86 ATAYDE, João Martins de. História da Donzela Teodora, p. 2. 87 O folheto de acontecido, de circunstância ou de época constitui um dos ciclos temáticos do cordel também chamado de gênero jornalístico. Amorim assim o apresenta: “Na classificação popular, coletada por Liêdo Maranhão, encontramos o folheto de acontecidos ou de época, cuja característica ‘é o seu aspecto jornalístico’ e os poetas mais representativos são ‘Joaquim Batista de Sena, do Ceará; Rodolfo Coelho Cavalcanti, da Bahia; José Soares, do Recife; e Francisco de Paula’, conforme registra Liêdo. Nos ciclos definidos por Ariano Suassuna, situados a partir de dois grandes grupos por ele propostos (o tradicional e o de ‘acontecido’), há o ciclo histórico e circunstancial. Para Roberto Benjamin, os fatos de época ou de acontecido são classificados como folhetos informativos. Na classificação de Manuel Diegues Júnior, os fatos circunstanciais ou acontecidos subdividem-se naqueles de natureza física, repercussão social, cidade e vida urbana, crítica e sátira, elemento humano. Orígenes Lessa considera os casos de época dentre os temas efêmeros que não sobrevivem a reedições. No catálogo de literatura popular da Casa de Rui Barbosa, basicamente elaborado por Cavalcanti Proença, tais folhetos encaixam-se na categoria ‘reportagem’.” (Cf. AMORIN, Maria Alice. O folheto de circunstância: 11 de setembro em cordel. Acessível em: http://www.revistas.uepg.br/index.php?journal=folkcom&page=article&op=viewFile&path%5B%5D=470&path %5B%5D=303. acesso em 24/3/09.) 88 Entre aspas é uma frase de apresentação sinóptica do curta-metragem PATATIVA (Animação / documentário, 2001, 10min, cor, 35mm), de Ítalo Maia. 43 CAPÍTULO II: PATATIVA DO ASSARÉ OU FRAGMENTOS DE UMA VIDA “Eu dêxo as línguas de lado Pra quem as língua aprendeu, E quero a licença agora Mode eu contá minha histora Com a língua que Deus me deu.”89 Há quem afirme que o conhecimento de determinada obra, seja ela artística ou científica, independe do prévio conhecimento de quem a produziu. Esse argumento poderia ser contestável quando se trata de Antônio Gonçalves da Silva, o Patativa do Assaré: a história de vida do poeta parece se confundir com sua poesia. Por isso, neste capítulo se objetiva fazer uma breve apresentação dele. Não se trata, porém, de uma pretensa biografia, tampouco é um discurso linear. A intenção é pontuar alguns fatos marcantes da trajetória do vate que parecem de considerável relevância para a “construção” de sua poética. Como afirma o filósofo Heidegger, “o artista é a origem da obra. A obra é a origem do artista. Nenhum é sem o outro. E, todavia, nenhum dos dois se sustenta isoladamente.”90 Nessa perspectiva, para “esboçar’ o poeta, optou-se por três palavras: A voz, o poeta e o profeta. Cada uma delas funciona, por assim dizer, como colunas que sustentam a abordagem na totalidade. O homem-poeta é também profeta feito voz a serviço da palavra poetizada. Profeta aqui não no sentido comum de predizer o futuro. Mas como artesão, ministro e artista da palavra; criador literário, para anunciar um mandato divino. A metáfora da voz sinaliza para a universalidade da poética: canto que ecoa pelo sertão. O sertão do poeta ultrapassa o estritamente local, universalizando-se tanto nos temas, na linguagem, quanto nos sentimentos contidos em cada verso. A “universalidade da região”, conforme Antônio Cândido,91 referindo-se a Guimarães Rosa, parece adequada ao poeta de Assaré, como se pode conferir em sua obra. No caso de Rosa, ele passeava pelas veredas dos sertões mineiros para daí colher inspiração para seu ato criador. Patativa era o próprio sertão, nasceu, cresceu e se formou na “escola linguística” sertaneja. De modo que na poesia patativana é o próprio sertanejo que fala. 89 ASSARÉ, Patativa. Inspiração nordestina. p. 33. 90 HEIDEGGER, Martin. A origem da obra de arte, p.11. 91 CÂNDIDO, Antônio. A educação pela noite, p. 162. 44 2.1. Poeta sertanejo Patativa do Assaré foi agricultor-poeta. Na mesma terra em que cultivou o grão de milho, de feijão, a raiz da mandioca, a semente de algodão também semeou a palavra vital. Vital porque na secura do sertão fez verter ‘água poética” de vida e beleza por meio de sua voz. Antes de ser “pássaro” e alçar voo pelo mundo da poesia, Patativa é Antônio Gonçalves da Silva (1909-2002), filho de pais agricultores. Nasceu na Serra de Santana, comunidade rural do município da pequena Assaré (cidade a 623 km de Fortaleza), ao sul do Ceará. É o segundo de uma família de cinco irmãos. Foi em mil e novecentos E nove que eu vim ao mundo, Meus pais naquele momento Tiveram prazer profundo, Foi na Serra de Santana Em uma pobre choupana, Humilde e modesto lar. Foi ali onde nasci Em cinco de março vi Os raios da luz solar 92 (...) Aos quatro anos de idade o pequeno Antônio ficou cego do olho direito, consequência do sarampo e pela falta de atendimento médico na longínqua Assaré. Com o passar dos anos, o olho esquerdo vê apenas vultos. Na velhice cega totalmente. Com isso, por “destino” ou consequência da luta pesada na lida da agricultura, ou pouca atenção médica, entra na “fileira” de cegos tão comum no mundo da poesia: Homero, Camões, Aderaldo,93 Borges e outros. Apenas para lembrar alguns, e considerando os dizeres de Zumthor, neles “atuaram as pulsações profundas que para nós significam, miticamente, figuras como Homero ou Tirésias: aqueles cuja enfermidade significa o poder dos deuses e cuja “segunda visão” entra em relação com avesso das coisas, homens livres da visão comum, reduzidos a ser para nós só voz pura”.94 Patativa, referindo-se à sua cegueira, assim declama: Nasci dentro da pobreza E sinto prazer com isto, Por ver que fui com certeza Colega de Jesus Cristo. Perdi meu olho direito Ficando mesmo imperfeito Sem ver os belos clarões. Mas logo me conformei 92 ASSARÉ, Patativa. Ispinho e fulô, p. 19. 93 Poeta cordelista cearense (1878-1967). Famoso na literatura de cordel. É referenciado, sobretudo, pelo clássico duelo poético: A peleja de Cego Aderaldo e Zé Pretinho. O duelo dos dois poetas foi registrado por Firmino Teixeira do Amaral no cordel de mesmo nome, como já referido aqui (pp. 31-32). 94 ZUMTHOR, Paul. A letra e a voz, p. 58. 45 Por saber que assim fiquei Parecido com Camões.95 (...) A pobreza a que o poeta se refere é mesmo a sociológica. Aquela que tira do homem a dignidade e o prazer de usufruir dos bens da terra: carência material, falta de recursos econômicos, carência social etc. Consciente da condição de pobre, e impossibilitado de ver os belos clarões, o poeta expressa autoestima: mostra afinidade com dois personagens de relevância universal: Jesus Cristo e Camões. Uma da religião, outra da literatura. Ser colega de Jesus na pobreza e parecer com Camões na cegueira é ter em si a segurança de um dever ou uma responsabilidade a cumprir. O ser pobre neste caso tem qualquer coisa de missão, de encargo; como o filho de Deus. Parecer com Camões, quem sabe seja o mesmo que dizer: tenho habilidade com a palavra, conheço a língua portuguesa, posso explicar o mundo. Dessa forma, o “prazer” de ser pobre se traduz na luta, na peleja com a palavra poetizada, anunciando esperança aos seus pares pobres que partilham consigo das mesmas carências, das mesmas “cruzes”. Por isso faz da palavra denúncia aos que esbanjam e acumulam para si as riquezas, quase sempre fruto do suor das multidões empobrecidas. Faz da palavra arma, sem, no entanto, ser panfletário, tampouco perder de vista a estética: “Não tenho tendência política, sou apenas revoltado contra as injustiças, que venho notando desde que tomei algum conhecimento das coisas, provenientes talvez da política falsa, que continua muito fora do programa da verdadeira democracia.”96 A esse respeito, um biógrafo do poeta, Gilmar de Carvalho, afirma que a sensibilidade crítica de Patativa, principalmente quanto ao descaso dos governos no que concerne à Reforma Agrária, não compromete em nada sua poesia: “Isso não fez com que perdesse a qualidade estilística”.97 Outro acontecimento marcante na vida de Antônio é a perda do pai. Além de um olho cego, agora a dor da orfandade. “Quando completei oito anos fiquei órfão de pai e tive de trabalhar muito, ao lado de meu irmão mais velho, para sustentar os mais novos, pois ficamos em completa pobreza.”98 A partir disso, imagina-se que essas perdas já na primeira infância tenham sido parte determinante para a formação de um “coração compassivo”, como se desde menino sentisse em si a “dor do mundo”, e depois tivesse de expressar em versos, fazendo seu também o padecer do outro: 95 CARVALHO, Gilmar de. Patativa Poeta Pássaro do Assaré, pp. 29-30. 96 Relato autobiográfico, cf. Inspiração Nordestina, op. cit., p. 12 97 Cf. Reportagem de Eduardo Sales de Lima. O tradutor centenário dos sertanejos. Brasil de Fato, p. 8. 98 Ibid., p. 11. 46 (...) Na mais dura privação Na minha casa era seis, Eu com os meus quatro irmão E mamãe na viuvez, Nós fumo criado assim Eu, José, Pedro e Joaquim E a nossa mana Maria No mais precaro vivê, Sem os donos do pudê Sabê se a gente inzistia.99 (...) Certifica-se que o poeta foi criado no mais precário viver, na lida diária da agricultura de subsistência na pequena propriedade deixada pelo pai, dividida entre os cinco filhos: Antônio (Patativa), José, Pedro, Joaquim e Maria. Patativa diz que não teve a triste sorte de viver em terras alheias, mas experimentou na pele a indiferença dos donos do poder que nem sabiam de sua existência e de seu padecer na luta pela sobrevivência. Mais tarde não demorará a emprestar a voz e a força de seus versos aos sem-terra, sem-teto, retirantes, menores abandonados, na defesa da ecologia e de todos os sertanejos e sertanejas injustiçados e excluídos pelas classes dominantes. Em seu poema reforma agrária é assim, ele declama: (...) Era só o que fartava Deus fez a terra pra gente Prantá fejão, mio e fava, Arroz, e toda semente, E estes latifundiaro Egoísta e uzuraro Sem quê nem praquê se apossa, E nós neste cativêro Sendo agregado e rendero Da mesma terra que é nossa100 (...) Para o eu-poético é inadmissível que a terra, que Deus fez para todos, seja propriedade apenas de alguns. Nesses e noutros vários versos de igual teor crítico o poeta denuncia as situações que desumanizam, escravizam o homem do campo. Patativa começou a trabalhar na roça desde a infância. Sua infância foi de sacrifícios e poucos brinquedos. Mas bem cedo uma janela de encantamento e beleza se abre para ele. Trata-se de seu contato com a poesia de cordel e a alfabetização. O horizonte da criação poética se vislumbra à sua frente. O menino Antônio está em meio às vozes da literatura de cordel, que na Serra de Santana “era peça obrigatória em todas as casas. Em quase todos os terreiros, se liam em voz alta as 99 ANDRADE, Cláudio Henrique Sales. Op. cit, p. 27. 100 PATATIVA, Assaré. Aqui tem coisa. p. 43. 47 histórias fantásticas deitadas na escrita dos folhetos.”101 O poeta relata a “magia” deste acontecimento: Quando eu ouvi alguém ler um folheto de cordel pela primeira vez, aí eu fiquei admirado com aquilo, mas no mesmo instante, eu pude saber que eu também poderia dizer em versos qualquer coisa que eu quisesse, que eu visse, que eu sentisse, não é? Comecei a fazer versinhos desde aquele tempo. Sim, a partir do cordel. Porque eu vi o que era mesmo poesia. Aí dali comecei a fazer versos. Em todos os sentidos. Com diferença dos outros poetas, porque os outros poetas fazem é escrever. E eu não. Eu faço é pensar e deixo aqui na minha memória. Tudo o que eu tenho, fazia métrica de ouvido. [...] A base era a rima e a medida. A medida do verso, com rima, tudo direitinho. Aí quando eu peguei o livro de versificação de Olavo Bilac e Guimarães Passos, aí eu melhorei muito mais. Eu já tinha de ouvido, porque já nasci com o dom, não é? 102 Ao entrar em contato com a poesia de cordel, o pequeno Antônio se encanta. Percebe que pode explicar o mundo por meio dela: poderia dizer em versos qualquer coisa que quisesse, que visse, que sentisse. A partir deste momento de “epifania” passa a ver o mundo, senti-lo com olhos e tato de poeta. A poesia se torna para ele o espaço da liberdade. Ela será seu “brinquedo” até mesmo nas horas de trabalho na roça. Sim, será distração, mas também peleja, briga, arenga com as palavras, semelhante a luta na batalha pela vida. Na expressão fazer versos em todos os sentidos pode estar implícita a revelação de sua capacidade criadora, imaginação fértil, dom de fazer versos “de cabeça” e deixá-los retidos na memória. Quando se refere à composição de A Triste Partida,103 diz: “Passei o dia trabalhando e pensando e deixando retido na memória. No outro dia, quando eu voltei à roça, eu terminei. Comecei como hoje, terminei como amanhã, viu?”104 Essa habilidade de memorizar é uma marca do poeta. É comum em entrevista ele se referir à capacidade que tinha de deixar os poemas retidos na memória, sem a necessidade de retoques no papel e a passagem imediata deles para a escrita. Isso certamente exigia exercício, treino intelectual. A Triste Partida, por exemplo, tem 19 estrofes, cada uma com seis versos, totalizando 114. Tudo retido na memória de um dia para o outro. Nesse sentido, a modo de reflexão, o poeta nos remete à antiguidade. No panteão grego havia uma divindade de nome Mnemosyne, memória. A memória era, pois, algo sobrenatural, divina. Ela tinha o encargo de presidir a função poética. O poeta era seu intérprete. Segundo Vernant, 105 a sacralização de Mnemosyne marca o preço que lhe é dado em uma civilização de tradição oral como foi a civilização grega. No caso de Patativa, é como 101 FEITOSA, Luiz Tadeu. Patativa do Assaré: a trajetória de um canto, p. 57. 102 Ibid., p. 39. 103 Composição musicada pelo cantor Luiz Gonzaga, conhecido como o “rei do baião”, em 1964. 104 Ibid. p. 48. 105 Cf. VERNANT, op. cit., p. 72. 48 se ele atualizasse essa tradição, pondo a memória a serviço da poesia, entregando-se a ela e deixando ser possuído pela “inspiração divina”, qual poeta do Mundo Antigo. Na citação acima o poeta deixa entrever que, além da influência da literatura de cordel, o tratado de versificação de dois parnasianismo, Olavo Bilac e Guimarães Passos, o ajudou muito em seu ato criador. Isso sinaliza para o movimento de circulação dos saberes. Mesmo ciente de que “já nasceu com o dom”, Patativa toma em mãos obras eruditas para se “aperfeiçoar”. É o que se procura anotar agora. 2.1.1. Poesia híbrida Patativa não nasceu poeta feito, nem sua poesia nascia do nada. Atrás de si tem uma fila de escritores e poetas sobre os quais entrou em contato, leu-os, imitou-os. Em poemas ele reverencia Juvenal Galeno, Catulo da Paixão Cearense, Castro Alves, Camões entre outros.106 Observa-se com isso a possibilidade de problematizar as categorias abissais, como por exemplo, de “pequena e grande tradição” propostas em 1930 pelo antropólogo Roberto Redfield e citadas por Peter Burke.107 Segundo esse modelo estratificado, grande tradição e pequena tradição são interdependentes. Não haveria, portanto, nenhuma possibilidade de trocas entre as duas. A primeira é detentora do saber cultivado em escolas e universidades. A segunda operaria sozinha, mantendo-se nas vidas dos iletrados, em suas comunidades e aldeias. Para Burke, o modelo de Redfield é um ponto de partida útil, mas passível de críticas. Sua definição da pequena tradição enquanto tradição da não-elite pode ser criticada, de modo bastante paradoxal, por ser ao mesmo tempo ampla e estreita demais, porque omite a participação das classes altas na cultura popular, que foi um fenômeno importante na vida europeia.108 Vê-se que Burke abre espaço para se pensar o movimento de reciprocidade, de interação cultural entre as tradições; e não somente numa via de mão única. Aliás, o mesmo autor em hibridismo cultural cita alguns teóricos que têm se interessado pelo estudo desse fenômeno nos últimos anos. Interessante que os próprios teóricos “eles mesmos muitas vezes são de identidade cultural dupla ou mista.” Homi Bhabha, por exemplo, é um indiano que foi professor na Inglaterra e que hoje está nos Estados Unidos. Stuart Hall, nascido na Jamaica de ascendência mista, 106 Conta-se que a ligação de Patativa com a literatura começou cedo. Leu, dentre outros, Camões, Eça de Quieroz, Padre Antonio Vieira, Fernando Pessoa, Machado de Assis, José de Alencar, Castro Alves, Olavo Bilac, Guimarães Rosa, José Américo, Casimiro de Abreu e Monteiro Lobato. (Cf. Reportagem de Iracema Sales. Pataiva 100 anos. Popular ou erudito? Jornal O Povo: Fortaleza, CE. 5/3/09. Disponível em: http://diariodonordeste.globo.com/materia.asp?codigo=619494. acesso em 27/3/09) 107 BURKE, Peter. Cultura popular na Idade Moderna, p. 51. 108 Idem. 49 viveu a maior parte de sua vida na Inglaterra e descreve a si mesmo como sendo “culturalmente um vira-latas, o mais perfeito hibrido cultural”. Len Ang se descreve como “uma acadêmica etnicamente chinesa, nascida na Indonésia e educada na Europa que hoje vive e trabalha na Austrália”. Nestor Canclini, que cresceu na Argentina mas vive no México [...]. Edward Said, palestino que cresceu no Egito, é professor nos Estados Unidos e se descreve como “deslocado”, onde quer que se encontre.109 Isso para dizer a importante tendência que se forma em torno dos estudos das trocas culturais. De forma que, a poética de Patativa também pode ser visualizada nesse movimento de relação intercultural. Não no sentido de deslocamento geográfico, como o exemplo dos teóricos citados. A poesia de Patativa é híbrida porque, entre outros fatores, o poeta interage pelas linguagens ditas popular e erudita. Como defende Gilmar de Carvalho, “a emissão simultânea da fala cabocla e a observância da norma culta, em Patativa, não significa um antagonismo, mas registros adequados a diferentes enunciações e a um mesmo projeto poético.”110 Nesse sentido, as duas perguntas que seguem parecem reveladoras: Gilmar de Carvalho pergunta:111 – E o senhor tem alguma preferência? Gosta mais de uma linguagem que de outra? Patativa do Assaré responde: – Não. Eu... eu gosto é porque quando eu apresento... ninguém sabe o que é o pensamento. Quase todo o meu poema matuto é apresentado por um analfabeto, num é? Aquilo ali eu quero mostrar ao povo, quero mostrar ao leitor que não é a filosofia não é uma coisa que ele vai aprender lá no colégio, na escola ou coisa não! É uma coisa natural que o camarada recebe como uma herança da natureza. Saber filosofar, saber dar certeza e isso e aquilo outro, viu? E é por isso que eu apresento sempre o caboclo. Pelo que se constata na fala do poeta ele está pouco interessado com as dicotomias entre as linguagens “clássica” e “matuta”. A ele interessa comunicar. Em outras palavras é como se dissesse que o pensamento deve ser livre.112 O saber do homem da roça, do “caboclo”, do analfabeto é importante tanto quanto o saber dos escritórios e dos espaços acadêmicos. Não se filosofa apenas na escola, nas universidades. O “matuto” tem liberdade 109 BURKE, Peter. Hibridismo cultural, pp.15-16. 110 CARVALHO, Gilmar de. Patativa do Assaré pássaro liberto. Disponível em PDF em: www.overmundo.com.br/download_banco/patativa-passaro-liberto-livro-de-gilmar-de-carvalho. Download em 4/4/08, p. 70. 111 CARVALHO. Patativa poeta pássaro, p. 46. 112 O pensamento como aqui na perspectiva do poeta parece de acordo com a concepção da pensadora Hannah Arendt, segundo a qual o pensamento é a faculdade constitutiva da pessoa humana na qual o homem orienta seu agir no mundo: “O pensar em seu sentido não-cognitivo, não-especializado, uma necessidade natural da vida humana, a realização da diferença dada na consciência, não é uma prerrogativa de uns poucos; é antes uma faculdade que está sempre presente em todos.” (Cf. ARENDT. A dignidade da política, p. 166). O pensar dessa forma é mais que a busca da verdade; é a busca pelo sentido das coisas. Diz a autora: “a manifestação do pensamento não é um conhecimento; é a habilidade de distinguir o certo do errado, o belo do feio.” (Ibidem.). Noutros termos, o pensamento é a faculdade pela qual o homem mais do que simplesmente conhecer e ter posse das “grandes verdades”, é a aptidão natural por meio da qual ele enche a vida de sentido. 50 para pensar e explicar o mundo com a linguagem que tem e domina. Segundo o poeta, aquela dada por Deus, “natural”. Por isso, livremente opta pelo discurso “matuto”. Tadeu Feitosa pergunta:113 – É engano meu, ou em todo poema que o senhor faz para alguém que tem estudo é feito na versificação erudita, clássica? Patativa do Assaré responde: – Faço do jeito que eu quero. Quando eu quero fazer clássico, eu faço [...] Olhe! Aquele, como eu fiz aquele, bem-feito, todo em decassílabos, porque foi um pedido de um latinista: ‘O purgatório, o inferno e o paraíso’. Aquele é em linguagem erudita. Constata-se que o poeta tem consciência das dicotomias que o mundo dos estudiosos faz a respeito dos saberes. Ao mesmo tempo em que afirma compor do jeito que quer, deixa entrever que leva em conta cada público. Para ele os clássicos são os “poetas niversitáro, de Cademia, de rico vocabularo, cheio de mitologia”, como expressa na já referida composição Aos poetas clássicos. Assim, se é possível escolher uma palavra que justifique essa característica qualidade do poeta, de saber dosar os saberes sem pedantismo, essa palavra é liberdade. Liberdade no ato criativo. É a liberdade que dá ao poeta a possibilidade de interagir e criar suas “teias de significados”, nos termos de Geertz.114 Nesse sentido das interações, parece importante também se referir a Canclini, segundo o qual as culturas se misturam e interagem. Para isso ele usa a palavra hibridização. Quanto ao conceito de hibridização, ele defende que se refere a “processos socioculturais nos quais estruturas ou práticas discretas, que existam de forma separada, se combinam para gerar novas estruturas, objetos e práticas.”115 De modo que, para o autor, nenhuma prática sociocultural é fonte pura. As fronteiras são tênues. Portanto, não haveria uma muralha intransponível entre o que se costuma chamar de popular e de erudito. Como enfatiza Eagleton, “todas as culturas estão envolvidas umas com as outras; nenhuma é isolada e pura, todas são híbridas, heterogêneas, extraordinariamente diferenciadas e não monolíticas.”116 Está, claro, pois, que não se trata de um “vale tudo” ou perda de autenticidade das expressões artísticas. A frase de Eagleton parece ser esclarecedora neste sentido. É dessa forma que também se pode conceber a poética de Patativa: ele bebeu das fontes letradas e procurou fazer a convergência dessas com o “saber popular”. Certamente não como os pesquisadores da classe intelectualizados, que nos dizeres de Antônio Cândido saíam “à caça das expressões do povo”, das “espécies em extinção”, anotando tudo que ouviam em 113 FEITOSA, op. cit., p. 211. 114 GEERTZ, Clifford. A interpretação das Culturas, p. 4. 115 CANCLINI, Nestor García. Culturas Híbridas. p. XIX. 116 SAID, E. Apud EAGLETON, Terry, A ideia de cultura, pp. 28-29. 51 suas cadernetas e fazendo, não raras vezes, caricatura da arte e do falar popular. Tal qual certo exotismo a que o mesmo autor afirma ter sido praticado por uma geração de escritores brasileiros, afeitos às modas europeias. Na perspectiva de Cândido, muitos escritores e intelectuais ofereciam aos europeus o exotismo que eles desejam ver, reduzindo “os problemas humanos a elemento pitoresco, fazendo da paixão e do sofrimento do homem rural, ou das populações de cor, um equivalente dos mamões e abacaxis.”117 No caso da arte de Patativa há mais uma defesa do tipo humano sertanejo. Em muitos poemas ele fala do sertão como quem fosse o próprio sertão. Um estudioso da obra de Patativa, Tadeu Feitosa, informa que o poeta ao ler “Os Sertões”, de Euclides da Cunha, impressionou-se com a primeira parte do livro, na qual se descreve a ecologia, a geografia do sertão. Mas na parte em que o escritor paulista começa a narrar sobre o povo e sobre a luta, Patativa percebeu que ele não retratava o código que realmente formava e identificava o sertanejo.118 Há em Patativa, por assim dizer, um espírito que o impulsiona a defender o sertão, sua paisagem e seus tipos humanos. Defesa apaixonada e, ao que tudo indica, muito consciente disso, pois ele lia seus “colegas” escritores. Ainda a respeito das interações de Patativa com outros saberes, ou se preferir, seu estilo híbrido, vale assinalar o que informa o linguista Marcos Bagno em sua novela sociolinguística. Referindo-se ao poeta do Assaré, diz: [...] muitos ‘eruditos’ confessam que gostariam de produzir versos tão simples e com uma riqueza de imagens poéticas condensadas em tão poucas palavras. Aliás, esta é a lição de arte poética sertaneja que um de nossos maiores poetas populares, o cearense Patativa do Assaré, nos dá em ‘Cante lá que eu canto cá’: Pra gente aqui sê poeta E fazer rima compreta Não precisa professô; Basta vê no mês de maio Um poema em cada gaio E um verso em cada fulô...”119 Nesse sentido, o que se constata na poética de Patativa é que há um eu-poético o qual permite o próprio sertanejo falar. Falar do seu jeito: na língua “matuta”. De modo que ele não imita a linguagem popular para fazer dela um mero artefato estilístico. Bebendo das duas fontes, o poeta não fez dessa forma de expressão motivo de zombaria ou estranheza, mas a fez instrumento legítimo de expressão, como uma voz que exige respeito e valorização às expressões que nascem da experiência do povo. Mas para tanto o poeta teve de trabalhar muito, afinar a melodia de seu canto, exercitar a linguagem e fortalecer as “asas” para alçar 117 CÂNDIDO, Antônio. A educação pela noite, p. 157. 118 Cf. Reportagem de Eduardo Sales de Lima. O tradutor centenário dos sertanejos. Jornal Brasil de Fato, p. 8. 119 BAGNO, Marcos. A língua de Eulália: novela sociolinguística, p. 64. 52 vôos seguros nos campos da poesia. Isso principalmente desde aquele dia em que recebeu o nome de pássaro. 2.1.2. O nome de pássaro Batizado com o nome de Antônio Gonçalves da Silva, depois “crismado” como Patativa, uma ave canora do sertão. Essa representação icônica da ave pequenina, de canto mavioso, foi cunhada pelo folclorista cearense Jose Carvalho de Brito, quando da viagem do jovem poeta ao Norte em 1928 (Pará e Amapá). Antônio contava 19 anos de idade e esta foi sua primeira viagem para fora do Ceará. A partir dessa viagem, com suas cantorias feitas em terras nortistas, sobretudo, a partir do encontro com o referido folclorista (correspondente do “Correio do Ceará”, jornal da época) a poesia oral do poeta teve seu registro escrito e publicado nesse periódico, bem como mais tarde mereceu um capítulo no livro “O Matuto Cearense e o Caboclo do Pará”.120 Nos versos publicados no jornal, Brito fez a apreciação da poesia de Antônio e compara sua espontaneidade ao canto sonoro da patativa do Nordeste. A respeito desse encontro Patativa recorda as estrofes ditas pelo folclorista na ocasião, em Belém do Pará: É ave que canta solta Inda mais canta cativa Seu nome agora é Antônio, Crismado por Patativa”.121 É, por assim dizer, a fórmula de um rito de passagem. Desde aquele momento o nome do poeta passa a ser divulgado e a ter a “marca” de um pássaro. O poeta ficou cerca de seis meses no Norte, declamando, cantando e fazendo a alegria dos conterrâneos sertanejos que migraram para lá, em busca de melhorias de vida, na efervescência da extração da borracha. Depois dessa temporada Antônio voltou à terra natal com a alcunha de Patativa. A breve estadia no Norte do país e o encontro com o folclorista José Carvalho de Brito foram significativos, ainda mais porque foi o início da divulgação, na imprensa, do poeta com nome de pássaro. De volta ao seu “laboratório poético”, seu paraíso, a Serra de Santana, Patativa continuou a lida na roça, ao mesmo tempo em que se aplicava na arte de compor e alçar voo no mundo da poesia. No início compunha para alegrar, divertir sua gente serrana. Atendia 120 Cf. depoimento de Patativa em Ispinho e Fulô, p. 10. De acordo com Gilmar Carvalho, trata-se de uma publicação de 1930, com segunda edição pela Imprensa Universitária do Ceará, em 1973. (CARVALHO, Patativa poeta passado do Assaré, p. 37). 121 Patativa declama este verso de José Carvalho de Brito quando do recebimento do epíteto de Patativa. (Cf. Ibidem. p. 38). 53 chamado para animar festas de batizados, casamento, participar dos desafios e repentes promovidos na região; cantava sertão afora acompanhado de sua viola. Muitos outros poetas com o nome de patativa surgiram na região. Justamente pela fama do verdadeiro Patativa. A fim de não ser confundido, o poeta acrescentou Assaré ao seu nome. “Patativa do Assaré”. Assim seria inconfundível. Essa imagem icônica fez ecoar seu nome: pelas ondas radiofônicas, pela fama dita de boca em boca, pelos festivais nas cidades do interior; e mais tarde pelas gravações de seu canto em disco,122 pelas aparições na mídia, pelas artes plásticas, pelo registro escrito e outros. No entanto, como poeta oral, a completude de sua obra se dava no momento da performance, “quando o corpo todo expressava o que ele dizia, e o homem de um metro e meio se agigantava, a voz se alterava e os gestos eram eloquentes.”123 Isso entendido nos termos de Zumthor, segundo o qual “a performance é a materialização de uma mensagem poética por meio da voz humana e daquilo que acompanha o gesto, ou mesmo a totalidade dos movimentos corporais.”124 E mais: “é virtualmente um ato teatral, em que constituem a presença de um corpo e as circunstâncias nas quais ele existe.”125 De acordo com o medievalista, o fato de que muitos artistas performem seus textos nos conduz a uma prática normal na Idade Média. Assim, ao analisar a poética de Patativa deve-se ter em vista, sobretudo, o dado de que se trata de uma obra que antes de tudo se deu pela mediação de seu corpo, através da voz, do gesto, do cenário. E que, estando hoje na escrita, leva em si suas marcas originais. De forma que, o estudo da poética patativana pede certo esforço imaginativo na perspectiva de pensar o poeta no ato performático: tom de voz, timbre, alcance, altura, registro, enfim tudo o mais que constitui a voz em cena, no sentido de apreender as sugestões contidas no “texto”. É o texto, portanto, que possibilitará a “porta” de entrada para ouvir o canto do poeta. 2.3. Letras livres 122 Alguns nomes que cantaram poemas de Patativa: Luiz Gonzaga (Triste Partida), Fagner (Vaca Estrela e Boi Fubá), Chico Buarque, Milton Nascimento e Cantores do Nordeste... (Seca D’água), Quinteto Agreste (Seu Dotô me conhece), Mastruz com Leite (O Boi Zebu e as Formigas), Alcymar Monteiro (Nordestino sim, nordestinado não), Daúde (Vida Sertaneja), Zé Vicente (A lição do pinto), José Fábio (16 faixas com poemas musicados de Patativa), Rolando Boldrin, Téo Azevedo, Zé Ramalho, Renato Teixeira, Pena Branca e Xavantinho, Gereba entre outros. 123 CARVALHO, Gilmar de. A voz poética do sertão, p. 85. 124 ZUMTHOR, Paul. Escritura e nomadismo, p. 55. 125 Ibid., p. 69. 54 No que tange à formação intelectual de Patativa, os relatos variam entre quatro e seis meses de aulas que ele teve na escola formal. Em sua autobiografia126 o poeta diz que com idade de 12 anos, frequentou uma escola muito atrasada, na qual passou apenas quatro meses. Em entrevista a Gilmar de Carvalho afirma que passou seis meses, somente. O certo é que o poeta ingressou já tarde na escola e a frequentou por pouquíssimo tempo. “Com seis meses eu aprendi a ler, então, dali em diante meus professores foram os livros, viu?”127 Sobre isso a referência é explícita no poema aos poetas clássicos:128 (...) Eu nasci aqui no mato, Vivi sempre a trabaiá, Neste meu pobre recato, Eu não pude estudá. No verdô de minha idade, Só tive a felicidade De dá um pequeno insaio In dois livro do iscritô, O famoso professô Felisberto de Carvaio129 (...) Depois que os dois livros eu li Fiquei me sentindo bem, E ôtras coisinha aprendi Sem tê lição de ninguém. Na minha pobre linguage, A minha lira servage Canto o que minha arma sente E o meu coração encerra, As coisas de minha terra E a vida de minha gente. (...) Os seis meses de escola representam a largada para o mundo dos livros. Os livros, aliás, têm lugar especial na vida e formação de Patativa: foram seus professores na solidão e no pouco tempo que lhe sobrava da lida pesada da roça. O poeta foi autodidata, leitor assíduo. Leu dos populares aos eruditos: Zé da Luz, Catulo da Paixão Cearense, Juvenal Galeno, Casimiro de Abreu, Castro Alves, Olavo Bilac, Guimarães Passos, Machado de Assis, Graciliano Ramos, Carlos Drumond de Andrade (embora não apreciasse a poesia deste autor, por não ter o recurso da rima) e outros. Teve especial apreço pela obra camoniana. Ele acrescenta: “Eu fui apenas alfabetizado. Agora fui um leitor assíduo, cuidadoso, curioso pra 126 Cf. Inspiração Nordestina. Op.cit. p. 11. 127 CARVALHO, Gilmar de. Patativa poeta passado do Assaré, p. 23. 128 ASSARÉ, Patativa do, Cante lá que eu canto cá, pp. 17 e 18. 129 Livro escolar adotado no país entre 1892 e o final da década de 50 do século XX. (Cf. CARVALHO, Patativa poeta passado do Assaré. p. 23. 55 saber das coisas. Aprendi a ler, queria ler tudo. (...) lia revista, jornal, os poetas da língua... até Camões, aquele Os Lusíadas (...).”130 E compõe: Aqui de longínqua serra De Camões o que direi? Quer na paz ou quer na guerra que ele foi grande eu bem sei exaltou a sua terra mais do que seu próprio rei e por isso é sempre novo no coração do seu povo e eu, que das coisas terrestres tenho bem poucas noções porque no tive dos mestres as preciosas lições só tenho flores silvestres pra coroa de Camões veja a minha pequenez ante o bardo português.131 Observa-se que nessa composição o poeta se mostra pequenino ante a grandeza do bardo português. A lista Longínqua serra, poucas noções das coisas terrestres, não teve dos mestres preciosas lições pode querer expressar o extremo entre o imortal português e ele. Embora diga só ter flores silvestres para coroa de Camões, o poeta mostra-se à vontade e íntimo com as palavras. Talvez por isso, atrás da modéstia quase enganosa ou falsa, brinque com aqueles que o consideram “analfabeto”, ignorante das letras. A evidência de sua habilidade com a poesia clássica, especialmente os decassílabos camonianos, pode ser conferida em muitas de suas composições. Um exemplo clássico é seu O purgatório, o inferno e o paraíso. Ainda nesse sentido, Castro Alves foi leitura preferida de Patativa. Certamente pela força social dessa poética, marca muito presente também na sua. Para ele, o condoreiro foi o maior poeta brasileiro. “Tanto era grande na espontaneidade, como no tema, porque o tema dele foi um tema muito honroso, que será lembrado em todos os tempos.”132 O tema muito honroso, sem dúvida, é a crítica à escravidão dos negros que o “poeta dos escravos” deixou como marca em sua obra e que para Patativa é fonte inspiradora, haja vista sua destreza poética em permitir que a palavra estética também seja denúncia. 2.3.1. Entre o “dom” e os livros No que se refere à criação poética, é frequente nas entrevistas e mesmo em suas composições, atribuí-la a um dom de Deus, somada à natureza, que é também fonte inspiradora, a grande mestra. Se não encontrou espaço para a aprendizagem na escola oficial, encontrou campo fértil na natureza. (...) 130 CARVALHO, Patativa poeta passado do Assaré. p. 24. 131 ASSARÉ, Patativa do, Digo e não peço segredo, p. 20. 132 CARVALHO, Patativa poeta passado do Assaré. p. 89. 56 Sem poder fazer escolhas De livro artificial, Estudei nas lindas folhas Do meu livro natural E assim longe da cidade Lendo nesta faculdade Que tem todos os sinais, Com estes estudos meus Aprendi amar a Deus Na vida dos animais 133 (...) O canto das aves, os encantos das matas, os animais, a natureza, Deus, são palavras que formam um quadro harmônico, telúrico. Para Patativa a natureza é presente divino, portanto espaço abençoado, sagrado, e como tal é belo. Percebe-se que lendo na “faculdade da natureza”, o poeta atribui seu saber a uma dádiva divina. No entanto, a história de sua vida mostra que ele não desconsiderou o empenho para aprimorar o “dom”. Envolto num universo de oralidade, bem como numa realidade marcada pelo analfabetismo, tinha clara consciência da importância do domínio da letra, num mundo regido por ela. Por isso mesmo, desde aquele primeiro contato por meio da audição do cordel, o poeta se deu conta que poderia traduzir sua compreensão do mundo por meio de versos. Supõe-se que a partir dali uma sede por conhecer mais profundamente despertou no seu íntimo, o que o teria deixado inquieto por compreender sempre mais. Vozes e letras passam a persegui-lo. Muito curioso para saber das coisas, tudo que eu lia eu guardava aqui na mente. Eu queria era ler as histórias, a vida da pátria e isso e aquilo, queria era saber das coisas, não queria saber de livro de concordância e isso e aquilo. Agora com essa prática de ler eu pude obter tudo, viu? Como se eu tivesse estudado, pegado livros didáticos, livros lá de colegas, essas coisas viu? Eu aprendi lendo. Com a prática de ler a gente vai descobrindo e sabe que nem pode dizer: tu sois e nós é. Eu aprendi com a prática.134 Nota-se que o poeta teve um apreço especial pelas letras. Muito além dos livros de “concordância”, interessava-lhe conhecer, saber mais e mais. Ele chega a dizer que com a prática da leitura pôde obter tudo. O “tudo” parece bem representativo: é como se dissesse que todo o seu aprendizado fosse resultado de um incansável empenho para ter posse do “letramento”135 e combinar este com o que é próprio da voz. A expressão “não queria saber de livro de concordância e isso e aquilo” pode ser uma referência à gramática normativa, que de 133 ASSARÉ, Patativa do. Ispinho e fulô, p. 20. 134 ASSARÉ, Patativa do, Digo e não peço segredo, p. 17. 135 Palavra que surge nos anos 80 no vocabulário da educação e das ciências linguísticas. Do inglês litery: letra. Do latim littera. O sufixo –mento denota o resultado de uma ação. Ao “pé da letra”, letramento é “o resultado da ação de ensinar ou aprender a ler e escrever: o estado ou a condição que adquire um grupo social ou um indivíduo como consequência de ter-se apropriado da escrita.”. (Cf. SOARES, Magda. Letramento: um tema em três gêneros, p.18). 57 certa forma aprisiona a linguagem ou a padroniza, privilegiando um seguimento específico da sociedade. Nesse sentido convém lembrar o que afirma o linguista Marcos Bagno. Segundo ele, a gramática ao invés de ser decorrência da língua, subordinada a ela, dependente dela, ao longo do tempo passou a ser um instrumento de poder e controle: A língua passou a ser subordinada e dependente da gramática. O que não está na gramática normativa “não é português”. E os compêndios gramaticais se transformaram em livros sagrados, cujos dogmas e cânones têm de ser obedecidos à risca para não se cometer nenhuma “heresia”.136 Dessa maneira, quando Patativa diz não querer saber de “livro de concordância” é como se estivesse criticando os instrumentos de poder e controle, que colocam de um lado os que falam “certo”, e de outro os que não alcançam o ideal de “perfeição” linguístico. Nessa perspectiva, Bagno critica vários “mitos” que os “cultos” insistem em divulgar e até impor com referência à língua. Um deles é o de que para falar e escrever bem é preciso seguir à risca a gramática normativa. Mito esse arraigado na cultura e que já deve ter feito muito estrago, bem como impedido que muitas expressões artísticas tivessem o respaldo que merecem. De acordo com o linguista, “a tarefa da gramática seria definir, identificar e localizar os falantes cultos, coletar a língua usada por eles e descrever essa língua de forma clara, objetiva e com critérios teóricos e metodológicos coerentes”137. Essa é uma crítica a muitos gramáticos brasileiros, que, segundo Bagno, estão mais inspirados em normas fictícias, num ideal lingüístico inatingível, do que em termos científicos. Ideal que nem mesmo os que apregoam determinadas regras conseguem atingir. Isso pode ser o velho ranço elitista que pretende resguardar apenas para uma seleta casta o que se denomina alta cultura. E Patativa parece ter-se dado conta desta “opressão” gramatical. Porém, não cedeu à subordinação. Foi fiel à língua falada. Isso se constata na totalidade de sua obra. No entanto, pelo “arsenal” vocabular e o uso de termos cultos, o poeta esforçou-se para fazer uma síntese entre as regras impostas pela escrita culta e o modo próprio da fala, que embora pareça fluir espontaneamente também tem suas sofisticações próprias. Era claro para o poeta que a gramática normativa ensina que não se pode dizer tu sois e nós é. Porém não se intimidou em expressar-se livremente, não se deixou aprisionar pelas imposições de determinadas normas, que, nos dizeres de Bagno, não passam de um “ideal linguístico inatingível”, uma vez que nem sequer têm base científica, mas são resultado de imposições dogmáticas daqueles que se consideram detentores da língua. 136 BAGNO, Marcos. Preconceito linguístico, p. 64. 137 Ibid., p. 65. 58 No que tange ao contexto geral da poesia patativana, percebe-se que sua prioridade é para a variedade linguística de sua região e o jeito peculiar do falar de sua gente. É como dissesse: a vida, as artes estão acima da gramática. Isso remete de novo à Grécia Antiga: a Ilíada e a Odisséia (já conhecidas no século VI a. C) nasceram da oralidade e foram, portanto, compostas muitas antes da existência de qualquer gramática normativa. Em todo caso é possível afirmar que Patativa do Assaré parece ter tido consciência do abismo que a gramática normativa impunha em relação à oralidade. E livre como o verdadeiro poeta o é, optou em dizer a palavra do seu jeito. Ademais, vale ressaltar que o aprendizado do poeta certamente não era somente resultado de sua genialidade, tampouco algo milagrosamente “caído do céu”, mas fruto de seu esforço, apreço, liberdade e paixão em relação à poesia. Isso evidentemente sem desconsiderar seu “dom natural”. No entanto, sua arte não era fruto do acaso, mas resultado, sobretudo, de seu interesse pelo saber; que como já foi dito, para o poeta estava muito além da paranoia do certo e do errado, da escrita e da fala e de outras inúmeras dicotomias impostas geralmente pelo universo culto. Um exemplo nesse sentido, aparentemente simples, no entanto significativo, é a singeleza com a qual o poeta expressa seu domínio no que diz respeito às sílabas poéticas: “A medida da poesia, a sílaba da poesia é diferente da sílaba da gramática, viu? Por exemplo: /quan-do-en-tro/, na gramática, são quatro sílabas, ao passo que na poesia são três, porque as vogais se unem, viu? /quan-doen-tro/ não é?”138 É como se o poeta mesmo quisesse mostrar sua habilidade e capacidade de circular pelos saberes: tanto o popular, quanto o cultivado pelas classes altas. Essa é, como já assinalado, uma faceta significativa na poética patativana. 2.3.2. A predileção de Patativa Patativa não se intimidou em mostrar o saber que usufruiu no contato com clássicos: “(...) eu li todo e aprendi aquela forma de versificação dos Lusíadas.139 É tanto que naquele meu poema O Purgatório, o Inferno e o Paraíso, a versificação é a aquela mesma (...) obedecendo a essa mesma tônica, essa mesma medida”.140 Pela estrada da vida nós seguimos, Cada qual procurando melhorar, Tudo aquilo, que vemos e que ouvimos, 138 CARVALHO, Patativa poeta passado do Assaré. p. 90. 139 Citado pelo próprio Patativa, de cor: “Das armas e barões assinalados, / que da ocidental praia lusitana, / por mares dantes nunca navegados, / ainda passaram além da Itapobrana, / entre guerra e perigos e corsários, / mais do que permitia a força humana. / E entre gente remota edificaram / Novo reino que tanto sublimara”. (Cf. CARVALHO, ibid., pp. 24-25). 140 Idem. 59 Desejamos, na mente, interpretar, Pois nós todos na terra possuímos O direito sagrado de pensar, Neste mundo de Deus, olho e diviso O Purgatório, o Inferno e o Paraíso. (...) É o abismo do povo sofredor, Onde nunca tem certo o dormitório, É sujeito e explorado com rigor Pela feia trapaça do finório É o Inferno, em plano inferior, Mas acima é que fica o Purgatório Que apresenta também sua comédia É ali onde vive a classe média. (...) Este é o Éden dos donos do poder, Onde reina a coroa da potência. O Purgatório ali tem de render Homenagem, Triunfo e Obediência. Vai o Inferno também oferecer Seu imposto tirado da indigência, Pois, no mastro tremula, a todo instante, A bandeira da classe dominante. 141 (...) Entre outras possíveis implicações nota-se nesses fragmentos que ao poeta importa o “direito sagrado de pensar.” Para ele a linguagem erudita ou a popular convergem para o mesmo lugar: o pensar. E esse direito sagrado é para todos. Não é apenas oferecido a um grupo de supostos eleitos. Cada um deve ter liberdade de expressão, que é dádiva divina. É, segundo a visão do mundo do poeta, um direito dado por Deus, desse modo é inalienável. No quadro geral dessa composição, observa-se que a maior parte é dedicada ao inferno. É nesse espaço que a narrativa situa os pobres e oprimidos, grupo pelo qual o poeta tem predileção e empresta a voz, numa crítica social incisiva ao sistema que os oprime. O inferno em que vivem os pobres seria fruto de uma forma opressora de política. Ademais, os exemplos a respeito de composições na linguagem chamada “erudita” são vários: Cante lá que eu canto cá, O retrato do sertão, Um sabiá vaidoso (aos poetas vaidosos) etc. No entanto, como um “pássaro” livre que é, ele escolhe a linguagem “matuta”. É como se o poeta se colocasse como porta-voz dos que se sentem sufocados pela hegemonia da letra, muitas vezes reservada apenas para poucos. Portanto, sente-se livre para falar nas duas variedades, abordando temas diversos, ciente de que seu interlocutor o entende, porque não está falando uma língua estranha. Assim, é possível afirmar que a estética de Patativa é convergente: saber popular e conhecimento dos livros, das letras clássicas, convergem em prol da expressão poética, especialmente dando eco à voz dos oprimidos, que também têm o “direito sagrado” de “dizer 141 ASSARÉ, Patativa do, Cante lá que eu canto cá, pp. 43-44. 60 a sua palavra”. E muitas vezes não conseguem. Não conseguem, talvez, porque se envergonhem de seu português considerado “estranho”, fora da gramática. E, sobretudo, porque lhes negam, roubam-lhes esse direito. Daí a licença poética de Patativa: Senhô Dotô, meu ofiço É servi ao meu Patrão, Eu não sei fazê comiço, Nem discurso e nem sermão Nem sei a letra onde mora, Mas porém eu quero agora Dizê com sua licença Uma coisa bem singela Que a gente pra dizê ela Não precisa de sabença (...) Se a terra foi Deus quem fez, Se é obra da criação, Deve cada camponês Ter um pedaço de chão, Quando um agregado solta O seu grito de revolta, Tem razão de reclamá, Não há maió padicê De que o camponês vivê Sem terra pra trabaiá (...) Escute o que eu tô dizendo, Seu dotô, seu coroné, De fome tão padicendo Meus fio e minha muié, Sem briga, questão, nem guerra, Messa desta grande Terra Uma tarefa pra eu, Tenha pena do agregado, Não me dêxe diserdado Daquilo que Deus me deu.142 Percebe-se a humildade e serenidade do oprimido. Ele pede licença ao opressor, a quem chama senhor doutor. Como a um súdito diante do soberano sabe a distância que os separa. Mas num ato corajoso pede um pouco de atenção para expressar seu pensamento. Diz: há coisas que para dizer não é necessário a sabedoria dos grandes. É claro para o oprimido o seu direto de possuir um pedaço de terra. É claro também que sua condição de empobrecido é resultado do latifúndio. Ele sente na pele, e para expressar isso não precisa de sabença, isto é, de palavreado complicado, de regras truncadas. E fechando seu apelo reclama o ressarcimento daquilo que Deus lhe deu: o direito de possuir a terra. Considera-se que o fato de Patativa do Assaré valorizar e não abandonar a variedade linguística de origem, além de ser uma opção, é também uma forma de ficar sempre próximo de seus pares, do sertão. E por meio de seus versos expressar o sentimento de pertença ao 142 ASSARÉ, Patativa do. Aqui tem coisa, pp. 141, 143, 145. 61 mundo e de inclusão nele. Poetizando sua aldeia, ele fala de todos os deserdados do mundo, certo de que sua palavra é capaz também de explicá-lo. 2.4. Defesa das Tradições Tendo a palavra/voz como arma, o poeta também se utiliza dela para preservar o espírito comunitário de sua “aldeia”, invadida pelo espírito individualista da modernidade. Um exemplo de composição de Patativa nesse sentido é o puxadô de roda.143 Nela o poeta evoca um passado festivo, comunitário, no qual a população rural vivencia festivamente o trabalho em mutirão nas “casas de farinha”.144 No entanto o progresso da técnica surge como ameaça a este modo integrado de vida familiar e à comunhão entre todos na comunidade. (...) Sinto o meu corpo gelá Meu coração triste chora Quando eu pego a me lembrá Das farinhadas de otrora, (...) Gritando e dizendo graça, Cantando e a jogá potoca, Eu fazia virá massa Um putici de mandioca; (...) Hoje tudo tá mudado, Tudo que é bom leva fim, Porém naquele passado Eu me orguiava de mim! (...) Pois ali, as cuzinhêra, Rapadêra e lavadêra, É cada quá mais contente, Dando risada gostosa, Alegre e dizendo prosa Jogando casca na gente. (...) Mas quando chegou na serra O danado do motô, Este estrangêro enxerido, Fazendo grande alarido, O meu prazer se acabou. (...) Motô, tu é um castigo! Bicho feio, sem futuro, Sou sempre o teu inimigo, Te dou figa e desconjuro Do mestre que te inventou, Mode este teu pôpôpô 143 Um clássico do poeta, com 590 versos. 144 Construção que já foi bem mais comum no sertão nordestino, feita especialmente para o fabrico de farinha de mandioca. 62 Que aborrece e que incomoda. Ninguém vê mais os caboco Que gritava dando soco Puxando os véio da roda.145 Percebe-se logo no primeiro verso uma lamentação por uma perda irreparável. Essa lamentação remete, por assim dizer, a temas de um romantismo de lamentos, assunto corrente no chamado regionalismo literário. No entanto, esse lamento tem sua razão de ser. Ele se faz porque algo primordial está sendo corrompido: um costume que une a comunidade e fortalece os laços de pertença a ela, aos poucos deixa o lugar para o “motor”, símbolo da técnica produzida pelo progresso da modernidade. Desse modo as “farinhadas”146 de outrora deixam de ser uma “celebração” que atualizava os costumes vivenciados pela comunidade, passando a ser um ato automático, portanto sem calor humano e sem nenhuma graça. Daí o repúdio até ao barulho do motor, que veio para destruir as tradições pelas quais o sertanejo preenchia a vida de sentido. Nesse contexto, entendem-se tradições na perspectiva apresentada por Prandi: os costumes presentes “na consciência coletiva dos grupos que delas são portadores, como normas implícitas ou direitos tidos como adquiridos no tempo (tapis roulant) e, como tais, inextinguíveis”.147 Parece ser desse modo que o poeta de Assaré se põe na defesa da prática “tradicional” de fazer a farinha de mandioca, reivindicando a maneira pela qual “sempre foi feita”. O reivindicar a maneira como sempre foi feita pode convergir para o que Hobsbawm chama de ‘tradição inventada’. Para o autor, a tradição inventada é um conjunto de práticas, normalmente reguladas por regras tácitas ou abertamente aceitas, visando “inculcar certos valores e normas de comportamento através da repetição, o que implica, automaticamente, uma continuidade em relação ao passado.”148 Uma leitura possível nessa perspectiva é de que a farinhada, por exemplo, mais do que um meio de subsistência, constituiria uma prática de natureza ritual, simbólica, criada no passado e tornada viva de geração em geração. Daí o lamento do poeta pela perda do sentimento de comunhão que era alimentado pelos trabalhos nas farinhadas. Essa perda pelo que o poema sugere seria consequência do isolamento que o motor, representante da modernidade, teria vindo causar. Nota-se aqui uma tensão. As tradições e a modernidade parece se debaterem. De fato, neste caso o motor é um elemento desestabilizador e representa bem o espírito moderno. 145 ASSARÉ, Patativa. Cante lá, que eu canto cá, pp. 342, 343, 347 e 348. 146 Muito além de um mero encontro de pessoas para realizar um trabalho, neste caso a fabricação da farinha de mandioca, a farinhada tinha um sentido de encontro comunitário de aproximação e fortalecimento dos laços afetivos. 147 PRANDI, Carlo. In Vida/morte – tradições: gerações, p. 166. 148 Cf. HOBSBAWM, Erick. A invenção das tradições, p. 9. 63 Se por um lado a tradição da farinhada recupera um passado mítico, que presentificava o tempo ciclicamente e atualizava num espírito festivo o tecido social de pertença comunitária, por outro, o motor compromete a solidez dessa vivência. A modernidade nesse sentido é uma ameaça. Isso vai ao encontro do posicionamento de Berman, segundo o qual a modernidade, embora prometendo aventura, poder e outras vantagens grandiosas, é ao mesmo tempo ameaça que pode “destruir tudo o que temos, tudo o que sabemos, tudo o que somos”.149 É nesse ambiente ameaçador que se encontra o puxador de roda do poema. A composição sinaliza para um tempo de mudanças culturais, sociais, econômicas, políticas e religiosas. Mudanças essas fomentadas e advindas da primazia da razão científica do Iluminismo, que produziu um novo modo de conceber o mundo, compondo o quadro de um período vasto e controverso chamado modernidade, no qual a poética sertaneja de Patativa está inserida também e toma partido como uma voz em defesa das tradições. 2.5. Voz profética do sertão O poeta quando questionado sobre como conseguia fazer poema com métrica perfeita, rima perfeita, ortografia perfeita, na forma literária e na “linguagem cabocla”, tinha a resposta pronta, na “ponta da língua”: “dom de Deus”. Esse dom, como já ressaltado, também foi cultivado com muito esforço, fruto de exercício e leitura. Leitura dos livros, das letras nas folhas de papel e nas “foia” do livro da natureza. (...) O meu livro é todo cheio De muita coisa incelente Em suas foia é que leio O pudê do Onipotente. (...) A Divina Providença Com o seu imendo pudê Deu ao home intiligença Foi pra ele se regê. 150 (...) Ao exprimir que sua poesia era “dom de Deus”, da divina providência, é como se sentisse vocacionado a uma missão sagrada,151 portador da palavra poética e profética. Patativa dizia com franqueza que o ato criador do poeta “é um segredo que nem o próprio 149 BERMAN, Marshal. Tudo que é sólido desmancha no ar, 15. 150 ASSARÉ, Patativa do. Ispinho e fulo, pp. 82 e 85. 151 No capítulo quatro se problematiza a questão do sagrado como visão do mundo em Patativa. 64 poeta sabe descrever!”152 Essa convicção de que a criação poética transcende definições meramente teóricas e carrega qualquer coisa do sagrado, pode ser uma das razões pela qual Patativa não quis “fazer comércio de sua musa”. E, além disso, tinha um “zelo sacerdotal”, um ciúme cuidadoso para que nada fosse acrescentado ou tirado daquilo que ditava para ser escrito no papel. Tendo em vista essa característica de Patativa, pode-se de novo referir-se ao Tempo Antigo. Sabe-se que os poetas e os profetas, sobretudo na Antiguidade grega, tinham muito em comum: ambos eram inspirados por uma força sobrenatural, divina. Se o poeta era possuído pela musa, o profeta o era pelo deus. Conforme Vernant, “entre a adivinhação e a poesia oral tal como ela se exerce, na idade arcaica, nas confrarias de aedos, de cantores e músicos, há afinidades e mesmo interferências. Aedo e adivinho têm em comum um mesmo dom de ‘vidência’”.153 Poetas e profetas ali tinham em comum também a cegueira. Esse era o preço pago pelo privilégio de poderem ver o invisível, o inacessível às criatura mortais. “O deus que os inspira mostra-lhes, em uma espécie de revelação, as realidades que escapam ao olhar humano.”154 Vernant destaca uma diferença entre os dois: o profeta devia quase sempre responder às questões referentes ao futuro, ao passo que o poeta orientava-se exclusivamente para o passado. Ambos sustentados pela memória. No caso do poeta, não o seu passado individual, e também nem o passado em geral como se tratasse de um quadro vazio, independente dos acontecimentos que nele se desenrola, mas o ‘tempo antigo’, com seu conteúdo e as suas qualidades próprias: a idade heróica ou, além disso, a idade primordial, o tempo original.155 Além disso, mesmo sendo inspirado pelas musas, e receber o dom divino de revelação e da presença no passado, o poeta não estava insento de uma exigente preparação e aprendizagem do estado de vidência. Até porque a improvisação durante o canto exigia fidelidade à tradição poética: regras próprias de composição oral, técnicas de dicção, emprego de expressões tradicionais, combinação de palavras, normas de versificação etc. Nesse sentido, dava-se muita importância aos exercícios mnemotécnicos, em particular à recitação de trechos bem longos repetidos de cor.156 Daí a presença sagrada de Mnemosyne, a deusa da memória, a fonte do não esquecimento. 152 CARVALHO. Patativa poeta pássaro. p. 84. 153 VERNANT, J. P., Mito e Pensamento entre os gregos, p. 73. 154 Idem. 155 Ibid., pp. 73-74. 156 Ibid., p. 75. 65 2.5.1. Artesão da linguagem Para os gregos o profeta é um porta-voz, inspirado por um deus e fala em nome desse deus. No mundo da Bíblia, o sentido é semelhante: “o profeta é um arauto, um porta- voz de alguém que lhe confia uma mensagem, que autoriza sua comunicação e garante sua veracidade.”157 Neste sentido, recorre-se à etimologia da palavra: profeta em hebraico é nâbhî', traduzida do grego, profêtês. Nâbhî' significa aquele que anuncia ou aquele que proclama a mensagem de outrem.158 No entanto, os profetas não eram apenas veículos de transmissão da palavra divina. Eles estavam, sim, a serviço dessa palavra, mas não passivamente, como meros repetidores. De acordo com Schökel, “o profeta precisa elaborar os oráculos com o suor da sua fronte, como consciencioso artesão da palavra profética.”159 De modo que, se nas confrarias de aedos e cantores gregos havia o treinamento para o domínio da língua poética, aqui no mundo bíblico também há o esforço de aprimoramento do discurso. Como ministro da palavra e artista da linguagem, o profeta utiliza linguagem já elaborada, linguagem que ele continua enriquecendo. Na sua língua, emprega formas tradicionais, gêneros conhecidos, esquemas convencionais; toma empréstimos e dá passagem a reminiscências; transforma e adapta cânticos tradicionais ou cria outros à imitação deles. Os profetas são criadores literários no meio de tradição.160 Desse modo, afirma-se que os profetas são também poetas. Sua palavra é a palavra poética, carregada de imagens e símbolos poéticos. Diz-se que “na história da humanidade houve poucas linguagens tão fecundas quanto a linguagem dos profetas bíblicos.”161 Além disso, nos dois casos, tanto no mundo grego antigo, quanto no mundo bíblico, é a oralidade, é a fala vocalizada que sustenta o discurso. E mais, a divindade se utiliza do humano como veículo para que sua palavra se cumpra, realize-se. “A palavra profética era antes de tudo acontecimento oral. Jamais os profetas pedem que suas palavras sejam lidas, sempre exigem: ‘ouvi a palavra do Senhor’.”162 A propósito disso convém citar algumas frases bíblicas, nas quais os profetas esbanjam criatividade imaginativa, e os artefatos linguísticos indicam o esforço desses agentes do sagrado na preparação e anúncio do discurso: “Não é fogo a minha palavra – oráculo do Senhor – ou martelo que tritura a pedra?”163 157 DA SILVA, Airton José. A Voz Necessária, p. 12. 158 Idem. 159 ALONSO SCHÖKEL, Luis e DIAS, J.L Sicre. Profetas I: Isaías, Jeremias, p.16 160 Idem. 161 Ibid., p.17. 162 Ibid., p.18. 163 Bíblia de Jerusalém. Jeremias 23, 29, p. 1908. 66 “Sereno silêncio envolvia tudo, e quando a noite chegou ao meio do seu percurso, a tua palavra todo-poderosa se lançou, como guerreiro inexorável, desde o trono real dos céus ao país condenado; levava a espada afiada de tua ordem terminante; deteve-se e encheu tudo de morte; pisava a terra e tocava o céu”.164 “Como a chuva e a neve descem do céu, e não voltam para lá, mas empapam a terra, a fecundam e a fazem germinar, para que dê semente ao semeador e pão para comer, assim será a minha palavra, que sai de minha boca: não voltará vazia para mim, mas realizará a minha vontade e cumprirá a minha recomendação.”165 “(...) que o direito flua como a água, e a justiça como arroio perene.” [...] “Vede que chegam dias – oráculo do Senhor – em que enviarei fome ao país: não fome de pão nem sede de água, mas de ouvir a palavra do Senhor.”166 Percebe-se a ênfase dada à palavra divina. Na primeira citação o profeta a metaforiza com a imagem do fogo e do “martelo triturador” de rochas. Em seguida a palavra se personifica em “guerreiro implacável”, poeticamente figurado como “exterminador”. Em Isaías a palavra toma uma imagem de tranquilidade, de sossego e fecundidade. Por fim, o profeta Amós a compara a um “rio perene”, que fecunda a terra continuamente. Põe em cena o direito e a justiça que devem fluir na sociedade humana assim como flui a palavra divina. A palavra profética é necessária; por isso, quem se descuida em ouvi-la poderá sofrer castigo: fome e sede da palavra. A palavra, nesse caso, é alimento de vida em plenitude. De posse disso, verifica-se que na poética de Patativa do Assaré pode-se afirmar que ele também foi um artesão da palavra, bem como um “agente do sagrado”. Considera-se a poética patativana como um misto de estética e profecia. Disse ele certa vez: “(...) o que eu li com mais prazer sempre eram as pregações de Jesus Cristo, viu? Eram os direitos humanos, o direito de cada um (...) A partir da doutrina de Cristo foi que me veio com muito amor, continuar fazendo verso dentro da verdade e da justiça, defendendo o povo”.167 Como porta- voz divino e inspirado por uma mensagem cristã libertadora, o poeta sentia-se no encargo de dizer sua palavra: uma palavra que segundo seus poemas tinha origem em Deus. (...) A minha rima faz parte Das obras da criação.168 Ademais se pode dizer que o poeta, a partir do chão “sagrado” da Serra de Santana, sua terra natal, lançou a semente como o semeador da parábola bíblica. Uma semente aparentemente pequeninha, mas que caindo em terreno bom produziu muito fruto. (...) Meu verso é como a simente Que nasce inriba do chão; (...) 164 Ibid., Sabedoria 18,14-16, p. 1569. 165 Ibid., Isaías 55, 10-11, p. 1812 166 Ibid., Amós, capítulo 5, 24; 8, 11, pp. 2216 e 2221. 167 CARVALHO. Patativa poeta pássaro. p.74. 168 Poema Cante lá que eu canto cá. Op. cit. p. 27. 67 Canto as fulô e os abróio Com todas coisas daqui: Pra toda parte que eu óio Vejo um verso se bulí. (...) Assim que óio pra cima, Vejo um diluve de rima Caindo inriba da terra.169 Nesses fragmentos e no poema todo é como que o poeta declamasse um “hino à criação”: rimas, ritmo, canto, tudo é dádiva, é dom supremo. Para o eu-poético o sertão é belo, é o espaço da contemplação. A poesia está em toda parte: nas flores, nos abrolhos. Ela cai do céu como um dilúvio de rimas em cima da terra, tornando a paisagem cheia de vida, pois em todo canto há um verso se bulindo. Patativa traduz o sertão pela beleza. Ao invés de uma imagem de dor, miséria, esterilidade, o sertão é belo, cheio de sonoridade, de vida. Se no sertão existe fome e miséria e outras mazelas, isso se dá noutra ordem: pelo descaso político ou por uma visão deturpada de quem o vê apenas na aparência e do lado de fora. O título mesmo do poema cante lá que eu canto cá parece indicar isso, ao que o poeta cobra sua autoridade de cantar o sertão: “(...) a dor só é bem cantada, / cantada por quem padece.”170 2.6. O último voo Com beleza e também peleja o poeta desde cedo passou a ver o mundo por meio da poesia. Mundo pequeno e também grande. Pequeno se considerado apenas o espaço geográfico, uma vez que o poeta não foi homem de longas viagens: nunca foi ao exterior. Pelo que se sabe viajou a algumas cidades do Brasil em eventos culturais para performizar sua lira. A única vez em que se ausentou da terra natal foi por ocasião daquela viagem ao Norte do país (1928), onde permaneceu seis meses apenas. Seu mundo é humano e a natureza é a origem de sua inspiração. No início de sua vida poética, qual menestrel cantou a, em e nos arredores de sua aldeia. Foi cantor de sua terra e “daí viria a sua universalidade. Espécie de intérprete da beleza, do sofrimento e dos sonhos do homem do campo. Ele afinou seu canto nesta perspectiva e, pássaro, soltou-se sem perder de vista sua inserção em uma realidade contraditória e perversa.”171 Por meio da literatura de cordel descobriu a força da palavra poetizada. Aos 16 anos com a venda de uma ovelha conseguiu comprar a primeira viola. Da junção cordel e cantoria foi tecendo a trajetória de compositor, cantor e improvisador, ao mesmo tempo em que seguia a lida de agricultor. Sua 169 ASSARÉ, Patativa do. Cante lá que eu canto cá, pp. 27-28. 170 Ibid., p. 26. 171 CARVALHO, Carvalho de. Patativa do Assaré – pássaro liberto. p. 15. 68 poesia é também canto que pede respeito e cobra o valor devido que essa profissão merece. Trabalhou na roça até os “sessenta e tantos anos”, como dizia quando lhe perguntavam até que idade trabalhara no roçado. Com sessenta anos de idade O destino me fez guerra, Fui residir na cidade Deixando a querida serra172 (...) Alguns motivos que o teriam obrigado a deixar o sítio pela cidade foram os problemas de saúde, e consequentemente a impossibilidade de trabalhar no roçado; além disso, para facilitar a divulgação de sua poesia, a cidade oferecia mais possibilidade para cumprir seus compromissos e atender ao público que o procurava. Mas de acordo com a informação de Sales Andrade, a motivação maior do poeta foi de que, morando na cidade, podia oferecer estudos aos netos: Mudei para cá por causa do estudo dos meus netos. Meus filhos todos pobres, com o estado financeiro muito fraco, viu? E eu que tinha mais jeito, passei para o Assaré para que os meninos estudassem, ficassem lendo e escrevendo. (...) Por que o analfabetismo é até um crime, é uma tristeza. Rapaz, o analfabetismo é, é uma tristeza, é um crime. (...)173 Eis a preocupação do poeta pela formação de sua prole, o desejo de oferecer horizontes de saber para os seus. Ele sabia mais que tudo da importância do domínio das letras para o exercício da cidadania e da liberdade. Daí o esforço para facilitar a alfabetização dos netos. O capítulo da constituição de sua família começara quando ele tinha 25 anos de idade: casou-se com Berlamina Paes Cidrão, com quem teve nove filhos. Para esposa, a quem carinhosamente chamava Belinha, assim declamou: Quem é esta mulher, de média altura Que mesmo tendo seus cabelos brancos Anda firme com os passos francos (...) se ela reza, contrita, é quase pia E na igreja comunga e se confessa Vou pedir-lhe que faça uma promessa Para a gente morrer no mesmo dia.174 Dona Belinha faleceu antes: aos 15 de maio de 1994. A esse respeito, uma das filhas do poeta, Inês Cidrão Alencar, 70 anos, assim se expressa: “Depois da morte dela, ele ficou muito triste e se trancou no quarto. Ele ficou lá, sozinho, e só abriu a porta quando as filhas chegaram”.175 Após oito anos o poeta pássaro também parte, faz seu “último voo”: morre aos 8 de julho de 2002. Dirá o poeta cordelista Olegário Alfredo: 172 ASSARÉ, Patativa do. Ispinho e Fulô. p. 22. 173 Cf. Andrade, Cláudio Henrique Sales. Patativa do Assaré: as razões da emoção, p. 59. 174 Cf. Digo e não peço segredo. Op. cit. p.122. 175 Cf. Reportagem de Eduardo Sales de Lima. O “Sinhorzinho” de Belinha. Jornal Brasil de Fato, p. 8. 69 Tinha noventa e três anos E a indesejada chegou Patativa desta terra Batendo asas avoou O seu verso para o mundo Num legado se tornou.176 Nessa sextilha o poeta diz que Patativa deixou um legado: ele voou, mas sua poesia fica. Convém lembrar que um dos últimos desejos do poeta, transmitido a Feitosa, foi de que sua obra pudesse ser estudada, especialmente pelas crianças: “Mas eu não quero que seja estudado como é na escola, não, estudar para fazer prova, estudar para ser cobrado; eu queria que estudassem para ser refletido”.177 Interessante esta observação do poeta que oferece uma boa pauta para se pensar a respeito do sistema educacional. Ele mesmo enfrentou o drama de sentir-se sufocado numa sala de aula, quando não a suportou mais do que seis meses. O desejo de que sua poesia seja estudada de modo livre e que gerasse reflexão aponta para esse legado mencionado no cordel acima. Outro colega, que também tem nome de pássaro, Roxinol do Rinaré, despede-se do poeta com este mote: Foi sempre muito afinado Seu canto, seu violão, Versejou sobre o sertão Com rima e verso afinado Por Deus lhe foi confiado Um dom p’ra cantar a vida Sua missão foi cumprida O Nordeste está de luto Por sua triste partida!178 O cordelista ressalta aspectos que merecem ser considerados. Quando ele menciona “rima e verso afinado”, lembra a habilidade de Patativa para lidar com as palavras e encontrar as rimas certas em suas composições. Isso certamente lhe exigia esforço. Há relato de que muitas vezes na roça, quando trabalhava em adjunto, calava-se e algumas vezes até se isolava dos colegas. Enquanto esses proseavam à vontade sobre os mais variados assuntos, o poeta “se debatia” com as palavras e as guardava na mente. À menção do violão, ao que tudo indica, não é bem ao violão que o cordelista se refere. O recurso parece ser mais pela rima -ão. Na verdade trata-se da viola, o instrumento que no início foi fiel companheiro nas cantorias de Patativa pelo sertão. Outro aspecto lembrado é a poesia como missão. O cordelista ressalta que ele recebeu de Deus o dom para cantar a vida. É justamente esta faceta que mais interessa a esta 176 ALFREDO, Olegário. Patativa do Assaré, o Camões do Nordeste brasileiro, p.8. 177 Cf. Reportagem de Eduardo Sales de Lima, op. cit., p. 8. 178 RINARÉ, Rouxinol do. Patativa do Assaré deixa o Nordeste de luto, p. 4. 70 abordagem: o poeta guiado por uma inspiração divina, assunto que será tratado no quarto capítulo. Tendo, portanto, procurado observar até o momento a capacidade de Patativa para compor de cor, interessa agora averiguar o processo pelo qual sua voz foi passada para o papel. Este é o assunto do próximo capítulo: considerar a convergência da voz do poeta para o texto escrito, bem como outros meios multimediais e estudos acadêmicos. 71 CAPITULO III: A VOZ NA LETRA “E, mesmo sem tê estudo, A minha fala segura Tem o valô da iscritura, Com selo, carimbo e tudo.”179 “A musa que cantava traduz-se numa escritora: ela, que requeria pessoas para a ouvirem, convida-as agora a ler.”180 Percebem-se por meio das publicações e através do senso comum, constantes referências à “memória prodigiosa” de Patativa do Assaré: “sabia de cor todos os poemas”. Isso é de domínio público: em jornais, revistas, sites e noutras reportagens na mídia. Até em qualquer conversa a seu respeito é provável que o assunto “memória” apareça. Sem a pretensão de averiguar a fundo o assunto, parece curioso esse traço que se foi difundindo ao longo da trajetória do poeta. Certa vez ele disse: Toda vida eu criei assim na imaginação. (...) Fazia na minha mente, pensava a história, aquele quadro aí, ia contar ele todo em verso, bem, com toda espontaneidade (...). Pensava a história na mente, depois era que eu ia passar pro papel.181 Não obstante sua capacidade de memorização, de decorar (etimologicamente, gravar no coração), o poeta devia saber da necessidade da escrita: “Depois de tudo era que se eu tivesse chance de publicar, eu mandava bater à maquina ou no tempo que eu mesmo escrevia, com a minha letra.”182 Entrevê-se aqui a convergência da voz para a letra. Por meio do escrito é que sua obra ficaria acessível à posteridade. Se não toda obra, ao menos parte, pois é provável que o poeta tenha levado para o túmulo composições que jamais tenham sido ditas. Sem falar nos versos que certamente se perderam nos lapsos da memória. Nesse sentido, embora o registro escrito não consiga expressar o todo da peculiaridade da fala, tendo em vista que a poética patativana foi antes de tudo um acontecimento oral, ao menos deixa em si, como lembra Zumthor, os “índices de oralidade” que o texto carrega. Assim, consideram-se neste capítulo suas principais coletâneas que da voz passaram à letra impressa no papel. É graça a esse material impresso ou à sua voz gravada que se pode estudar hoje a complexidade de sua poética, e no caso do viés desta pesquisar, observar os aspectos do sagrado nela. O objeto formal aqui é, portanto, o texto escrito. 179 ASSARÉ, Patativa. Melhores poemas. p. 41. 180 HAVELOCK, Éric A. A musa aprende a escrever. p. 79. 181 CARVALHO, Gilmar de. Patativa poeta pássaro do Assaré, pp. 50-51. 182 Ibid., p. 51. 72 Lembra-se, a modo de esclarecimento, que enquanto se apresentam as antologias, também se procura destacar alguns temas específicos dentre a variedade das composições. Além disso, aduzem-se referências no que tange ao estudo de sua obra pela comunidade acadêmica. 3.1. A verdade gravada nas folhas A primeira obra escrita de Patativa, Inspiração Nordestina, foi publicada em 1956 por Borsi Editor, Rio de Janeiro. O poeta tinha 48 anos de idade. A iniciativa partiu de José Arraes de Alencar, cearense radicado no Rio de Janeiro, filólogo e apreciador de poesia.183 Estando de férias na cidade de Crato, sua terra natal, ouviu Patativa recitando através da emissora local, Rádio Araripe. Fascinado e percebendo que se tratava de uma poesia digna de apreciação e divulgação, procurou o poeta e o incentivou a publicar. Num primeiro momento o poeta hesitou por não ter condições financeiras para custear a publicação. Mas Arraes insistiu e prontificou-se a cuidar inicialmente da parte financeira. Um amigo seu, Moacir Mota, datilografou os poemas ditados por Patativa que os tinha todos “arquivados” na mente. Com a venda dos exemplares o poeta foi quitando o investimento, e a partir dessa publicação sua poética foi tomando dimensões mais alargadas, superando as fronteiras do Ceará. O sucesso possibilitou uma segunda edição em 1966, com acréscimo de novos textos e o título Cantos de Patativa. Sobre a edição do primeiro livro o poeta expressou: “Aquilo foi um sonho realizado que eu nem sequer esperava na minha vida!”184 Em 2006, quarenta anos depois, portanto, esta obra foi relançada com o selo da editora Hedra de São Paulo. (São desta edição os textos citados neste trabalho: A coletânea contém 351 páginas, com 82 composições). O livro traz, logo nas primeiras páginas, uma autobiografia de Patativa escrita em 1955 para a primeira edição; constitui importante relato da vida do poeta. Não contempla, porém, o prefácio de José Arraes de Alencar, escrito também para aquela edição. Segundo informa Andrade, naquele prefácio Arraes enfatiza a importância cultural da obra de Patativa, tanto pela sua forma de linguagem “cabloca”, quanto pela escrita em “norma culta”. Assim o prefaciante teria expressado: Recitando-me inúmeras poesias de sua lavra e declamando ágeis improvisos e repentes, impressionou-me imediatamente, pela delicadeza e arrojo das imagens, pela suavidade lírica de muitos temas, pela mordacidade cortante de algumas 183 A esse respeito e sobre a obra de Patativa em letras, cf. Andrade, Cláudio Henrique Sales. Patativa do Assaré: as razões da emoção (capítulos de uma poética sertaneja), especialmente pp. 44-65. 184 CARVALHO, Gilmar de. Patativa poeta pássaro do Assaré. pp. 66-67. 73 composições, pela filosofia que ressumbra de quase toda a sua obra e, ainda, pelo fenomenal poder de sua memória.185 Esse testemunho de quem acompanhou e incentivou o poeta em sua primeira publicação parece relevante, pois é como se indicasse ter achado um “objeto” precioso que deveria a partir de então ser guardado com apreço, justamente por sua qualidade. De fato, a edição de Inspiração Nordestina marca um novo rumo na arte de Patativa. O livro também apresenta o texto de José Carvalho de Brito a respeito do poeta, publicado pela primeira vez em 1930, no livro O Matuto Cearense e o Caboclo do Pará. Esse texto, como já mencionado, foi outro material de considerável relevância para a divulgação inicial de Patativa e de sua poesia. Quanto ao Inspiração Nordestina em si, no primeiro poema, intitulado Ao leitor, o poeta assim se expressa: Leitô, caro amigo, te juro, não nego, Meu livro te entrego bastante acanhado, Por isso te aviso, me escute o que digo, Leitô, caro amigo, não leia enganado. (...) Tu nele não acha tarvez, com agrado Um trecho engraçado que faça uma escôia, Mas ele te mostra com gosto e vontade, A luz da verdade gravada nas fôia.186 O tema da verdade é recorrente em Patativa, e como tal está muito presente em sua primeira obra escrita. Daí a advertência ao leitor quanto à simplicidade de sua lira, no entanto essa teria a marca da verdade. A verdade na perspectiva do poeta tem a ver com sua missão de “escolhido de Deus” para defender o sertão e sua gente. Como herdeiro de um “saber natural”, de uma dádiva divina, seu encargo seria cantar os valores constituintes desse povo e denunciar as possíveis interferências destrutivas desses valores. Nesse sentido, não é custoso perceber que o livro está permeado de composições que ressaltam as tradições e costumes sertanejos, com suas festas, crenças, ritos e celebrações comunitárias. Poemas como: Eu e o sertão, Vida sertaneja, A foguêra de São João, O puxadô de roda dentre outros, se expressam nessa direção. Para tanto, o poeta antes de tudo se apresenta como O poeta da roça. Sou fio da mata, cantô da mão grossa, (...) Só canto o buliço da vida apertada, (...) Eu canto o cabôco com suas caçadas, (...) Eu canto o mendigo de sujo farrapo187 185 ALENCAR, José Arraes de. Apud. ANDRADE, Cláudio Henrique Sales. Patativa do Assaré: as razões da emoção, p. 45. 186 ASSARÉ, Patativa. Inspiração Nordestina, p. 13. 187 Ibid., pp. 14-15. 74 Sendo poeta da roça, canta na “linguagem matuta”, isto é, nos códigos comuns a seus pares, companheiros na lida, no sofrimento, nos sonhos e na esperança. Canta ainda o mendigo, sinalizando seu olhar também para o mundo urbano. Um traço marcante em Inspiração Nordestina é o ensinamento para a vida: há uma “lição de moral” em praticamente todas as composições. É como se o poeta se sentisse no papel de animador e guia de sua comunidade ouvinte/leitora. Em A escrava do dinheiro, por exemplo, ele apresenta os “estragos” que o dinheiro pode causar na vida de uma pessoa, se essa não souber fazer bom uso dele. A narrativa trata de uma sertaneja muita bela, de nome Regina. Regina era minha noiva, Meu amô, minha inlusão. A morena mais bonita Do meu querido sertão. Seus grandes óia prefeito Fazia quarqué sujeito Tropeçá no brocotó, Era vê no mês de maio Dois grande pingo de orváio Tremendo na luz do só.188 A moça, porém tinha um grave defeito: era escrava do dinheiro, só queria saber de luxo, de pulseiras, de colares. O namorado, por sua vez, era “um cabôco dos matos”, só possuía a roça e o cavalo de corrida. Sentia-se chateado com a obsessão da noiva, mas não tinha iniciativa para acabar o noivado porque “estava louco de amor” e queria muito se casar com ela. Já tinha preparado a casa e a data do casório estava até marcada, seria na festa do mártir Sebastião, em 20 de janeiro: data tradicional no sertão, propícia para um abençoado casamento. Porém, nas vésperas de Natal, quando todos celebravam a festa do nascimento do Filho de Deus e se divertiam, chega ao povoado um homem que, Pelo jeito parecia Que o sujeito era ricaço, Tinha um relojo no peito E ôto na cana do braço. E mais ôtas fantasias, Na hora que ele se ria A bôca189 era oro só, E além dos ôro dos dentes Uma bonita corrente Na gola do palitó.190 Pela descrição da aparência do sujeito e a mencionada tendência da bela Regina para o dinheiro, pode-se antever o desfecho da narrativa. Aos poucos a alegria que preenchia o coração daquele sertanejo apaixonado vai se transformando em amargura, pois o forasteiro 188 Ibid., p. 34. 189 No livro está escrito bôra, deve ser erro de grafia. Pelo sentido é mais provável que seja boca. 190 Ibid., p. 38. 75 não demorou a perceber o olhar ambicioso da moça para seus anéis e correntes de ouro, e fez questão de abrir a carteira abarrotada de notas de dinheiro. Foi a “gota d’água”: Regina se transformou E com inveja sem fim Piscava os óio pra cara, Sem querê sabê de mim.191 Enfeitiçada pelo dinheiro a moça “perde o juízo”, a capacidade de julgar e ter a liberdade de dizer: “isto eu devo fazer, isto eu não devo fazer”. Apenas vê as aparências e sem o mínimo de consideração pelo outro, neste caso seu noivo, ela vai embora com o forasteiro, deixando para trás uma história de afeto, aconchego familiar e comunitário. Parte para o desconhecido sem perspectiva alguma do que lhe pode ocorrer, interessa apenas a contingência ao alcance de seus olhos, age sem a razão porque é escrava do dinheiro. Assim, sua atitude não poderia ser considerada um ato livre, porque condicionada pela ambição de possuir; ela era serva da “grana” e do luxo. Desse modo o cantador conclui seu relato com uma lição de moral: Dinhêro é um fogo ardente Que faz munto coração Se derretê como a cera Na quentura do tição. Dinhêro tresforma tudo, Faz de um alegre um sisudo, Dá nó e desmancha nó, E finalmente o dinhêro É o maió feiticêro, É o Reis do Catimbó.192 O dinheiro pode ser interpretado aqui como metáfora de tudo o que escraviza a pessoa e tira a harmonia da comunidade. Nesse sentido, Regina é o protótipo de alguém muito condicionado, que tem os olhos turvados pelas influências exteriores, ou seja, ela preferiu as riquezas materiais vindas de fora ao valor local e à riqueza imaterial que seriam, dentre outros, os laços de amizade construídos ali na aldeia: o caráter do moço da roça, o tempo de namoro com ele, o carinho e suor com os quais ele e a família tinham preparado casa, marcado a data e planejado a festa do casamento. Além disso, o texto poderia ser visto numa perspectiva de tensão no que se refere às influências globais numa cultura local. O rapaz rico que chega ao povoado vem aparentemente muito “enfeitado”, mas suas intenções não são outras senão tirar a harmonia de uma cultura baseada no respeito e nas relações desinteressadas. O dinheiro, portanto, é o grande desestabilizador. O cantador, que é a vítima, sente-se no dever de contar sua história 191 Ibid., p. 40. 192 Ibid., p. 42. 76 para que ela sirva de lição. Na antepenúltima estrofe ele sinaliza que já “está velho e cansado”, mas essa dor experimentada na juventude ainda o faz padecer. Isso ressalta a dimensão do estrago e a gravidade de uma atitude que leva em conta apenas o dinheiro e não o amor, ou por outra, o valor da pessoa e do espírito comunitário. Desse modo, Inspiração Nordestina pode ser caracterizada pela defesa dos valores locais em tensão com outros valores externos. A tensão se dá, sobretudo, quando esses valores de fora chegam para escravizar o sertanejo. Tanto o escravizar materialmente, pela exploração do trabalho, quanto pela “invasão da mente”, isto é, pelas interferências de ideias contrárias à tradição local. Dizer a verdade, nesse sentido, é mostrar um sertão que, embora sofrido, é belo. Pode até ser pobre, mas tem em si a potência de assegurar aos seus a garantia de felicidade. Dizer a verdade ainda é fazer da voz um grito de denúncia a um modelo de política que prefere fechar os olhos às potencialidades do sertão e à força e resistência do sertanejo. Por isso, se diz que seu livro é a “verdade gravada nas folhas”, é o registro de um canto que se entoa em nome da aldeia e daí encontra brechas para o mundo. 3.2. O retrato do sertão Em 1970 Patativa apresenta aos seus leitores/ouvintes mais uma composição poética: Patativa do Assaré. O responsável pela seleção foi o professor e historiador cearense J. de Figueiredo Filho. Na introdução o professor esclarece: “É obra de parceria. O primeiro autor é o poeta PATATIVA DO ASSARÉ (sic). Sou apenas comentarista. O livro está entremeado de meus despretensiosos comentários, sorvidos igualmente da experiência, através dos sertões.”193 Uma característica importante da obra, além da poesia, são os relatos do poeta ditos em prosa. Já nos seus 61 anos de idade discorre sobre episódios de sua trajetória de vida e paixão pela poesia. Todo o seu cotidiano era motivo de inspiração, fosse para fazer graça, fosse para cantar com lirismo a dor ou a esperança. É isso que se pode notar numa visão geral do livro. Para introduzir o leitor em sua então mais nova obra, diz: (...) É ferro da mesma mina De Inspiração Nordestina E Cantos do Patativa (...) Êste livro tem o cheiro Da poeira do Sertão Quando passa um ano inteiro Sem cair chuva no chão. E tem a saudade e a pena 193 ASSARÉ, Patativa do. (Org. J. de FIGUEIREDO FILHO). Patativa do Assaré, p. 8. 77 Da sertaneja morena Que sofre ardente paixão, Mas, temendo algum enrêdo, Guarda consigo o segrêdo Na caixa do coração.194 (...) O livro é qual uma conversa não linear. É um diálogo no qual a poesia tem lugar principal. Ora fala o homem Patativa, ora o poeta Patativa, ora também Figueiredo Filho que apresenta possíveis significados de uma poética una e também múltipla, que leva o emblema da mágoa dos sertanejos e o sofrimento humano das injustiças e das épocas de calamidades climáticas. “Sentiu a tragédia da seca em sua própria carne. Seu pecado, que para mim é virtude, é desvendar sempre esse drama do Nordeste de que é protagonista.”195 A Divina Providência Sei que há de me perdoar, Pois, quem vive na indigência, Sem almoço e sem jantar, Perde a esperança e a crença, Em alegria não pensa Nem quer saber de cantiga. Aquele que está com fome Se esquece do próprio nome, Só se lembra da barriga.196 A estrofe é da composição Minha Reza, inspirada num contexto de calamidade climática que no interior do Ceará ficou conhecida como a “seca de 58”. O poema evidencia a generosa história de um senhor de nome Joaquim Ferreira dos Santos que, tendo boa reserva de milho, resolveu socorrer os sertanejos da vizinhança, vendendo milho fiado e sem prazo para pagamento. Porém, mais do que a bondade desse homem, é interessante observar a figura de um sertanejo que aparece anônimo, mas é dele a fala em todo o poema. Ele tinha cinco filhos para alimentar, e sem outro meio, resolve apelar ao “paiol de seu Joaquim”. Foi dormir pensando na ida no dia seguinte, porém acordou fraco, e para encontrar forças se ajoelhou em oração. Enquanto rezava não tirava o milho da memória. De repente, se deu conta que estava rezando “Glória Joaquim Ferreira dos Santos” ao invés de “Glória ao Pai, ao Filho e ao Espírito Santo”. Então procurou atentar mais na reza e recorreu à Santa Madre. De novo no momento do “glória” ainda conseguiu dizer glória ao Pai, mas ao dizer Filho, atrapalhou-se e deu-se conta que estava pronunciando: “Seu Joaquim, ainda tem milho?”, e conclui: E então, como quem se enfeza, Já bastante aperriado, Caçando na mente a reza Que mamãe tinha ensinado, 194 Ibid., p. 11. 195 Ibid., p. 15. 196 Ibid., p. 23. 78 Segui na mesma peleja: Bendito e louvado seja O cidadão verdadeiro, Pra sempre seja louvado Quem vende milho fiado No distrito do Barreiro.197 A louvação ao homem, que o poeta chama de verdadeiro cidadão, ilustra a total dependência do sertanejo, num momento sem reserva alguma para enfrentar o problema da seca e da fome. A alegria é tamanha que em sua reza confunde os nomes da divindade com aquele que o socorre, sinalizando assim para uma possível crítica no sentido de que o problema da seca não é somente culpa dos céus, e a solução está sobretudo nas mãos dos homens. Nessas e noutras composições Patativa mostra a face cruel da seca e os desmandos dos governos que se omitem no papel de criar políticas que atendam às necessidades seculares do semi-árido e dos que nele moram. No entanto, o sertão não é feito somente de secas, e isso fica evidente na totalidade da cantoria do poeta, especificamente na obra em questão. Em O retrato do sertão ele não poupa versos e rimas para cantar as belezas naturais e as riquezas sertanejas: Se o poeta marinheiro Canta as belezas do mar, Como poeta roceiro Quero meu sertão cantar198 (...) Essa composição pode ser considerada como verdadeiro hino de amor ao sertão. É também uma toada nostálgica de um tempo passado, um sertão ainda muito rural e que, embora envolto de carências materiais, nas palavras do poeta, pareceria mais belo e nele a vida comunitária fruía com muita mais naturalidade. É uma narrativa para as novas gerações não deixarem apagar um passado de luta, resistência e espírito festivo do sertanejo: nas noites enluaradas, nas debulhas de feijão, nas corridas de cavalo, nas noites de São João, e assim por diante. Mas isso não quer dizer que se trate somente de um canto de saudade. Trata-se ainda de um canto representativo de um sertão vivo, marcado pelo espírito alegre e cheio de fé, de um sertanejo que segundo as rimas do poeta é: Esta gente boa e forte Para enfrentar conseqüências, Que zomba da própria sorte Com sobrada paciência199 (...) 197 Ibid., p. 25. 198 Ibid., p. 38. 199 Ibid., p. 41. 79 Poder-se-ia afirmar que toda a obra patativana é um quadro, uma “pintura” do sertão, e este livro Patativa do Assaré é um resumo significativo disso, o essencial, como se costuma dizer a respeito da globalidade de uma obra. É, pois, o retrato do sertão, descrevendo os contrastes da vida sertaneja e, por vezes, tendendo para uma espécie de fatalismo, como se o sofrimento e o padecer estivessem determinados. Noutras vezes, essa visão do mundo é superada, e o destino do sertanejo aparece como uma constante transformação, anunciando um devir de esperança e prosperidade, tendo o sertanejo como sujeito de sua própria história. A obra do poeta não se permite fechar em um único ponto. Ela toma partido e ao mesmo tempo abre brechas para que o leitor/ouvinte tire suas próprias conclusões. 3.3. Outros mundos Poetas niversitáro, Poetas de Cademia, De rico vocabularo Cheio de mitologia; Se a gente canta o que pensa, Eu quero pedir licença, Pois mesmo sem português Neste livrinho apresento O prazê e o sofrimento De um poeta camponês.200 É com essas estrofes que em 1978 vem a público nova antologia de Patativa do Assaré: Cante lá que eu canto cá, pela editora Vozes. Dessa vez o incentivador da publicação foi o sociólogo Plácido Cidade Nuvens.201 Considera-se essa uma compilação da maturidade de Patativa. São 105 composições, das quais 66 inéditas com os mais variados temas sertanejos. Provavelmente seja a obra que mais visibilidade deu ao poeta, uma vez que se possibilitou a distribuição do livro pelo país. A publicação que se tem em mãos é de 2002 na sua 13ª edição. Na apresentação do livro, assim é dito a respeito do objetivo da obra: O objetivo é simples: documentar a presença marcante de Patativa do Assaré na história da cultura popular caririense em toda sua autenticidade original. (...) Apreendê-lo em sua originalidade mais autêntica. Tanto é que a ele mesmo foi confiada a tarefa de selecionar e ordenar os poemas. Assim, o leitor poderá senti-lo em sua força original e o estudioso procurará compreendê-lo in natura, sem comentários nem interpretações. Mesmo considerando a autonomia poética, dois estudiosos fazem a apresentação da obra: o antropólogo Francisco Salatiel de Alencar e o já referido professor Plácido Cidade Nuvens. Para o primeiro o canto de Patativa não é de protesto, nem de revolta, mas de 200 ASSARÉ, Patativa do. Cante lá que eu canto cá, p. 17. 201 O professor Plácido Cidade Nuvens também publicou Patativa do Assaré – um clássico, pela editora Província, em 2002. 80 compaixão. Em seus termos, a mentalidade do poeta “mostra-se sadiamente cristã, enraizada na tradição religiosa da Bíblia que vê, nos pobres e injustiçados, os prediletos de Deus, do Deus de Jesus Cristo Libertador.”202 Nesse sentido um dos traços característicos de Patativa seria a compaixão: uma poética devotada ao sofrimento da comunidade sertaneja excluída. Nessa perspectiva, é ilustrativo o poema Ingratidão em que o poeta se põe numa espécie de diálogo aberto com o Cristo, contando a ele o que se passou com um camponês oprimido. Mas ao mesmo tempo que se dirige ao Filho de Deus parece se comunicar também com uma plateia. Conta ele: A histora do pobre João, Aconteceu mesmo aqui, Nesta invejada nação, Nas terras do meu Brasí. Sem um raio de esperança Começou derne criança A trabaiá no roçado, Pro causa das consequença Dos home sem consiença, Já nasceu sendo agregado.203 O poema é composto de 19 estrofes, cada uma de dez versos, totalizando 190 versos. Nas sete primeiras estrofes o narrador se concentra no exemplo de Jesus Cristo, dirigindo-se a ele como modelo, por seu padecimento na cruz para o mundo melhorar. Refere-se às suas pregações na Palestina: de paz, amor e igualdade. Ressalta que para provar seu poder, Jesus fez aleijado correr e morto ressuscitar, e, além disso, no ápice do sofrimento perdoou aqueles que o mataram na cruz. O poeta, portanto, faz toda uma contextualização a respeito do Cristo para finalmente dizer que, apesar de todo esse empreendimento, a humanidade não aprendeu a ser feliz. Aprendeu a desenvolver-se no poder da ciência e até viajar à lua, mas descuidou na prática do amor: Tá tudo disinvorvendo Nas descobertas importante, Mas o sabido vivendo A custa do inguinorante. (...) O “sabido” no contexto da narrativa é um patrão que cruelmente explora o pobre João e sua família, na dura lida da fazenda. Sucede que certo dia, enquanto João cortava uns galhos secos de um cajueiro, caiu lá de cima e “esbagaçou a bacia” na terra dura, ficando impossibilitado para o trabalho. Se o patrão já era carrasco, ainda mais o será depois de tal acidente: abandona o operário na hora em que mais precisava de socorro. João fica numa situação de total abandono em quarto de hospital, vivendo verdadeiro calvário, e só conta com 202 Ibid., p. 10. 203 Ibid., p. 192. 81 ajuda das “mué piedosa”. Interessante esse detalhe quanto à presença da mulher na “via crucis” de João. Na narrativa bíblica as mulheres estão muito presentes no caminho de Cristo até a crucifixão.204 Para completar ainda mais sua situação de abandono, o operário nem sequer tinha “a cartera do sindicato Rurá”. Ou seja, estava totalmente desprovido de qualquer proteção da sociedade, portanto, um homem sem cidadania, excluído. Assim, a partir desse quadro feito pelo poeta, tendo como ponto de partida a pessoa do Cristo em contraposição àqueles que o mataram, poder-se-ia concluir que nesse caso João seria “outro Cristo” hoje; e o patrão, que é nomeado no poema de “fazendeiro judeu”, o sistema injusto que escraviza pessoas em nome do progresso, e que só vê essas pessoas enquanto podem produzir. Daí a conclusão de Patativa: Todos sofrimento e dô Que isiste no mundo intêro Não é sô do moradô Da queda do cajuêro, Do pobre João agregado; Este mundo de pecado Tá todo cheio de João Padecendo vida amarga A serviço do patrão.205 Dessa maneira, o sofrimento e a dor de alguém nos rincões do sertão, aqui representados na pessoa do operário João, é também o padecimento de quem é pobre e explorado no mundo inteiro. E como quem tem a posse de uma voz necessária, porque portadora da verdade, o poeta brada noutra composição intitulada Eu quero: Eu quero o agregado isento Do terrível sofrimento, Do maldito cativeiro, Quero ver o meu país Rico, ditoso e feliz Livre do jugo estrangeiro.206 Esse poema é também elucidativo quanto ao aspecto compassivo da poética patativana. É nesse sentido que a compilação Cante lá que canto cá se apresenta na sua totalidade, revelando uma sensibilidade poética enraizada no sertão que se reveste de força contestatória, tomando para si as dores da comunidade dos que sofrem. Além disso, o poeta em suas composições e visão do mundo vislumbra aspectos do cotidiano camponês, que para a multidão poderiam passar invisíveis, pois aparentemente secundários e efêmeros. Isso, 204 Na tradicional “via-sacra” celebrada pelos cristãos na sexta-feira da Paixão há três Estações em que as mulheres se fazem presentes: na Quarta Estação Jesus se encontra com sua Mãe; na Sexta Estação Verônica limpa o rosto de Jesus, e na Oitava Estação Jesus encontra as mulheres de Jerusalém. 205 Ibid., p. 195. 206 Ibid., p. 117. 82 porém, no olhar do poeta torna-se lampejos de inspiração e fonte para a enunciação de uma palavra duradoura. Como ensina Coutinho, o poeta é capaz de absorver as experiências dos semelhantes, colocá-las dentro de si, torná-las suas próprias graças à simpatia imaginativa. Destarte, o que ele traduz são os sentimentos da comunidade também, e por isso ele lidera pelo seu canto, que é de todos. O poeta fala não apenas em seu nome, mas exprime os instintos universais da humanidade.207 Seria justamente nesse sentido que o poeta de Assaré entoa seu canto, traduzindo nele a dor, o abandono, o “peso da cruz”, bem como a esperança e a alegria que o sertanejo leva dentro de si. De acordo com Plácido Cidade Nuvens, em seu texto de apresentação a Cante lá que canto cá, a poesia patativana apresenta as crenças, os valores e os ideais de uma época e de uma região, descrevendo com perspicácia a realidade social. Ele considera que a partir do próprio título da obra se antevê a visão do mundo do poeta: mundo que o sertanejo intui dividido não entre cidade e campo, mas entre suas formas de ser, as duas culturas, uma rural e outra urbana, com uma, a cultura urbana, invadindo avassaladoramente todos os rincões dos campos e gerando um conflito cultural de consequências incalculáveis para a cultura do povo.208 Mas se pode notar que a visão desses dois mundos vai além do que se pode chamar tensão cultural entre cidade e campo. Patativa capta de modo muito evidente “outros mundos” e outros conflitos. Trata-se daqueles que dividem as classes sociais no Brasil. A composição Brasi de cima e Brasi de baxo revela bem isso. Com 12 estrofes de 10 versos cada, o poeta discorre sobre “dois brasis” muito distintos. Interessante que nesta obra o narrador não está no sertão, ele se encontra na cidade do Rio de Janeiro. O enredo começa com um diálogo entre o narrador e um personagem de nome Zé Fulô. A primeira constatação do narrador ao seu interlocutor é a de que a miséria que ele vê no Sul tem as mesmas características da do Norte. (...) tem o Brasi de Baxo E tem o Brasi de Cima. Brasi de Baxo, coitado! É um pobre abandonado; O de Cima tem cartaz, Um do ôtro é bem diferente: Brasi de Cima é pra frente, Brasi de Baxo é pra trás.209 Para o poeta, o Brasil de cima é o da opulência, lá só se fala em progresso, de riqueza, produção, indústria, descobertas, invenções; há orquestra e banquete regidos a uísque e “finas iguarias”. Além disso, os que fazem parte desta instância sabem muito bem espalhar suas propagandas em alto e bom som. Enquanto os do Brasil de baixo todos passam as mais 207 COUTINHO, Afrânio. Notas de teoria literária, pp. 84-85. 208 Cante lá que canto cá. p. 13. 209 Ibid., p. 272. 83 duras privações: são despejados de casa, o salário é mesquinho, não tem direito nem sequer de dizer a verdade, ou seja, se os de lá podem dizer sua palavra em alto e bom som, os de cá não têm direito à voz, suas opiniões jamais aparecem publicadas em jornais. No Brasil de Baxo eu vejo Nas pontas das pobre rua O descontente cortejo De criança quage nua. Vai um grupo de garoto Faminto, doente e roto Mode caçá o que comê Onde os carro põe o lixo, Como se eles fosse bicho Sem direito de vivê.210 Há nesse poema, além da constatação de dois “países” extremos, bem distintos, a utopia de que um dia os que estão em situação de abandono, feito “filho sem pai e sem mãe”, possam finalmente ter acesso aos mesmos privilégios que até então foram prerrogativa apenas do Brasil de cima. Ao que o narrador sugere: Tarvez ainda aconteça Que o Brasi de Cima desça E o Brasi de Baxo suba (...) Brasi de Baxo subindo, Vai havê transformação Para os que veve sentindo Abandono e sujeição.211 (...) Há, pois, uma mensagem de esperança em meio a uma realidade de desenganos, há um sonho de um Brasil dos brasileiros. Para isso o Brasil de baixo teria que subir. Isso parece indicar que assim como quem verdadeiramente sabe cantar o sofrimento do sertão seria somente aquele que padece e conhece o sertão, assim também a mudança esperada no Brasil de baixo somente poderia ser concretizada pela classe do que o compõe. Interessante ressaltar o que o poeta constata: a miséria no Brasil de baixo é a mesma presente no Norte e no Sul, isto é, a miséria apenas muda de cenário, mas o padecimento é comum. Dentre outras composições de igual força social, convém relembrar o Inferno, o Purgatório e o Paraíso. Nessa o poeta traça a pirâmide do Brasil em três níveis: no inferno estão os pobres; no purgatório, a classe média, e no paraíso os ricos. Em todos, o canto do poeta é em favor dos que mais sofrem. Esse é um dos tons da toada em Cante lá que eu canto cá. Mas há muitos outros tons na totalidade da obra. O leitor livremente o saberá perceber. 210 Ibid., p. 273. 211 Ibid., p. 274. 84 3.4. Sobre destino e liberdade Em 1998 Patativa publica mais uma coletânea de poemas, Ispinho e Fulô: são 79 composições, das quais 71 inéditas. O volume foi editado pela primeira vez pela Imprensa Oficial do Ceará (IOC). O volume conta logo na abertura com um depoimento autobiográfico do poeta, concedido ao cineasta Rosemberg Cariri, que foi o articulador da antologia e também dirigiu um curta sobre Patativa no mesmo ano. A editora Hedra reeditou esta compilação em 2005 em sua coleção literatura popular. Na grande maioria dos poemas é notável o viés social, com evidência para o problema dos camponeses que não têm terra. Poemas como, A terra é nossa, Reforma agrária e Lições do pinto vão nessa direção. Também Antônio Conselheiro e O Beato Zé Lourenço, duas personagens representativas referentes à luta e conflitos pela terra nos sertões, figuram nesse sentido. Porém, dessa vez, o poeta ao invés do famoso cante lá que eu canto cá, prefere declamar canto aqui e canto acolá. Ou seja, embora o sertão seja sempre sua fonte inspiradora, seu olhar agora também se volta para a cidade, precisamente para os problemas que afligem os mais pobres, pois é para lá que acorrem os retirantes sertanejos. No poema O agregado e o operário, o poeta assim se expressa: Procurando resolver Um espinhoso problema Eu procuro defender No meu modesto poema Que a santa verdade encerra, Os camponeses sem terra Que o céu deste Brasil cobre E as famílias da cidade Que sofrem necessidade Morando no bairro pobre.212 O livro, no entanto, não pode ser considerado simplesmente como um manifesto político partidário. Ele é mais que esse aspecto. Trata-se de uma poética política no sentido clássico do termo, isto é, tendo em vista o homem como um ser político. A relevância política da obra é justamente neste sentido, porque o poeta faz emergir de seu meio social uma palavra que nasce a partir da realidade do povo. Além disso, é importante observar o modo criativo como a poesia é articulada: a sensibilidade e a lucidez com que o poeta lida com a linguagem deveria ser o item primordial de nota, pois ele antes de tudo é um especialista da linguagem e de forma autêntica compõe a poética . Nesse sentido, a narrativa em modo de fábula encontra relevo nessa obra de Patativa. Por exemplo, em A garça e o urubu ele trata do preconceito de cor de um modo muito 212 ASSARÉ, Patativa do. Ispinho e Fulô. p. 303. 85 simples, densificando em poucos versos um problema secular e de difícil abordagem. Qualquer criança que lesse/ouvisse esse poema, certamente aprenderia que as diferenças de cor não seriam empecilho para a boa convivência em lugar nenhum no mundo. Em O Boi Zebu e as Formigas ensina que não importa a aparência da força, importa mesmo é a organização e o trabalho feito em união. Por mais que a força oposta se apresente poderosa, o povo organizado, todo junto, pode muito mais. Já em O galo egoísta e o frango infeliz, a triste sorte de um frango e o poder irrepreensível de um galo é particularmente curiosa. Poder-se-ia dizer que nesse poema ele mescla linguagem do sagrado, erotismo, sociologia entre outros aspectos. Dito de forma geral o enredo trata de um frango que, vivendo numa “estrutura social” repressiva, resolve ter com o seu senhor, um cruel galo “comandante do terreiro”, a fim de cobrar seus direitos. Ocorria que, mesmo sendo já “donzelo frango”, vivia, porém, sem gozar prazeres com galinha alguma. Para isso precisava da permissão do “imperador” do galinheiro, que tinha três dezenas de galinhas apenas para o seu “gasto”. Sendo impedido de viver dentro das “leis da natureza”, restava ao reprimido frango alimentar a esperança de que seu problema fosse resolvido pelo “mandatário”: (...) Com o fim de fazer esta conquista Muito alegre o seu sonho alimentava. A seiva galinácea borbulhava Mostrando o sangue na vermelha crista.213 (...) Aflito ante o poder do chefe e sempre temeroso de seus “cruéis esporões”, mesmo assim encontrou forças para expressar o que pensava. No entanto sua atitude foi considerada atrevimento e desrespeito às “sagradas penas” de Sua Alteza, o Galo. E esse aproveitou o ensejo para fazer solene discurso em que todo o terreiro se fez ouvir e até os pintinhos o ouviram com respeito. Discorreu sobre sua própria vida, como a mais bela epopeia: conhecido e querido em todo mundo como cantor das madrugadas, rei dos terreiros, que louvou o nascimento de Cristo e avisou a falsidade de São Pedro contra este na antiga Galileia; além disso, inspiração para os poetas e fonte da lira de Catulo. Finalmente decretou a sentença para o humilhado frango: (...) Frango estúpido, veja quem sou eu, Vai cumprir paciente o seu tormento E não queira invejar com o seu lamento Esta sorte que Deus me concedeu. (...) Sofrerá de uma faca a crueldade, 213 Idid., p. 34. 86 Só assim pagará em um momento Este seu monstruoso atrevimento Contra minha suprema autoridade.214 (...) Numa tentativa de interpretação, poder-se-ia dizer que nesta composição o poeta, utilizando-se de uma linguagem alegórica e fabular, põe em cena questões referentes a regimes totalitários e até mesmo certos regimes democráticos, que negam ao homem o espaço da pluralidade de ideias, isto é, tolhem o que é mais sagrado: a liberdade. Aliás, o “atrevimento” do frango não é outra coisa senão um grito por liberdade. A referência à necessidade de prazer com as galinhas pode ser vista numa perspectiva mais abrangente, no sentido de alegria de viver, de felicidade plena. É de nota também o apelo à justificativa autoritária da prerrogativa divina. Esse é um risco de dimensões trágicas, chegando ao sacrifício de vida, como foi o caso da pena imposta ao frango. Ao final o poeta questiona: “Será que há também depois da morte um Paraíso para os animais?”. Como a ironizar a conhecida justificativa de que uma vida de tormento nesta terra recebe recompensa noutra. Além disso, outro aspecto interessante em Ispinho e Fulô é o emprego constante de vocabulário religioso. Nomes como Divina Providência e Divino Mestre são recorrentes nos poemas, sem falar noutros sinônimos referentes ao nome de Deus na mentalidade cristã. No entanto o que é mais digno de observação é a filosofia presente de uma ponta a outra do livro: A vida tem um tempêro De alegria e de rigô Derne o mais pobre trapêro Ao mais ricaço dotô Na roda desta ciranda O mundo intero disanda, Não ficou pra um sozinho, O sofrimento é comum A estrada de cada um Sempre tem fulô e ispinho.215 Desse modo, o poema que intitula a antologia pode ser lido como a metáfora da vida. A existência evidentemente tem o tempero da alegria, no entanto, segundo a perspectiva poética, a parcela de sofrimento seria maior. Todos, sem escapatória, estariam dentro de uma ciranda experimentando a parte de dor, que o “autor da natureza” teria deixado para cada um. Aqui o eu-poético é pessimista ou realista quanto a existência? Pode ser os dois. Em sua leitura, a morte “é a derradêra furada do ispinho da nossa vida”. Porém, embora o sofrimento seja inevitável, o homem como um ser livre é capaz de amenizar a dor, pois “a Providência 214 Ibid., pp. 36-37. 215 Ibid., p. 27. 87 Divina não nos deu a triste sina de sofrer o que sofremos”, lembra o poeta em Nordestino, sim, nordestinado, não. De forma que, compete ao leitor/ouvinte a tarefa de interpretar e tirar suas próprias conclusões dos sentidos apontados pela obra. 3.5. O sertão e a cidade No ano de 1994, em homenagem aos 86 anos de vida de Patativa, a Secretaria de Cultura do Estado do Ceará publicou Aqui tem coisa, uma coletânea de 59 composições, dessas 47 inéditas. Em 2004 essa obra foi reeditada com o selo da editora Hedra. Se em Ispinho e Fulô o “destino” é tema recorrente, em Aqui tem coisa é ressaltada a pergunta a respeito de quem impõe o destino de sofrimento a tantos brasileiros. (...) Fala sobre o sofrimento, Do grande padecimento Da pobre Classe operária E do agregado sem nome Pedindo Reforma Agrária.216 (...) De largada a pergunta é pela problemática dos menores abandonados urbanos. Menino de rua é o primeiro poema depois da composição Aqui tem coisa, que é a que apresenta e intitula a obra. O olhar do poeta, portanto, desloca-se para o mundo da cidade. Garoto eu desejo que em vez deste inferno Tu tenhas caderno Também professor Menino de Rua de ti não me esqueço E aqui te ofereço Meu canto de dor.217 Embora o sertão continue sendo o ponto de partida, a temática dos poemas segue, em alguma medida, assuntos relacionados ao universo urbano, ou mesmo é possível perceber uma ponte entre sertão e cidade. Em Melo e meladeira, apresenta em poucos versos a situação em que o ex-presidente Fernando Collor de Melo deixou o Brasil e o satiriza com o mote: “este presidente Mello fez a maior meladeira”. Nessa composição a linguagem denuncia que o olhar e ouvido do poeta estão atentos aos gritos e apelos das ruas: (...) Grita a classe revoltada De avenida em avenida, Vendo a pátria transformada Em panela mal mexida.218 216 ASSARÉ, Patativa do. Aqui tem coisa, p. 9. 217 Ibid., p. 11. 218 Ibid., p. 17. 88 (...) É de nota que a linguagem dos poemas, em sua maioria, segue mais a variação corrente e menos a que o poeta chama de “cabloca” ou “matuta”. Não é custoso observar que quando a composição está diretamente relacionada à vida sertaneja os versos não se furtam a esse modo peculiar de fala. Quando se trata da mescla entre sertão e cidade ou mesmo quando o assunto é urbano, a fala é outra. Veja-se, nesse sentido, os dois exemplos respectivamente: O caçadô: (...) Mode sustentar a famia Passo a noite e de dia, Sou obrigado a caçá Do sertão até a serra, É bem pouca minha terra Não tenho onde trabaiá.219 (...) O bode de Miguel Boato e o efeito da maconha (...) Totonho por um capricho, Vendo Miguel maconhado Disse: vamos ver o bicho Que está ali no cercado E na vista do marchante Era um bode estravagante Do tamanho de um camelo Miguel com gosto sorria, Coitadinho! Não sabia Do seu grande desmantelo.220 (...) Poder-se-ia dizer que Aqui tem coisa apresenta uma poética essencialmente sertaneja, com sua peculiar ancoragem na oralidade, mas também com fortes características urbanas. É como se o livro mesclasse o trajeto do poeta. Se feita uma retrospectiva à sua primeira publicação, Inspiração Nordestina, não seria custoso perceber isso. No entanto, se os tempos mudam e o poeta expande seus horizontes, permanecem sua lucidez e o viés combativo, a peleja com a palavra e com a vida, bem como a consciência de que sua missão é sempre dizer a palavra necessária: seja para “proteger” as famílias das más influências das mensagens televisivas (por exemplo, no poema Presente dezigradave), seja para animar os que não têm terra a seguiram firme na luta (Reforma agrária é assim). Ele parece se sentir confortável na tarefa de animador de sua gente. O leitor/ouvinte tem a liberdade de entrar na obra e descobrir que coisa realmente lá existe. 219 Ibid., p. 174. 220 Ibid., p. 121. 89 3.6. Em nome da poesia Além de outras publicações, convém ressaltar Balceiro, lançamento de 1991, com poemas de mais de 20 poetas da cidade do Assaré, entre eles Patativa. O organizador do trabalho foi o próprio poeta e seu sobrinho Geraldo Gonçalves. No ano 2001 é publicado Patativa do Assaré uma voz do Nordeste, pela editora Hedra. Com seleção e introdução de Sylvie Debs. Trata-se de um estudo que apresenta o poeta e sua obra, tendo como destaque sua produção cordelística. Evidencia um Patativa popular com uma poesia essencialmente narrativa. Obra que o coloca ao lado de referências literárias como A bagaceira (José Américo de Almeida), Pedra bonita (José Lins do Rego), Vidas secas (Graciliano Ramos), O quinze (Raquel de Queiroz), Grande sertão: veredas (Guimarães Rosa) e outros. Constata-se em seus cordéis “a presença de numerosos temas habitualmente abordados na literatura popular nordestina: o ciclo religioso e o messianismo, a tradição épica, a descrição da vida no Nordeste com seus flagelos, caatinga, inundações, secas, migrações...”221 No que se refere ao estudo e interesse criterioso pela poética patativana, merecem, sobretudo, especial menção os trabalhos do professor doutor do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Ceará, Gilmar de Carvalho. Em 2000 ele publicou uma antologia intitulada Patativa do Assaré, pela Fundação Demócrito Rocha. Em 2002 lançou com o selo Omni Editora Associados Ltda. Patativa do Assaré – Poeta Pássaro: trata-se de um dia de entrevista que Carvalho fez a Patativa, em 15 de fevereiro de 1996, percorrendo a trajetória de vida do poeta. É um importante material para quem deseja entrar em contato com a obra e o pensamento de Patativa. Outra publicação interessante do mesmo autor é o livro Patativa do Assaré – Pássaro Liberto: uma coleção de ensaios sobre Patativa do Assaré. Editada pelo Museu do Ceará, a obra também está disponível em PDF (www.overmundo.com.br/download_banco/patativa-passaro-liberto-livro-de-gilmar-de- carvalho). Digo e não peço segredo é uma publicação de 2002, pela editora Escrituras. É um livro biográfico, organizado por Tadeu Feitosa. Do início ao fim é o poeta que fala e declama a trajetória de sua vida e obra. Merecem destaque as fotografias, revelando a paisagem, o cenário e o meio sobre o qual o poeta viveu e se inspirou. Feitosa também defendeu doutorado sobre Patativa, e sua tese virou livro, com o título: Patativa do Assaré – trajetória de um canto, publicado em 2003. 221 DEBS, Sylvie. Patativa do Assaré uma voz do Nordeste, pp. 24-25. 90 Em 2004 Nankin editorial e a e editora UFC publicaram Patativa do Assaré: As Razões da Emoção (capítulo de uma poética sertaneja), de Cláudio Henrique Sales Andrade. Resultado de seu trabalho de dissertação sobre o poeta. Entre outros aspectos importantes, o autor apresenta um Patativa popular e também clássico, profundamente enraizado na tradição dos desafios dos cantadores. Outra relevante publicação é Os melhores poemas de Patativa do Assaré, antologia organizada por Cláudio Portella e publicada em 2006 pela Global Editora. Apresenta uma valiosa introdução (estudo) acerca do poeta e sua obra. Além disso, é um livro com design bem trabalhado, que dá gosto pegá-lo para ler. Um trabalho realmente bem feito, caprichado, respeitando a importância da poética patativana. Vale ainda ressaltar que Patativa recebeu quatro títulos Doutor Honoris Causa.222 Quando recebeu a homenagem da Universidade Federal do Ceará, o poeta assim improvisou: (...) Com a minha timidez Julgando, por minha vez, Fico até encabulado Um poeta agricultor Com três títulos de doutor Sem nunca ter estudado. Não estudei em colégio Meu estudo é privilégio Que a natureza me deu Estes universitários De fino vocabulário Conhecem mais do que eu. 223 (...) 222 Universidade Regional do Cariri – URCA (1989), Universidade Estadual do Ceará – UECE, (1999), Universidade Federal do Ceará – UFCE (1999) e Universidade Tiradentes de Sergipe (1999). 223 ASSARÉ. Patativa do. Melhores poemas, p.137. 91 Não vem ao caso discorrer sobre outros tantos acontecimentos (filmes224, gravação de cds, peças teatrais, festivais,225 reportagens na mídia, artigos, ensaios, dissertações,226 teses, homenagens e outros.) que se deram no caminho do poeta, apenas se apresenta assim de modo rápido a ressonância de sua voz nos variados meios artísticos e culturais: ele fez várias apresentações em TV, inclusive participação especial em novela da rede Globo (“Renascer” em 1993). Nesse sentido, é de nota um importante trabalho sobre o poeta. Trata-se do longa- metragem Patativa do Assaré – Ave Poesia. Nesse documentário o cineasta Rosemberg Cariry recupera imagens de outros dois filmes sobre o poeta e constrói a sua trajetória. O vate mesmo declama a própria vida e obra por meio da poesia. Entre outras características, o longa ressalta um Patativa envolvido com as questões políticas de seu tempo e autor de uma obra que nasce da realidade e da vida do povo, em nome da solidariedade e da transformação social. Convém ainda apontar que em 2008, na edição de 100 Cordéis Históricos Segundo a Academia Brasileira de Literatura de Cordel, a obra contempla uma composição de Patativa do Assaré cujo título é Abílio e o seu cachorro Jupi. Trata de uma história de um menino abandonado pelos irmãos no meio da mata. Este vive mais de três anos numa caverna, na companhia de seu cachorro Jupi, alimentando-se de caça e frutas do mato. Depois, por meio de um recado divino, ele encontra abrigo na casa de uma senhora viúva rica, porém sozinha. Essa o acolhe como a um filho e o faz herdeiro de todas as suas posses. Abílio torna- se rico, casa-se com uma donzela e leva uma vida muito boa. Depois de três anos, aparecem em sua casa dois forasteiros pedindo ajuda. São seus dois irmãos. Ambos viviam a mendigar pelo mundo após terem sofrido terríveis penas na cadeia. Abílio os acolhe e lhes revela quem ele é. Perdoados, os dois começam uma nova vida de fartura e de alegria junto ao irmão. É possível notar que a composição faz uma intertextualidade explícita da narrativa bíblica da história de José do Egito. 224 De Rosemberg Cariry: Patativa de Assaré: um poeta camponês (curta-metragem documentário, 1979), Patativa do Assaré: Um poeta do povo (curta-metragem, 1984), Patativa do Assaré: Ave Poesia (longa- metragem, 2009). De Ítalo Maia: Patativa (animação, documentário, 2001). 225 Entre outros eventos pelo país, Patativa do Assaré foi assunto de um festival no Sesc Santo André – SP, no mês de outubro de 2006, com exposição, exibição de vídeos, shows, teatro, performance, bate-papo e oficinas de cordel e xilogravura. Além disso, após sua morte (8/7/02) todo ano a cidade de Assaré celebra a “Semana Patativa do Assaré”. Há também na cidade de Assaré o “Memorial Patativa do Assaré”, que foi inaugurado em 1999. Em 2009 é a comemoração do centenário do nascimento do poeta. A Casa das Rosas, em São Paulo, fez homenagem especial ao poeta, comemorando seu centenário, com palestras, exposições de xilogravuras, contação de história em cordel, oficinas, lançamentos de livros e outros. O evento ocorreu entre os dias 05 de março e 05 de abril de 2009. 226 Dois recentes estudos acadêmicos acerca da obra de Patativa que merecem nota: Patativa do Assaré: uma hermenêutica criativa, dissertação de Cristiane Moreira Cobra, defendida em 2006, na PUC-SP. E Inspiração Nordestina: uma leitura teológica na poética de Patativa do Assaré na ponte do diálogo entre teologia e literatura, dissertação de Ozeias da Silva Nunes, defesa em 2008, na Universidade Metodista de São Paulo. 92 Ademais, parte da obra escrita do poeta do Assaré foi traduzida para a língua francesa, inglesa227 e italiana. A tradução italiana foi iniciativa do pesquisador italiano Carlo Beschi. Estando ele em terras brasileiras, precisamente no Ceará, em 2003, conheceu a poética de Patativa por intermédio do já referido professor Gilmar de Carvalho. Beschi assinala que seus primeiros contatos com os versos escritos de Patativa causavam-lhe certa estranheza: “Inicialmente eu não entendia Patativa do Assaré. Folheava-o com pouca convicção vontade (sic) e por nada entusiasmado [...] Ele parecia não querer me dizer muito. Existiam, entre Patativa e mim, concretíssimas barreiras, linguísticas e culturais.”228 Somente em 2005, quando teve acesso ao disco de Patativa – A terra é Naturá, Beschi pôde ouvir os poemas recitados na voz do poeta. Graças a essa escuta, o estudioso encantou-se com o canto da “ave sertaneja”. Sobre isso expressa: “Comecei a entender que os poemas que eu folheava, e não conseguia sentir vibrar, eram simples apêndice – de algum modo apagado, inerte. Um ponto de chegada (e de re-largada) de uma arte, de uma expressão, a qual tinha na oralidade suas raízes, e a sua razão de ser.”229 Nesse sentido, Beschi procurou o confronto e o conforto, entre a palavra e a escrita do poeta. Como já vinha imbuído de interesse pelas expressões de arte popular, sobretudo pelo universo da literatura de cordel, o italiano muniu-se para traduzir a poesia “cabocla” de Patativa. Armado de paciência, como ele mesmo informa, começou a empreitada em 2006, sempre levando em conta a matriz oral, o ritmo, a rima, a musicalidade. Vale conferir uma estrofe traduzida de “Caboclo roceiro”: (...) Tu és, nesta vida, um fiel penitente, Um pobre inocente no banco do réu. Caboclo, não guardes contigo esta crença, A tua sentença não parte do céu. Tradução: (...) Ma sei, in questa vita, un altro innocente, Seduto silente nel banco dei re. Dimentica, uomo, la tua convinzione, La tua punizione non nasce nei cieli.230 227 Nomes como: Colin Henfrey, do Institute of Latin American Studies, da Universidade de Liverpool, Inglaterra e Raimundo Cantel, da Sorbonne, França são referências a respeito da divulgação da poética de Patativa para as referidas línguas. O primeiro referente à obra Cante lá que eu canto cá. O segundo, ao livro Inspiração nordestina. (Cf. CARVALHO, Patativa poeta passado do Assaré, pp. 120-121). 228 BESCHI, Carlo. Pro modo de traduzir Patativa. (http://www.circolab.net/~carloz/sito/projects/translations/pt-it/patativa/traducendo_patativa/portoghese.pdf. acesso em 10/4/09). 229 Idem. 230 http://patativa.gnumerica.org/sito/poesie/01.php acesso em 4/5/08. 93 Desde 2007, Carlo Beschi tem um site231 em homenagem e divulgação da poética de Patativa, em língua italiana. Além de poemas traduzidos, há textos sobre a vida, a obra, o contexto e a crítica. Patativa, segundo informa o site, é “probabilmente, uno dei grandi nomi della poesia brasiliana del Novecento.” Assim, a voz, o canto do “pássaro” expande seu eco, propaga-se além de sua aldeia, evidenciando a universalidade da voz outrora agregada à corporeidade e gestualidade do poeta – performance – agrega-se à técnica como meio e extensão do canto, neste caso a internet, ampliando seu “ecos”. Até aqui, portanto, esta pesquisa se pautou no intuito de apresentar o poeta, sua obra e possíveis alcances dessa arte nascida da voz, inspirada na dor e nas “delícias” do sertão de Patativa. Poesia como “dom da natureza” que convergiu da voz à letra e a outros meios de divulgação. Obra marcada, sobretudo pelo emblema da resistência e da fé de um povo. É nesse sentido de fé que no próximo capítulo evidencia-se a poética patativana em suas “marcas” do sagrado. 231 http://patativa.gnumerica.org/sito/poesie.php. acesso em 19/4/09. 94 CAPITULO IV: A INSTÂNCIA DO SAGRADO “No pequenino e lindo pirilampo De noite vejo dos primores seus, Se o vento ruge na relva do campo No seu sussurro eu ouço a voz de Deus.”232 Nos capítulos anteriores se procurou apresentar a poesia de Patativa, considerando sua ancoragem na oralidade, a passagem da voz ao escrito, bem como alguns aspectos importantes da trajetória do poeta. No que diz respeito a sua obra escrita, musicada, filmada e divulgada noutros tantos meios, nota-se com evidência o traço político e a crítica social. Além disso, outra faceta que chama a atenção é a presença constante de temas religiosos: a poética está permeada de uma linguagem característica do universo sagrado, precisamente de uma mentalidade advinda do cristianismo católico. (...) Se a noite escura chegava, Envolvida em seus negrores, Uma santa me embalava, Cantando trovas de amores, E quando raiava o dia, Que do bercinho eu descia, Chegava aos ouvidos meus, Pelas brisas matutinas, O som das harpas divinas, Dos santos anjos de Deus.233 (...) Palavras como: divina providência, divino mestre, onipotente, nosso Senhor, autor profundo e outras do gênero são notáveis, de uma ponta a outra da obra, apresentando, portanto, uma visão do mundo que enfatiza o lugar de Deus e seu poder em relação às pessoas, à natureza e à história. Na perspectiva do próprio poeta, o ato de compor não seria outra coisa senão um “dom do Criador”. É, pois, essa característica visão do mundo o objeto de interesse neste capítulo. Inicialmente se discorre sobre o tema numa tentativa de conceituação, no entanto sem a pretensão de um conceito que se queira fechado; como adverte Terrin, “hoje toda definição parece suspeita. Em nosso mundo contemporâneo, tudo flui, tudo está em transformação; não estamos mais bloqueados por uma espécie de ‘geometria euclidiana’, que determina e define; antes movemo-nos, por assim dizer, no mundo dos ‘fractuais’”.234 De 232 ASSARÉ. Patativa. Melhores poemas, p. 186. 233 ASSARÉ. Patativa. Inspiração nordestina, p. 204. 234 TERRIN, Aldo Natale. O rito: Antropologia e fenomenologia da ritualidade, pp. 24-25. 95 posse dessa premissa, intenta-se aqui justamente apresentar e discutir o tema, sem a pretensão de uma abordagem acabada. A abordagem parte de uma apresentação geral do tema, e depois por meio de poemas selecionados, analisam-se aspectos que revelam o sagrado e sua possível “teia de significados”. 4.1. Experiência do sagrado Conforme Rudolf Otto, em seu clássico O sagrado, o assunto diz respeito a uma categoria “totalmente sui generis, enquanto dado fundamental e primordial.”235 O sagrado na perspectiva do autor se refere a algo “impronunciável”, “indizível”, diferente de qualquer realidade natural e que escapa aos processos de racionalização: a experiência do sagrado estaria muito além da elucidação conceitual. Para ele, tal categoria não é definível em sentido rigoroso, mas apenas pode ser discutida. Permita-se que o texto do próprio Patativa expresse a indizibilidade de Deus: Deus é a força infinita É o espírito sagrado Que tá vivendo e parpita Em tudo que foi criado. Não há quem possa contá É assunto que não dá Pra se dizê no papé Não inxiste professô Nem sábio, nem iscritô Pra sabê Deus cuma é. Apenas se tem certeza Que ele é a santa verdade É a subrime grandeza Em bondade e divindade.236 (...) Afirma o eu-poético que Deus é um assunto que não há quem possa contar ou dizer no papel. Trata-se de uma força infinita que o humano diante dela apenas deve admitir ser uma sublime grandeza. Esse aspecto que evidencia a presença da divindade no mundo é tema recorrente em Patativa. É de nota o esforço por dar uma explicação de tudo a partir de uma mentalidade religiosa. Nesse sentido, conforme Peter Berger, a religião é o empreendimento humano pelo qual se estabelece um cosmo sagrado, ou, por outra, a religião é a cosmificação feita de maneira sagrada: Por sagrado entende-se aqui uma qualidade de poder misterioso e temeroso, distinto do homem e todavia relacionado com ele, que se acredita residir em certos objetos da experiência. Essa qualidade pode ser atribuída a objetos naturais e artificiais, a 235 OTTO, Rudolf. O sagrado, p. 38. 236 ASSARÉ, Patativa do. Ispinho e Fulô, p.83. 96 animais, ou a homens, ou às objetivações da cultura humana. Há rochedos sagrados, instrumentos sagrados, vacas sagradas.237 Nessa perspectiva é impossível ao homem viver sem a “presença” do sagrado. Ele sente a necessidade de que algo sobrenatural dê sustentação e sentido à existência. “Historicamente considerados, os mundos do homem têm sido, na sua maioria, mundos sagrados. Na verdade, parece provável que através do sagrado foi possível ao homem conceber um cosmo em primeiro lugar.”238 De modo que, em todo tempo, lugar e cultura a imaginação religiosa do homem fez emergir o sagrado: é através desta realidade que o homem organiza a vida e a dota de significado. Ao que vêm calhar os versos do poeta de Assaré a respeito da fonte da qual nasce sua poesia: (...). O meu livro é naturá é o má, o céu e a terra, cum a sua imensidade. Livro cheio de verdade, de beleza e de primô, tudo incadernado, iscrito pelo pudê infinito do nosso Pai Criadô.239 É dessa forma que se pode dizer que há na obra patativana um eu-poético contemplativo, que se extasia diante da natureza contemplando e devotando admiração e respeito ao “poder do onipotente”. A natureza é para o poeta a expressão do poder imenso de Deus. Nela o poeta encontra os “sinais” e as lições que dão sentido à existência e à explicação do mundo. Como defende Eliade, a natureza para o homem religioso nunca é exclusivamente “natural”, ela “está sempre carregada de um valor religioso. Isto é facilmente compreensível, pois o Cosmos é uma criação divina: saindo das mãos dos deuses, o Mundo fica impregnado de sacralidade.”240 Em Patativa há um Deus que o inspira e o presenteia com o “livro da natureza”. Nesse sentido, vejam-se os versos devotados do poeta: (...) Eu nasci ouvindo cantos Das aves de minha terra E vendo os lindos encantos Que a mata bonita encerra, Foi ali que fui crescendo, Fui lendo e fui aprendendo No livro da Natureza Onde Deus é mais visível, O coração mais sensível E a vida tem mais pureza.241 237 BEGER, Peter Ludwig. O Dossel Sagrado, p. 38. 238 ELIADE apud BEGER, Peter Ludwig, ibid., p. 41. 239 ASSARÉ, Patativa do. Ispinho e fulô, p. 81. 240 ELIADE, Mircea. Sagrado e profano, p.99. 241 ASSARÉ, Patativa do. Ispinho e fulô, p. 20. 97 (...) A natureza se apresenta para o poeta como a porta de acesso às coisas divinas. A natureza é como que a escola. Na expressão do eu-poético, ela é o livro que tem todas as lições. O quadro que o poeta compõe é de um livro natural em que tudo é vivo, é puro. Os encantos da mata, os cantos dos pássaros, conduzem à aprendizagem e à experiência de Deus, pois nela ele é “mais visível”. Em outra composição dirá: a minha rima faz parte / das obras da criação.242 Expressando-se assim, é o mesmo que dizer que sua poesia procede de uma fonte sagrada, sem a qual ela não existiria. Em que consiste esta sacralidade é o que se tentará constatar a partir de agora. 4.2. Elementos do sagrado Na perspectiva de Rudolf Otto, “o sagrado, no sentido pleno da palavra, é uma categoria composta. Ela apresenta componentes racionais e irracionais.”243 O elemento irracional ele o denomina de numinoso244 e o elemento racional é o predicador.245 No que se concerne ao racional na ideia do divino, o autor entende aquilo que nela pode ser formulado com clareza, compreendido com conceitos familiares e definíveis. Nesse sentido, quanto à racionalidade no sagrado, interpretando Otto, Cipriani246 esclarece: A racionalidade torna-se critério de discriminação para reconhecer uma dimensão religiosa com medida humana. O divino tem de ser a perfeição daquilo que existe nos seres humanos, embora de modo imperfeito. Uma religião é racional se permite uma imaginalidade do ser divino sobre a mesma amplitude de onda das características – claras e definidas – do homem, porém exaltadas em grau máximo na divindade.247 Para alcançar esse primeiro nível de racionalidade, o homem necessita se valer de predicados racionais a respeito da noção do divino, no intuito de torná-lo dizível. Parece pertinente aqui considerar este aspecto tendo em vista as composições do próprio Patativa. Em muitas delas se podem constatar vários atributos (predicador) pelos quais ele se refere a Deus. Por exemplo, só na composição O meu livro248 ele usa uma variedade de atributos para o divino: Pai criador, Onipotente, Deus poderoso, Santa Verdade, Sublime Grandeza, 242 ASSARÉ, Patativa do. Cante lá que eu canto cá, p. 27. 243 OTTO, op. cit., p. 150. 244 Do latim, numem, nume, “deus”, nos dizeres de Otto, “ente sobrenatural, do qual ainda não há noção mais precisa”. (Cf. OTTO, op. cit. p. 28) 245 Diz respeito ao predicado racional, o atributo que convém como apoio, mas que não esgota o sentido maior do sagrado. Exemplos de predicador: todo-poderoso, onipotente, espírito, sumo bem etc. 246 CIPRIANI, Roberto. Manual de sociologia da religião, p. 171. 247 Ibidem. 248 ASSARÉ, Patativa do. Ispinho e Fulô. pp.81-88. 98 Infinito, Soberano, Bendito, Criador, Senhor da Criação, Divino Mestre, Sumo Bem, Divina Providência, Soberano, Divina Majestade.249 Em outra composição, acrescenta: (...) Deus é grande, é poderoso, É o mestre da santa paz, Fez tantas coisa no mundo Que os home morre e não faz250 (...) Os atributos ou predicados, porém, não esgotam o sentido do sagrado, do nome de Deus. Não são, portanto, suficientes para definir o divino. Conforme Otto, “ao redor desse âmbito de clareza conceitual existiria uma esfera misteriosa e obscura que foge não ao nosso sentir, mas ao nosso pensar conceitual.”251 A esfera misteriosa é, pois, o numinoso, o “inefável”, pertence ao plano da experiência, da vivência religiosa, e que “somente pode ser indicada indiretamente pela evocação íntima e apontando para o peculiar tipo de conteúdo da reação-sentimento, desencadeada na psique por uma experiência pela qual a própria pessoa precisa passar.”252 É nesse ponto que se encontram as características da irracionalidade na noção do sagrado, isto é, aquilo que ao homem é impossível medir, porque supera o nível da racionalidade humana. No que tange à experiência reação-sentimento, ela diz respeito à sensação experimentada pela criatura ante o mysterium tremendum.253 Experiência que causa “o estremecimento e emudecimento da criatura a se humilhar perante o que está contido no inefável mistério acima de toda criatura.”254 Nesse sentido, a modo de exemplo o autor cita o episódio bíblico no qual Abraão ousa falar com Deus a respeito da sorte dos sodomitas: “Tomei a liberdade de falar contigo, eu que sou poeira e cinza (Gênesis 18,27).” Nessa expressão de Abraão estaria contido um sentimento confesso de dependência, muito mais do que todos os sentimentos naturais de dependência, bem como algo qualitativamente diferente. Uma “quadra” de Patativa pode ser ilustrativa nesse sentido: Toda Natureza cheia Com os possuídos seus 249 Todos esses atributos evidenciam haver um Ser acima de todos os seres: “Ser Supremo, deus supremo, na ciência das religiões designação do poder que está acima do mundo e de todos os poderes sobrenaturais (Deus), especialmente como criador, autor e guarda da ordem moral. A crença em ser supremo (crença em um Deus supremo) encontra-se, sob múltiplas formas, em quase todas esculturas, já desde os tempos mais remotos.” Cf. UDO, Becker. Dicionário de símbolos. Tradução Edwino Royer. São Paulo: Paulus, 1999. p. 247. 250 Inspiração nordestina. p. 135. 251 Idem, p. 98. 252 Idem, p. 42. 253 Conforme o próprio autor explica, “conceitualmente, mistério designa nada mais que o oculto, ou seja, o não- evidente, não-aprendido, não-entendido, não-cotidiano nem familiar, sem designá-lo mais precisamente segundo seu atributo. Mas o sentido intencionado é algo positivo por excelência. Seu aspecto positivo é experimentado exclusivamente em sentimentos. Cf. OTTO, op. cit. p. 45. 254 Idem, p. 45 99 É um grãozinho de areia Na palma da mão de Deus.255 É, pois, a expressão do sentir-se na presença do “outro totalmente outro”, “tremendum.”256 A reação emocional que se pode sentir perante esse outro é o “sentimento de criatura. Ao que Otto esclarece: “Ao procurar um nome para isso, deparo-me com sentimento de criatura – o sentimento da criatura que afunda e desvanece em sua nulidade perante o que está acima de toda criatura”257 Desse modo, porém, mais do que pretender abstrair da expressão “sentimento de criatura” uma elucidação conceitual para o que vem a ser o numinoso, importa para o autor observar o caráter do seu poder absolutamente avassalador. Convém nesse sentido apresentar um “mote” de Patativa como exemplo de sentimento de criatura ante a grandeza do divino: O nosso Deus de bondade, Que tudo criou e fez, Mostra nossa pequenez No terror da tempestade; Grande pavor nos invade Quando o forte vento berra, Rolam as pedras da serra Com furor e aspereza, Revolta-se a natureza, Geme o mar e treme a terra. Desde a montanha à cidade Ouve-se um rouco estampido, Deixando tudo aturdido, No terror da tempestade, Parece que a imensidade Enraivecida se emperra, Querendo declarar guerra Contra a rocha de granito, Geme o mar e treme a terra. A frágil humanidade Relembra os pecados seus E pede perdão a Deus No terror da tempestade; Ante tal calamidade De momento se desterra Toda a beleza se encerra As obras da criação, Foge do sol o clarão, Geme o mar e treme a terra.258 255 ASSARÉ, Patativa do. Ispinho e Fulô. p.173. 256 A respeito do atributo tremendum (arrepiante) Otto considera ser uma caracterização positiva do assunto em questão, ao que esclarece: “O termo latino tremor em si significa apenas medo ou tremor [Furcht] – sentimento ‘natural’ bastante conhecido. É uma designação bastante próxima daquilo a que queremos nos referir, mas que não passa de uma analogia para uma reação emocional muito específica que se assemelha ao temor e permite que este dê uma pista dela, mas a reação em si é algo bem diferente de temer.” (OTTO, op.cit., p. 45.) 257 Otto, op. cit., p. 41. 258 ASSARÉ, Patativa do. Inspiração Nordestina, pp. 246-247. 100 Essa composição parece apresentar com evidência a sensação da criatura de “não ser mais do que uma criatura”. Otto defende que diante do “misterioso” que causa o “receio”, há também o “fascínio”, porque se trata de um mistério que atrai.259 Instala-se na criatura, portanto, nesse momento, certa harmonia de contrastes entre o pavor e a atração. Disso, segundo Otto, teria partido toda a evolução histórico-religiosa, desde as primitivas experiências do “receio demoníaco” até a noção do Deus “vivo”. Sua eclosão deu início a uma nova era da humanidade. Dela provêm os “demônios” bem como os “deuses” e o que mais a “apercepção mitológica” ou a “fantasia” tenha produzido em termos de objetivações dessa sensação. Se ela não for reconhecida como fator primeiro e impulso básico, qualitativamente peculiar e inderivável, todas as explicações animistas, mágicas e etnopsicológicas para o surgimento da religião estarão liminarmente passando ao largo do verdadeiro problema.260 Com isso, no entanto, o autor não quer dizer que a religião tenha nascido do que se entende por temor natural;261 isto é, por medo, no sentido mais comum da palavra. Como ele próprio elucida, trata-se de “uma primeira valoração segundo uma categoria fora dos âmbitos naturais costumeiros e que não desemboca no natural.”262 Isso porque não se refere ao que se entende por um medo comum.263 Nos termos de Otto, esse assombro somente é possível para a pessoa na qual despertou uma predisposição psíquica peculiar, com certeza distinta das faculdades “naturais”, a qual inicialmente se manifesta apenas em espasmos e de forma bastante rudimentar, mas que também nessas condições aponta para uma função totalmente própria e nova de o espírito humano vivenciar e valorar.264 Nesse sentido, na perspectiva ottiana, o mysterium é o elemento por excelência do numinoso e o “sentimento de criatura”, por sua vez, decorrente dele. De modo que o mysterium gera três sentimentos: o aspecto tremendum, o aspecto avassalador, e o aspecto enérgico. Em poucas palavras se discorre sobre eles. O primeiro aspecto – tremendum – é o que faz tremer, causa calafrio. É o sentimento que nas primeiras manifestações primitivas e rudimentares se apresenta na forma do “receio demoníaco”. Nos dizeres de Otto, ele é uma característica peculiar da chamada “religião dos 259 Em outras palavras, o mysterium é a forma, que provoca um conteúdo repulsivo. Este, por sua vez, é tremendum: causa terror. No entanto, causa também o fascinans, exerce fascinação, atrai. 260 OTTO, op., cit., p. 47. 261 O temor, ou “medo do mundo” [Weltangst], ou assombro [das Grauen] a que Otto se refere não diz respeito ao medo comum, natural. Deve ser entendido como “a primeira excitação e pressentimento do misterioso, ainda que inicialmente na forma bruta do ‘inquietantemente misterioso’ [Unheimliches]”. (Cf. OTTO, op. cit., p. 47. 262 Idem. 263 Trata-se de um problema da linguagem humana: ela é incapaz de conseguir explicar a totalidade do sagrado. Como salienta Eliade, “é certo que a linguagem exprime ingenuamente o tremendum, ou a majestas, ou o mysterium fascinans mediante termos tomados de empréstimos ao domínio natural ou à vida espiritual profana do homem. Mas sabemos que essa terminologia analógica se deve justamente à incapacidade humana de exprimir o ganz andere: a linguagem apenas pode sugerir tudo o que ultrapassa a experiência natural do homem mediante termos tirados dessa mesma experiência natural.” (Cf. OTTO, op. cit., p.17). 264 OTTO, op. cit., p. 47. 101 primitivos”, no entanto, se manifesta também onde produtos fantasiosos tenham sido superados: “Mesmo onde esse sentimento há muito já alcançou sua expressão mais elevada e pura, suas excitações primais sempre podem voltar a irromper ingenuamente na alma para novamente ser vivenciadas.”265 De forma que, segundo o autor, o tremendum, o assombro não desaparece em nenhuma experiência de fé. Nas expressões mais elevadas ele retorna nas características do “arrepio místico”.266 O segundo elemento – avassalador, “majestas” (do latim, majestade) – refere-se a uma forma mais completa de reproduzir o aspecto tremendum do numinoso, ao que o autor denomina de tremenda majestas. A experiência mística é, nesse sentido, ilustrativa, pois é resultado do contraste entre o mais “absoluto” e o estado de criaturalidade. “Majestas e ‘ser pó e cinza’ levam, por um lado, à aniquilação [annihilatio] do si-mesmo e, por outro, à realidade exclusiva e total do transcendente”.267 Noutras palavras, é perante o poder do sobrenatural que a criatura se anula ao mesmo tempo em que experimenta a sensação de plenitude, pois sendo “nada” torna-se plena no “tudo”. O terceiro aspecto – enérgico – diz respeito ao que Otto chama de a energia do numinoso: “Trata-se daquele aspecto do nume que, ao ser experimentado, aciona a psique da pessoa, nela desperta o zelo [Eifer], ela é tomada de assombrosa tensão e dinamismo: na prática ascética, no empenho contra o mundo e a carne, na excitação a eclodir em atuação heróica.”268 Este elemento é revelador do sentimento divino e do aspecto irracional da ideia de Deus. Como elemento irracional só pode ser representado simbolicamente, apontando para algo indizível. 4.3. Manifestação do sagrado A abordagem de Rudolf Otto objetiva clarificar o caráter específico da experiência do sagrado a partir dos elementos não-racional e racional.269 Mircea Eliade, por sua vez, situa o assunto numa perspectiva histórica: o fenômeno é tratado em sua totalidade e de um modo que o sagrado se opõe ao profano. Nesse sentido, o homem só tem acesso ao sagrado porque 265 OTTO, op.cit., p. 48. 266 Tem que ver com a expressão: “estremecimento e emudecimento da alma até suas mais profundas raízes”. (Cf. OTTO, op. it., p. 49). 267 OTTO, op. cit., p. 52. 268 OTTO, op. cit., p. 55. 269 Nos dizeres do próprio autor, em ambos os aspectos – racional e irracional – trata-se de uma categoria estritamente apriori, isto é, que existe no espírito humano independentemente da experiência. (Cf. OTTO, p. 50). 102 este se manifesta. Esta manifestação se dá na história por meio de hierofania.270 A cruz é um bom exemplo de hierofania. A modo de ilustração refere-se a alguns versos de Patativa, que parece ir ao encontro do assunto: na composição história de uma cruz o poeta assim se expressa: Papai, conte a história daquela cruizinha Tão triste, sozinha, No pé da ladêra, Com seus braços aberto, chorosa, coitada! Na bêra da istrada, Qui vai pra rebêra. Me conte o motivo daquilo que vejo, Me faça o desejo, Me faça a vontade. Pois lá tenho visto muié saluçando E a cruz infeitando De reza e sodade.271 Nos versos do poeta, um ex-voto ao “pé da ladêra”, que é a cruzinha, é a expressão de uma realidade sagrada. O enredo do poema é sobre a morte de um operário pobre a mando de um poderoso patrão. De modo que a cruz ali, além de ser carregada de sentido religioso é também, para o eu-poético, um tipo de denúncia ao lembrar um crime que manchou o chão, que profanou o sagrado: neste caso a vida de um inocente e seu sangue derramado. O pedido curioso do filho entrevê que a cruz tem algo muito significativo a revelar. Essa hierofania expressa, por assim dizer, um encontro de dois mundos: a cruz aproxima o mundo de Deus e o mundo do sofrimento humano, ultrapassando a esfera mundana. É uma leitura possível. Na perspectiva de Eliade a história das religiões, em todos os níveis, das mais primitivas às mais elevadas, é constituída por um número considerável de hierofanias, isto é, pelas manifestações das realidades sagradas. A manifestação do sagrado num objeto qualquer, uma pedra ou uma árvore – e até a hierofania suprema, que é, para um cristão, a encarnação de Deus em Jesus Cristo, não existe solução de continuidade. Encontramo-nos diante do mesmo ato misterioso: a manifestação de algo “de ordem diferente” – de uma realidade que não pertence ao nosso mundo “natural”, “profano” 272 É essa manifestação de “ordem diferente” que faz com que uma pedra, uma árvore ou outro objeto qualquer se transformem em outra coisa, sem, no entanto, deixarem de ser eles mesmos. “A pedra sagrada, a árvore sagrada, não são adoradas como pedra ou como árvore, mas justamente porque são hierofanias, porque ‘revelam’ algo que já não é nem pedra, 270 Segundo o próprio Eliade, o termo proposto “é cômodo, pois, não implica nenhuma precisão suplementar: exprime apenas o que está implicado no seu conteúdo etimológico, a saber, que algo de sagrado se nos revela”. (Cf. ELIADE, Mircea. Sagrado e profano, p. 17). 271 ASSARÉ, Patativa do. Melhores poemas. p. 70. 272 ELIADE, op.cit., p. 17. 103 nem árvore, mas o sagrado.”273 E nisso consiste o paradoxo ou mesmo um linha tênue que divide o que é sagrado do que é profano. É tendo em vista também esse paradoxo que Eliade tece sua abordagem das duas modalidades de ser no mundo, duas situações existenciais assumidas pelo homem ao longo da história: o sagrado e o profano. Nessa perspectiva ele concebe o sagrado considerando em primeiro lugar a experiência religiosa do espaço. Haveria, nesse sentido, duas instâncias: uma sagrada e outra não-sagrada. A instância sagrada diz respeito à necessidade que o homem religioso tem de viver numa atmosfera sobre a qual o sagrado se manifeste. Isso, no entanto, não eliminaria o paradoxo já referido no que tange às duas realidades, sagrada e profana. As duas parecem coexistir, entretanto, uma é distinta da outra. Nesse sentido, é interessante observar o exemplo dado pelo o autor: uma igreja. Aos olhos de um crente esse espaço eclesial seria totalmente diferente da rua onde esse está construído. Mas, como se pode conferir, haveria a possibilidade de continuidade: A porta que se abre para o interior da igreja significa, de fato, uma solução de continuidade. O limiar que separa os dois espaços indica ao mesmo tempo a distância entre dois modos de ser, profano e religioso. O limiar é ao mesmo tempo o limite, a baliza, a fronteira que distinguem e opõem dois mundos – e o lugar paradoxal onde esses dois mundos se comunicam, onde se pode efetuar a passagem do mundo profano para o mundo sagrado.274 O limite ou limiar, a porta que dá acesso a esses dois mundos, é o que parece chamar mais a atenção aqui. Eliade considera o limiar o espaço de grande importância. É nele que o homem religioso realiza uma série de ritos para puder “ter posse” do sagrado. Por exemplo, reverências ou prosternações, toques devotados com a mão, entre outros. Isso para dizer que, para se adentrar o “outro mundo”, faz-se necessário certo esforço de purificação. O outro mundo está representado, neste contexto, pela igreja, que é também uma hierofania, símbolo do espaço totalmente distinto do que se passa ao seu derredor, na correria e aglomerações humanas. O limiar também é condição de possibilidade de continuidade, isto é, de comunicação entre o sagrado e o profano. Conforme Eliade há no homem religioso o desejo de mover-se unicamente num espaço santificado, sagrado. Daí o esforço por criar um “ponto fixo”, por consagrar ritualmente esses espaços. Essa criação e consagração, porém, não é no sentido de que tudo se dá pelo esforço e obra humanos. A ordem é obra divina e isso se dá por meio dos ritos. Como indica Terrin, 273 ELIADE, op. cit., p. 18. 274 ELIADE, op. cit., pp. 28-29. 104 O rito nos permite viver num mundo organizado e não-caótico, permite-nos sentir em casa, num mundo que, do contrário, apresentar-se-ia a nós como hostil, violento, impossível. Se é verdade que o cosmo tem a força de opor-se ao caos, isso se deve ao rito e à sua força organizadora.275 A religião276 nesse sentido ocupa uma função importante. Ela se encarrega de delimitar a instância do sagrado por meio dos ritos.277 Nessa perspectiva Galimberti defende que a religião circunscreve a área do sagrado e mantendo-a a um só tempo ‘separada’ da comunidade dos homens e ‘acessível’ por meio de ritos codificados, pôs as condições para que os homens pudessem edificar o cosmo da razão, o solo que eles podem habitar, sem remover o abismo do caos.278 No entanto, os ritos com os quais se constroem os espaços sagrados só têm eficácia à medida que reproduzem a obra dos deuses. É nesse mesmo sentido que Eliade insiste na concepção tradicional do mundo, de novo em dois opostos: o caos e cosmo. O que caracteriza as sociedades tradicionais é a oposição que elas subentendem entre o seu território habitado e o espaço desconhecido e indeterminado que o cerca: o primeiro é o “mundo”, mas precisamente, “o nosso mundo”, o Cosmos; o restante já não é um Cosmos, mas uma espécie de “outro mundo”, um espaço estrangeiro, caótico, povoado de espectros, demônios, “estranhos” (equiparando, aliás, aos demônios e às almas dos mortos).279 Dessa forma, considerando as sociedades arcaicas, o cosmos tem que ver com o território habitado e organizado. O caos, por sua vez, é a instância desconhecida, que está além do limiar, da fronteira. No entanto, mais do que essa oposição entre ambos, o autor observa que o cosmos só é cosmos porque foi consagrado, isto é, porque é obra dos deuses. O sagrado se manifestou nele. Por isso, um espaço consagrado seria como que uma forma de estabelecer a ordem cósmica, ao que Eliade explica: “É importante compreender que a cosmização dos territórios desconhecidos é sempre uma consagração: organizando um espaço, reitera-se a obra exemplar dos deuses”.280 Evidentemente aqui se poderia fazer uma ressalva política: sabe-se das inúmeras invasões e dominação de povos considerados civilizados e de outros vistos como menores e 275 TERRIN, op. cit., p.19. 276 Do latim “re-ligare", que significa "voltar a ligar", “ligar novamente", ou "religar”. Noutros termos, é o que cosmifica, dá ordem ao caos. 277 Partindo da perspectiva etimológica, convém citar o que explica Terrin: “Rito vem do latim ritus, que indica a ordem estabelecida e, mais atrás, liga-se ao grego artýs, como significado também de ‘precisão, decreto’. Mas a verdadeira raiz antiga e original parece ser de ar (modo de ser, disposição organizada e harmônica das partes no todo, da qual derivam a palavra sânscrita rta e iraniana arta, e, em nossas línguas, os termos ‘arte’, ‘ritual’, família de conceitos intimamente ligada à ideia de harmonia e restauradora e a ideia de ‘terapia’ como substitutivo ritual. O rito coloca ordem, classifica, estabelece as prioridades, dá o sentido do que é importante e do que é secundário. (Cf. TERRIN, op. cit., p.18). 278 GALIMBERTI, Umberto. Rastros do sagrado, p. 13. 279 ELIADE, op. cit., p. 32. 280 ELIADE, op. cit., p. 35. 105 atrasados. Neles também permeava a questão do sagrado. Eliade, aliás, cita o exemplo dos “conquistadores” espanhóis e portugueses que quando tomavam posse de território, em nome de Jesus Cristo, erigiam a Cruz como forma de consagração do território “conquistado”. É certo que nessa e em outras circunstâncias históricas o sagrado serviu de álibi para a dominação, exploração e extermínio de muitos povos. Embora o enfoque desta abordagem seja o interesse apenas por averiguar o fenômeno, a ressalva é para dizer que se entende tratar de uma questão “escorregadia”. Não interessa no momento avançar nesta perspectiva. O fato é que, como se tem analisado até aqui, o sagrado irrompe no mundo e o homem não consegue furtar-se dele. Noutras palavras, a pessoa humana em qualquer tempo e lugar e circunstâncias, desde as realidades primitivas às mais elevadas, sempre sentiu a necessidade de espaço no qual pudesse transcender ao “caos” próprio do mundo profano. Nos dizeres de Eliade, o homem religioso só pode viver num mundo sagrado porque somente um tal mundo participa do ser, existe realmente. Essa necessidade religiosa exprime uma inextinguível sede ontológica. O homem religioso é sedento do ser. O terror diante do “Caos” que envolve seu mundo habitado corresponde ao seu terror diante do nada. O espaço desconhecido que se estende para além do seu “mundo”, espaço não- cosmizado porque não-consagrado, simples extensão amorfa onde nenhuma estrutura se esclareceu ainda – este espaço profano representa para o homem religioso o não-ser absoluto. Se, por desventura, o homem se perde no interior dele, sente-se esvaziado de sua substancia “ôntica”, como se se dissolvesse no Caos, e acaba por extinguir-se.281 Além do mais, a necessidade do sagrado não seria tão-somente sentida pelo homem religioso, mas até mesmo pelos que vivem situações de alto grau de dessacralização. Segundo Eliade, em nenhum momento da história humana é possível abolir completamente o comportamento religioso, pois não haveria uma existência profana em estado puro, “a existência mais dessacralizada conserva ainda traços de uma valorização religiosa do mundo”.282 Nesse sentido, Galimberti esclarece: a sacralidade, portanto, não é uma condição espiritual ou moral, mas uma qualidade inerente ao que tem relação e contato com potências que o homem, não podendo dominar, percebe como superiores a si mesmo, e como tais atribuíveis a uma dimensão, em seguida denominada ‘divina’, considerada ‘separada’ e ‘outra’ com relação ao mundo humano.”283 É, pois, nessa perspectiva que a poética patativana se apresenta como um campo propício no qual é possível averiguar a presença desses dois modos de ser no mundo: sagrado e profano. Pode-se afirmar que esta dicotomia se apresenta de uma ponta a outra em sua obra. Temas como: bem e mal, humano e divino, Deus e o diabo, vida e morte, céu e inferno são 281 ELIADE, op. cit., p. 60. 282 ELIADE, op. cit., p. 27. 283 GALIMBERTI, op. cit., p. 11. 106 recorrentes em Patativa. É na tensão desses opostos, e também na comunicação entre eles que se desenrola a poesia de Patativa. No intuito de apreender o sentido humano da visão do mundo do poeta é que, agora, se analisam e interpretam alguns de seus poemas, observando a presença de elementos do sagrado, manifestos na realidade profana. 4.4. Marcas do sagrado em Patativa Para análise e interpretação do fenômeno do sagrado em Patativa do Assaré selecionaram-se quatro poemas: Filosofia de um trovador sertanejo, A menina e a cajazeira, O caçador e uma do diabo. As quatro composições foram publicadas no volume Inspiração nordestina, primeiro livro de Patativa, editado em 1956. Filosofia de um trovador sertanejo e A menina e a cajazeira repetem-se na antologia Cante lá que canto cá, de 1978. O caçador encontra-se também em Aqui tem coisa, de 1994. Uma do diabo, pelo que se constatou, não se encontra em outros volumes. Utilizar-se-á aqui a edição de Inspiração nordestina, de 2006, da editora Hedra. Todos os poemas escolhidos foram compostos na linguagem “cabloca”, como Patativa costumava denominar a língua das pessoas do sertão sem acesso ao saber da escola oficial. Considerando que os poemas escolhidos foram publicados na edição de Inspiração nordestina de 1956, poder-se-ia afirmar que eles caracterizam a “primeira fase” da poética, justamente por seus traços sertanejos bastante “autênticos”, tanto na linguagem, quanto nos temas. É importante lembrar que quando estes poemas foram publicados o poeta já tinha 47 anos de idade, de modo que não é possível precisar a época em que realmente foram compostos. Sabe-se que até então Patativa os tinha todos arquivados na mente e que começara a compor poesia ainda bem jovem. Observa-se que na análise dos poemas não se leva em conta a religião enquanto fé institucionalizada, isto é, como um credo estabelecido. Embora os poemas revelem nitidamente uma mentalidade judaico-cristã, precisamente cristã católica, o intuito é considerar a religião como um modo aberto de conceber o mundo. Além disso, a leitura de Patativa a respeito de Deus, fé e religião parece “independente” de um pensamento oficial instituído, ou seja, tende mais para uma forma espontânea de fé, ou por outra, “fé popular”. Nesse sentido sua poesia se apresenta não como doutrinas e dogmas de uma religião específica, nem tampouco trata de temas teológicos de modo sistemático, mas faz teologia como um modo livre de falar de Deus, independente de um “saber especializado”. 107 O tema religião, portanto, apresenta-se transversalmente, de modo que pela análise e interpretação se farão notar suas “marcas” implícitas e explicitas, bem como a convergência de significados entre os poemas selecionados. Todos tratam de uma força sobrenatural que moveria o mundo, perpassando múltiplas questões a respeito de Deus e também de seu contrário: o diabo. É evidente a dicotomia entre o bem e o mal. 4.4.1. Apresentação dos poemas Os poemas Filosofia de um trovador sertanejo e A menina e a cajazeira são compostos em décima, ou seja, cada estrofe é composta de dez versos. Ambos os poemas seguem este esquema de rimas: xAxABBCDDC: o primeiro e o terceiro verso não rimam com nenhum, isto é, são brancos, enquanto o segundo rima com o quarto, o quinto e o sexto entre si, o sétimo rima com o décimo, e o oitavo com o nono. Convém ressaltar que as rimas são, por assim dizer, a essência da poesia patativana. Para o poeta uma poesia sem rima é questionável, porque em sua concepção a rima constitui a beleza da poesia.284 Isso explica justamente sua ancoragem no universo da oralidade, onde as rimas funcionam como o suporte para a memória. Citam-se, então, as estrofes introdutórias das duas composições referidas, identificando entre parênteses os esquemas de rimas: Filosofia de um trovador sertanejo 1. Seu dotô pede que eu cante (x) 2. Coisa da filosofia; (A) 3. Escute que eu vou agora (x) 4. Cantá tudo em carretia; (A) 5. O senhô pode escutá, (B) 6. Que se as corda não quebrá, (B) 7. Nem fartá minha cachola, (C) 8. Eu lhe atendo num instante: (D) 9. Nada existe que eu num cante (D) 10. Nas corda desta viola. (C) (...) A menina e a cajazeira 1. Argúem diz que o mundo presta, (x) 2. Grita mêrmo em arto som, (A) 3. Mas é tolo e nada sabe (x) 4. Quem diz que este é bom. (A) 5. Como é que ele tem bondade (B) 6. Se a nossa felicidade (B) 7. Voa como o pensamento, (C) 8. E da praça inté no campo (D) 9. O gozo é cumo o relampo, (D) 10. Que abre e fecha num momento? (C) 284 PATATIVA, Assaré do. Digo e não peço segredo, p. 19. 108 (...) O poema Uma do diabo é composto também em décima, porém em outra variante, obedecendo à seguinte sequência de rimas: ABABCCDEED. Neste esquema o primeiro verso rima com o terceiro, o segundo com o quarto, o quinto e o sexto juntos, o sétimo com o décimo, e o oitavo com o nono. Já o poema O caçador segue outra modalidade. Trata-se da sextilha, um modo de composição muito comum na literatura de cordel. Neste caso, as rimas são organizadas assim: AABCCB. Explica-se: os dois primeiros versos se unem, o quarto e o quinto igualmente, e o terceiro verso rima com o sexto. Exemplificam-se ambos com seus respectivos esquemas de rimas: Uma do diabo 1. O mundo sabe e percebe (A) 2. O Diabo o quanto é sagaz, (B) 3. Ele não come nem bebe, (A) 4. Se não da arte que faz. (B) 5. Pra tudo ficá ciente, (C) 6. Vou pedi a toda gente (C) 7. Que agora em silenço fique, (D) 8. Que eu vou contar minha histora, (E) 9. Que amedronta e que apavora, (E) 10. Capaz de dá tremilique.(D) (...) O caçador 1. Seu dotô, vossa incelença (A) 2. Aqui tem franca licença, (A) 3. Não tem de que se acanhá. (B) 4. Se o senhor é empregado, (C) 5. Tem seu dereito sagrado (C) 6. Dos pote fiscalizá. (B) (...) Quanto ao tamanho dos poemas selecionados, eles constituem uma “fartura” de versos: Filosofia de um trovador sertanejo tem 32 estrofes de 10 versos, totalizando 320 versos. A menina e a cajazeira, 22 estrofes em décima: 220 versos. Uma do diabo, 30 estrofes também em décimas: 300 versos. O caçador composto em sextilha tem 28 estrofes, portanto, 168 versos. Os quatro têm em comum a característica de narrativa. Com exceção de A menina e a cajazeira, os demais são narrados em primeira pessoa. 4.4.2. Enredos: teia de significados 4.4.2.1. Filosofia de um trovador sertanejo 109 Filosofia de um trovador sertanejo é uma narrativa que toma como base a matriz mítica judaico-cristã a respeito da criação do homem e da mulher, mito contado e recontado na cultura cristã ocidental. Além disso, discorre sobre outros temas universais como a origem do mal no mundo, a questão da morte e o destino da humanidade. Quem narra a história é um cantador popular ou, como parece, um poeta repentista que, atendendo a uma solicitação de certo dotô (interlocutor), verseja acompanhado de sua viola. Para fins explicativos, divide-se aqui o poema em três partes: a apresentação do tema, o desenvolvimento e a conclusão. A abertura sugere que o poeta esteja na casa de pessoa influente, de “cultura”. O próprio tema “coisa da filosofia” pode indicar isso, como se o poeta fosse desafiado a mostrar seu saber. A expressão de tratamento “seu dotô” indica que o interlocutor é de classe social superior à do cantador.285 Além disso, é possível imaginar uma reunião ou encontro “à boca da noite”, quando era comum o povo do sertão se reunir para ouvir as cantorias, as pelejas ou desafios dos repentistas e cantadores. Nas três estrofes, especialmente na segunda e na terceira, o poeta apresenta o tema que vai decantar: Sobre este mundo crué, De turmento e confusão, Os poeta sempre gosta De dá sua pinião; Um descreve de proviso Que o mundo é um paraíso Enfeitado de fulô; Já ôto, que é mais izato, Diz que o mundo é um triato Cheio de cena de horrô. (..) Por isso, eu agora vou Pedi ao senhô dotô Um poquinho de tenção; No causo que eu possa sê, Que eu quero tombém fazê A minha comparação. Essa introdução pode ser considerada um recurso de sedução ao ouvinte. É o momento de prender a atenção da plateia. É a “isca”. Se causar empatia logo no início, é a garantia de que o poeta terá o público até o final da apresentação. A partir dessa tentativa de persuasão, inicia-se a segunda parte do poema: o narrador prossegue “pintando” um quadro obscuro do mundo, sem, no entanto, ainda dizer o porquê de tal obscuridade, portanto, causando suspense ao espectador: 285 É comum, ainda hoje, aos interioranos o tratamento de doutor a quem ocupa cargos políticos, grandes proprietários de terra, empresários, ou a pessoas mais “estudadas”, sobretudo se morarem na cidade (aqui o autor deste trabalho faz essa afirmação tendo em vista sua própria vivência no interior do Ceará). 110 (..) O mundo é uma cadeia Que de prêso veve cheia, Ninguém me diga que não; A morte é seu sentinela, E é quem arranca as tramela Das porta desta prisão . (...) Nóis somo os prisionêro Deste carce universá; Vivendo nesta prisão, Tudo de argema nas mão, Os grião é as doença; Dentro deste calaboço Sofre o véio e sofre o moço, Que a vida é dura sentença! A metáfora do mundo como cadeia e a personificação da morte como sentinela dessa prisão parecem ser os elementos principais desse trecho. Os outros elementos giram ao redor deles formando um quadro horripilante do mundo: porta, cárcere, algemas, grilhões, calabouço transmitem a sensação de que a humanidade vive presa em fortaleza sombria, acorrentada dos pés à cabeça, sujeita a penalidades duríssimas: viver não passa de uma dura sentença. Tudo geme neste carce, Grita um – ai! ôto – ôi! E a causa dessa derrota E vou lhe dizê quem foi: Apois bem, todo motivo De hoje nós vivê cativo, No mais horrive pená, Foi Adão e sua esposa, Que os mais véio faz as coisa Mode os mais novo pagá. O cantador chega num ponto importante da narrativa. Ele menciona a raiz do problema, a razão pela qual a humanidade vive no mais horrível penar. Há um acontecimento primordial: Adão e Eva entram na história. O mito e seus significados como explicação do mundo. Antes, porém, de falar da culpa dos dois o poeta precisa contextualizar como tudo ocorreu. Essa é a terceira parte do poema. Ele conta: No mêrmo tempo que Deus Fez o Céu, o Má, e o Chão, Fez tombém de barro um home, Que é justamente esse Adão; Ele era um belo vivente, Santo, fié, inocente, Mas depois foi treiçoêro, Fez uma grande desorde, Pruquê não cumpriu as orde Do nosso Deus Verdadêro. (...) 111 Na Bíblia, no que tange à criação de Adão, o relato assim narra: “Então Iaweh Deus modelou o homem com a argila do solo, em suas narinas soprou um hálito de vida e o homem se tornou vivente.”286 A intertextualidade é evidente. O poeta insere Adão287 na totalidade da criação:288 foi feito ao mesmo tempo em que o céu, o má, e o chão foram criados. Segue-se a narrativa explicando cada detalhe: No dia que Deus fez ele, Incalocou num lugá Que os home sabido chama Paraíso Terreá, Tarvez uma bela charca, Dessas de premêra marca, Que tem todas prantação; Ou entonce, como a quinta De seu Mané da Jacinta, Moradô no Buquerão. Entonce, naquela charca, Ou por ôta, Paraíso, Era mêrmo um céu aberto, Tudo era riqueza e riso; Mas Adão, se achando só, Pediu a Deus um xodó, Que a vida tava crué; Deus, vendo essa choradêra, Lhe entregou por companhêra Uma fromosa muié. Interessante a comparação entre paraíso e uma chácara de primeira marca: uma plantação bem cuidada e com diversidade de árvores frutíferas. O poeta aproxima o “jardim do Éden” com algo muito próximo, de conhecimento do público: a chácara ou a quinta de seu Mané da Jacinta, morador no Buquerão. Comparando o Éden com essa chácara, o poeta descomplica o que às vezes os home sabido complicam em suas reflexões altamente metafísicas e vocabulários indecifráveis. O que à primeira vista era simplesmente a quinta de seu Mané da Jacinta nos “longínquos sertões”, agora é parte de um acontecimento primordial, o paraíso do Gênesis. Em poucas palavras o cantador sintetiza o que seria o paraíso: era um céu aberto, tudo era riqueza e riso. Um céu aberto dá a ideia de acolhida, de lugar onde não se faz acepção de pessoas, tem livre acesso. O quadro é totalmente oposto ao descrito sobre o mundo no inicio da narrativa. Aqui há um horizonte de liberdade, lá de opressão e sujeição. Tudo era riqueza e riso. A sonoridade das palavras riqueza e riso combinam-se harmonicamente, provocando certa sensação de leveza e ao mesmo tempo saudade de um elo perdido. O verbo 286 Cf. Gênesis 2,7. דם 287 .chaváh: “vida” ou “vivente”. (STRONG, J., & Sociedade Bíblica do Brasil – ח%וה .adam: ser vermelho – א Léxico Hebraico, Aramaico e Grego de Strong. Sociedade Bíblica do Brasil. 2002; 2005). 288 Sobre a narrativa bíblica da criação e do primeiro pecado cf. Gênesis capítulos 1-3. 112 no passado – era – parece ter a função de arrancar o ouvinte desse estado feliz (harmonia e leveza) e fazê-lo dar-se conta de que se trata de uma felicidade perdida. Assim como o poeta foi preciso narrando o modo como Deus fez o homem, também o é no que tange à criação da primeira mulher, Eva.289 Apresenta-se agora o texto bíblico e em seguida o verso do poeta: “Então Iahweh Deus fez cair um torpor sobre o homem, e ele dormiu. Tomou uma de suas costelas e fez crescer carne em seu lugar. Depois, da costela que tirara do homem, Iahweh Deus modelou uma mulher e a trouxe ao homem.”290 (...) Deus mandou Adão drumi E logo, assim que mandou, Sem demorá um momento Adão no sono pegou. E nesse sono pesado, Deus aparpando dum lado Arrancou-lhe uma costela, E sem perpará o esboço, Daquele pequeno osso Fez Eva, formosa e bela. Daquele ossinho pequeno Num momento Deus fez Eva, Pois pra fazê quarqué coisa Munto tempo Deus não leva; (...) Entonce, Adão acordou, E quando se levantou, Eva tava do seu lado. Percebe-se que o texto bíblico e do poeta estão em sintonia. A diferença é que os versos do poeta opinam sobre Deus e evidenciam seu poder: ele faz tudo com excelência e perfeição. Em todo o poema o nome de Deus é referido 17 vezes. Jesus e Nossa Senhora também são mencionados. Isso para dizer que a visão do mundo do cantador além do relato bíblico, apoia-se em sua crença religiosa: a referência à mãe de Deus evidencia a fé católica. Depois de narrar a criação de Adão e Eva, o cantador declama sobre a felicidade que o casal experimentava no paraíso. Ali tudo era satisfação, fartura; não havia canseira e nem precisavam trabalhar. Mas em meio à riqueza e variedades frutíferas havia uma árvore, cujo fruto o casal não podia comer: (...) Dos ôtos todos tirava E comia a se fartá; Mas daquele não comia. Pruqê comendo, fazia Grande pecado mortá. 289 Eva - hayah – "aquela que dá vida". 290 Cf. Gênesis 2,21-22. 113 Esse fruito do pecado Parece que tinha um quê, Que a gente vendo, ficava Com vontade de comê. Seu Dotô, eu não seu não, Mas faço avaliação Que aquele fruito dali Agradava a nosso orfato, Como essa fruita do mato Que o povo chama piquí. Aqui merece destacar a comparação feita da fruta do pecado com o pequi.291 Trata-se de um artefato poético cheio de significado. O pequi tem um aroma forte e atrativo, de modo que, se alguém chega numa casa em que se está preparando a comida com esse fruto, logo sente o cheiro, e de imediato pode se agradar intensamente dele ou se desagradar imensamente. Quanto ao consumo do fruto do pequizeiro na culinária, diz-se aqui em poucas palavras: ele é consumido cozido, puro ou misturado com arroz, frango etc. Sua polpa é oleosa, da qual se faz o azeite de pequi, usado para tempero, na fabricação de licores e é também utilizado na medicina alternativa como curativo. No entanto, há outro aspecto a considerar, e esse é o que mais interessa nesta abordagem, justamente por sua força simbólica. Explica-se: em seu caroço há espinhos minúsculos. Se não houver o cuidado necessário, quem o consome pode se ferir. Interessante essa compração feita pelo poeta: o pequizeiro passa a ser a ávore do bem e do mal, ou como expresso no poema, frutêra da triste sorte. Há um verso em que o poeta diz: Esse fruito do pecado/ parece que tinha um quê. Esse um quê pode remeter a certa conotação sexual, sobretudo levando-se em conta o imaginário difundido no que se refere ao fruto do pecado, comumente relacionado ao sexo. Nesse sentido, outra curiosidade sobre o pequi é a própria palavra que se aproxima de 291 Fruto nativo do cerrado brasileiro, utilizado na cozinha nordestina –, no Ceará é comum na região sul do estado, justamente a região de Patativa –, no centro-oeste e norte de Minas Gerais. Na língua indígena pequi significa casca espinhenta. Vale citar um trecho da lenda do pequi: “Maluá partiu. Tainá-racan encostou a fronte na terra, onde pouco antes pisavam os pezinhos encantados de Uadi. Chorou. Chorou. Chorou três dias e três noites. Então, Cananxiué se apiedou dela. Baixou à terra e disse: "Das tuas lágrimas nascerá uma planta que se transformará numa árvore copada. Ela dará flores cheirosas que os veados, as capivaras e os lobos virão comer nas noites de luar. Depois, nascerão frutos. Dentro da casca verde, os frutos serão dourados como os cabelos de Uadi. Mas a semente será cheia de espinhos, como os espinhos da dor de teu coração de mãe. Seu aroma será tão tentador e inesquecível que aquele que provar do fruto e gostar, amá-lo-á para jamais o esquecer. Como também amará a terra que o produziu. Todos os anos encherei, generosamente, sua copa de frutos, que os galhos se curvarão com a fartura. Ele se espalhará pelos campos, irá para a mesa dos pobres e dos ricos Quem estiver longe e não puder comê-lo sentirá uma saudade doida de seu aroma. Nenhum sabor o substituirá. Ele há de dourar todos os alimentos com que se misturar e, na mesa em que estiver, seu odor predominará sobre todos. Ele há de dourar também os licores, para a alegria da alma". (Cf. MACHADO, Marieta Teles. Os frutos dourados do pequizeiro, Acessível em: http://www.altiplano.com.br/Pequi6.html. Acesso em 23/2/08). 114 priquito ou piquito, palavra que geralmente no interior do Ceará se usa para vagina. É também difundida a ideia de que quem come o pequi adquire energia sexual. Essa inserção a respeito do fruto do pecado e a comparação com o pequi, além da criatividade poética, parece funcionar também como um recurso para não cansar o interlecutor. Ele a insere no meio da composição, quando possivelemente a audiência já poderia dar sinal de cansaço. É possível até imaginar que neste momento o poeta tenha provocada riso na plateia. A partir de então ele discorre sobre a participação de Eva na cena do pecado e, assim como na narrativa bíblica, é dela a maior parcela de culpa por se deixar enganar pela serpente e por convencer seu companheiro a comer o fruto proibido. Eis a consequência: guerra, desespero, dor, doença, sofrimento. (...) Logo que comêro o fruito Aqueles dois mal uvido, Quando cuidaro, era tarde: Tava todos dois despedido; Um do ôto envergonhado, Cada quá mais acanhado Queria se escapulí. Ô hora triste e mesquinha! Eva, coitada, não tinha Um pano pra se cobri. Deus, vendo aquilo, ordenou A um anjo da Gulóra Que expursasse Adão mais Eva Do Paraíso pra fora; E eles dois fôro sofrê Inté um dia morrê, Mode assim podê gozá. Diz as Leitura Sagrada Que a morte foi ineventada Daquele tempo pra cá. Ante daquele pecado A vida era uma deliça; Mas despois dele ficou Cheia de dô e maliça. Por causa de Eva e de Adão O mundo é uma prisão, Cumo eu dixe a seu dotô: Foi Eva mais seu esposo Os primêro criminoso Que nesta cadeia entrou. Essa parte constitui o ponto nodal do poema. Ele retoma a proposição feita no início de que o mundo é uma cadeia e justifica o porquê disso: a desobediência do primeiro casal fez com que a humanidade perdesse o elo com o Criador. Para reatar esse elo a morte ocupa uma posição importante: ao mesmo tempo em que é o vigia da prisão é também aquela que liberta os prisioneiros, arranca as taramelas. 115 (...) Se a vida traz o tromento E a morte o descanso traz, Não dou cavaco em morrê, Pra gozá da santa paz. (...) Só se goza boa sorte Depois de uma boa morte; (...) A morte é quem nos trensporta, Cada um tem sua porta De saí pro ôto mundo. (...) A pessoa quando tá Bem doente, quage morta, A morte ta com certeza Bem no pé da sua porta; Já ta pegada na tranca, E no momento que arranca, O espírito avoa veloz De dentro desta prisão, Que Eva e seu marido Adão Dêxou de herança pra nós. Pelo pecado todos se tornaram escravos, prisioneiros num mundo de sofrimento. A única possibilidade de alcançar aquela paz perdida no paraíso é através da morte. Ou seja, ainda que a morte seja filha do pecado, é também a porta de acesso a outra vida. Desse modo, se a vida presente é feita de tormento e há a esperança de uma vida futura de paz, para o cantor é preferível morrer: é morrendo que se vive. De novo o poeta personifica a morte292 como alguém à espreita, aguardando o momento exato de agir. Aqui, ao que parece, ela é vista com positividade, não se lamenta sua presença, ao contrário. Seu dotô, e agora mêrmo Que eu já fiz seu mandado, Dê lecença pr’eu findá. Este assunto tão puxado. Penso já lhe agradei, Apois boa prova dei Da minha comparação, Lhe jurando com franqueza E afirmando com certeza Que o mundo é uma prisão. (...) Mêrmo o jeito é eu dexá: Que a viola se danou, Pipocou uma das prima E o bordão desafinou; 292 O tema da morte constitui a base universal das religiões (cf. SAVATER, As perguntas da vida, p. 20). Convém, pois, anotar brevemente a respeito de sua simbologia, especificamente relacionada à religião cristã: “A simbologia ocidental cristã da morte desenvolveu-se em época relativamente tardia, na Idade Média. [...] Como personificação ou símbolo, a morte ocorre na oposição das palavras mors (morte) e vita (vida). Só na Idade Média tardia começam a aparecer com frequência cada vez maior os símbolos conhecidos, ou seja, a morte como esqueleto, muitas vezes com ampulheta e/ou foice, mas ainda mais insistentemente nos ciclos da dança macabra sob a impressão causada pelas epidemias das pestes que ceifavam pobres e ricos, jovens e velhos, homens e mulheres.” (Dicionário de símbolos, p. 196). 116 Tombém, eu já cantei munto, Tá treminando esse assunto Que vasmicê me pedia, E o que dixe já porvei; Descurpe se eu não cantei Coisa de filosofia. Tendo cumprido o pedido de falar sobre coisas de filosofia, o poeta faz o fechamento de sua apresentação. De modo respeitoso com o interlocutor, assim como pediu licença para começar seu canto, agora também pede permissão para concluí-lo. E, seguro de que justificara a sua tese de que o mundo é uma prisão, termina a cantoria. É possível imaginar os aplausos da plateia. 4.4.2.2. A menina e a cajazeira Convém lembrar aqui também que para melhor compreensão divide-se o poema em três partes: a primeira consta da introdução, apresentando o tema e as teses sobre as quais a narrativa vai discorrer. A segunda é o desenvolvimento da história em si. A terceira é apreensão de sentidos e seus desdobramentos, feita à medida que é percorrido o enredo. Isso para dizer que forma de análise aqui não é linear. Procura-se, no entanto, interligar a totalidade da obra, acompanhando a sequência da narrativa. A composição A menina e a cajazeira trata essencialmente do mesmo tema assinalado em Filosofia de um trovador sertanejo: o pecado original e suas consequências.293 Porém a forma narrativa é mais autêntica, isto é, o narrador toma a ideia geral do mito como “pano de fundo” e transforma em outra história, construindo seu próprio quadro sem a necessidade de a todo instante fazer intertextualidade explícita da narrativa bíblica. Em linhas gerais o poema faz uma leitura mais existencial, com tons intimistas a respeito da vida. Há como que, a busca de um elo originário perdido. Haveria um destino trágico traçado para a humanidade e a natureza em geral. Toda a tragicidade de existir, portanto, se explicaria no evento primordial do pecado de Adão e Eva. A narrativa transmite certa sensação de angústia e tragicidade: ninguém escaparia da sentença de dor herdada do primeiro casal: Dêrne do primêro dia Que a Adão mais Eva pecou, A rosa criou espinho, Tudo se desmantelou. 293 Interessante frisar que tanto no poema Filosofia de um trovador sertanejo como no A menina e a cajazeira há o desejo expresso de reintegração do Paraíso. Numa leitura na perspectiva de Eliade, isso se traduziria no arquétipo da “reintegração do Paraíso”. Trata-se do paradoxo da História Sagrada situada num tempo histórico. A esse respeito o autor sustenta: “Tanto entre os primitivos como entre os cristãos, é sempre um retorno paradoxal in illud tempus, num ‘salto para trás’ abolindo o tempo e a história, que constitui a reintegração mística do Paraíso.” (ELIADE, Imagens e Símbolos, p. 168). 117 E Deus, vendo que a desgraça De Adão, o chefe da raça, Percisava sê comum, Depressa sentenciou, E uma parcela de dô Reservou pra cada um. Inté mesmo as arve do campo, Que não ofende a ninguém, Herdou daquela miséra, Tem suas máguas tombém. (...) Tudo quanto a terra cria Tem de passá sofrimento, Tem seus momento de gôzo E seus ano de tromento. (...) O poeta começa em tom solene e com frases de efeito, chamando a atenção do interlocutor para o problema do sofrimento humano: a raiz de tudo está no mito do pecado. Para provar sua tese, ele conta “a triste e penosa histora da menina e a cajazêra”. Na visão do poeta, a menina e a árvore sertaneja, a cajazeira, são representativas da existência humana e da totalidade da criação: ambas são fadadas a um destino doloroso. Mas nem tudo é dor, como ele mesmo ressalta, há também momentos de gozo. E é justamente sobre isso a descrição da primeira parte do poema: Num sito munto distante, Na bêra de uma lagoa, Morava um casá fié Uma gente munto boa. Tinha uma linda criança, Risonha cumo a esperança, Era linda e prazentêra. E brincava todo dia Na sombra fresca e sadia De uma bela cajazêra. Como quem narra um conto de fadas antigo, em que se começa sempre com um clássico “era uma vez”, o poeta faz o mesmo, dizendo “num sito munto distante”. Desse modo, ele marca o ponto de partida da história e convida o ouvinte a ficar atento ao que vai narrar. A cena de abertura apresenta o ambiente originário da menina e da cajazeira, evidenciando ser um espaço fértil. Uma possível interpretação pode ser assim descrita: a lagoa remete à água, e água é vida; o casal fiel é garantia de cuidado e de amor recíprocos, a sombra fresca e sadia da cajazeira é indício de que ali há plena harmonia entre homem e natureza. É nessa perspectiva de harmonia que o relato prossegue: Bem de juntinho da casa A cajazêra nasceu, Linhêra, iguá uma frecha, No rumo do céu creceu. 118 (...) Entonce a linda criança, Aquela boa menina, Era o prazê e era a paz Da cajazêra franzina. (...) Aquela copa vistosa Pra inocente criança Era um céu, um paraíso Verde, da cô da esperança. As ave fazia festa, Tinha graça a doce orquesta Daqueles musgo de pena, Com seus requebrado canto, Levando o riso e o encanto Daquela santa pequena. A descrição dá sinal de um clima de harmonia, de alegria e de proximidade entre a menina e a cajazeira; são laços de verdadeira amizade. O poeta personifica a árvore, de modo que ela é apresentada como quem tem sentimentos humanos e experimenta da mesma harmonia que reina no ambiente. A árvore em seu pleno viço pode representar a força da vida: ela acolhe os pássaros em sua copa, dá abrigo a eles e em sua sombra a criança brinca feliz. A orquestra regida pela passarada manifesta a dimensão festiva vivida naquele lugar, em que tudo era riso, encanto, verdadeiro paraíso: Se o vento vinha de longe, Todo amoroso, brincá, Encrespando na lagoa, As águas co de cristá, Na cajazêra chegando Era tão macio e brando Cumo quem faz a escôia De um amo e de um carinho, Soprando devagarinho Mode não derrubá fôia. Tudo quanto era bondade Paz, inocença e beleza, Vinha ali fazê morada E de toda essa riqueza A menina era a rainha, Dava a entendê que Deus tinha Pra o nosso mundo de increu, Em favo daquele sito, Mandado lá do infinito Um pedacinho do céu. Se em cima, na verde copa, A passarada cantava, Em baxo, na fresca sombra, A criancinha brincava. Aquela arve tão amiga, Caridosa, sem fadiga, De tudo era a potreção. Sua copa arredondada Vevia sempre enfoiada, 119 Que fosse inverno ou verão. Toda a natureza experimenta a plena paz. A leveza do vento que encrespa nas águas limpas da lagoa e que bate nas folhas da cajazeira dá a sensação de que a vida ali é regida pelo respeito, pelo amor verdadeiro, sem fingimento ou maldade. Interessante notar que, em meio a toda essa beleza e ausência de qualquer conflito, a menina é a rainha. É como se tudo naquele sítio girasse em torno dela e para ela. A menina é como o elo entre a terra e o céu. A cajazeira, por sua vez, é também um ponto de ligação entre o terrestre e o celeste. Se na copa, lá em cima, acolhe e abriga os pássaros, na sombra, lá embaixo, cuida e protege a inocência e a pureza da menina. A árvore sempre verde é a manifestação da grandeza e do valor da vida, não importa a estação, ela está sempre viçosa. Mas, de repente, o paradoxo. Aquilo que parecia eterno tem um fim. Termina, portanto, a segunda parte da narrativa, desembocando na tragicidade: Mas a nossa curta vida, Quando começa a sê bela, O vento da negra sorte Dá um sopro e desmantela. Se o sito era um paraíso De sossego, paz e riso, Se aquela doce união Foi grande felicidade, Maió foi a crueldade, E a dô da separação. A amiga da cajazêra, Tão nova, tão pequenina, Perdeu ali um tesoro, Pois a mão da triste sina Robou-lhe a felicidade E uma água de orfandade Dos óio dela caiu. Quem era tão prazentêra, Da querida cajazêra Chorando se despediu. Foi se embora saluçando Aquela criança boa, Dêxando luto e tristeza La na bêra da lagoa. E a cajazêra copada Vendo a sua camarada Da sombra se retirá Levando o pranto no rosto, De tanto sofrê desgosto Nunca mais botou cajá. Aqui é o ponto desestabilizador da narrativa. Essa parte constitui o que se poderia chamar de divisor de águas do poema. Até então natureza e humanidade, representadas pela árvore e pela menina, conviviam em perfeita sintonia de sentimentos. O sítio, símbolo do 120 paraíso, torna-se um lugar de luto. As cores que antes realçavam a esperança, agora revelam o luto. A árvore viçosa e produtiva passa a ser estéril. Tudo isso resultado de uma separação, de uma quebra de laços construídos na base da confiança e do amor recíprocos. O porquê de tal separação e da despedida não está explícito na narrativa. Fica a lacuna para o interlocutor imaginar e tirar suas conclusões. É de notar que quem se despede é a menina. É ela quem perde um tesouro, é vítima da “triste sorte”. Que tesouro seria? Quem lhe roubou a felicidade? Que elo foi quebrado? Tudo parece convergir para o mito bíblico do pecado e, por consequência, a perda do paraíso. Na sequência do poema, o poeta expõe os efeitos da ausência da menina na vida da árvore: Sentindo a sombra vazia, Aquela pobre infeliz Foi ficando deferente, Acabrunhando as raiz, E com a macha dos ano E o choque dos desengano Que o mau destino lhe deu, A cajazêra franzina, Com sodade da menina Muchou a copa e morreu. Quem tinha lhe conhecido Na doce felicidade, Vendo o seu grande abandono Chorava de piedade, Pois aquela cajazêra, Bonita, alegre e linhêra, Tava um pau véio, cacundo, De gaio tingido e preto Parecendo um esqueleto Chorando as dô deste mundo. No gáio, onde os passarinho Gorgeava de menhã, Ficou cantando somente A feia e triste coã. E de noite o vento afoito, Roncando e lhe dando açoito, Formava uma entoação De causá medonho espanto, Acompanhada do canto Do agorento corujão. (...) A figura da árvore seria a personificação da existência humana? É uma interpretação possível. Antes da despedida, isto é, antes do pecado, não havia qualquer indício de dor, de desengano, de saudade, de morte. Agora, sim, a morte é uma realidade. E por causa dela, o sítio acaba tomando ares de medo, de violência, de dependência. O paralelo entre o antes e o depois é evidente: antes da separação a árvore era bonita, alegre, linheira. Depois, torna-se um pau velho, corcunda, preto, esquelético, triste. Além disso, se antes os pássaros faziam festa 121 em sua bela copa, agora só há a presença de aves que anunciam maus presságios e espalham ameaça e susto. O vento não é mais delicado, é afoito, seus roncos causam espanto. Ou seja, tudo em volta contribui para o fracasso e o definhamento da vida. Ao que o poeta conclui: Tudo sofre, tudo pena, A vida é pesada cruz, Ninguém se julgue feliz, Que aquilo que agora é luz Mais tarde pode sê treva. A curpa de Adão mais Eva Se espaiou na terra intêra. Tudo ali tornou-se em ruína, Com a farta da menina E a morte da cajazêra. (...) O desfecho é trágico. O “tudo sofre” parece expressar justamente que a criação em sua totalidade está fadada a carregar “pesada cruz”. Assim, o eu-poético apresenta a existência, tanto a humana quanto da natureza em geral, em meio a uma tensão entre luzes e trevas. Quanto a esta tensão, na sequência do poema, e concluindo a narrativa, o poeta diz que a vida “tem seus momentos de gozo e anos de agonia”. Veja-se que há mais ênfase no tempo de agonia. A palavra “momentos”, que se refere ao gozo, diz respeito a algo que ocorre de maneira rápida, momentânea. Já em “anos de agonia” está explícita a ideia de tempo prolongado, que se estende quase infinitamente. Com isso o poeta parece querer concluir que, de fato, por causa da falta da menina e da morte da cajazeira, a vida está envolta no sofrimento. O poema termina sem nenhuma indicação de um futuro feliz, seja nesta vida, seja em outra. No último verso apenas sinaliza para a fugacidade da vida: “tudo nesse mundo passa”. E essa fugacidade parece ser mais negativa do que um sinal de esperança. A conclusão é de que há um mistério existencial que ultrapassa a capacidade humana de compreender. 4.4.2.3. Uma do diabo Uma do diabo narra as proezas de um sujeito de nome Mané Gibão, afamado no sertão por sua coragem. De tão corajoso não cria em nada nas coisas do “outro mundo”. Mas um dia teve de deparar-se com o “capeta”. Os versos, também com boa dose de humor, sugerem um universo regido por algo além deste mundo, evidenciando o imaginário a respeito da figura do diabo e o poder intermediário dos santos. Mané Gibão é o narrador, bem como o autor principal do enredo: Mané Gibão é meu nome, Já fui cabra de corage. A caipora, o lubsome 122 E outra quarqué visage, Para mim tudo era peta. Foi por isso que o capeta Aquele mardiçoado Se largou de seus coidado E veio mexê comigo. Pela menção as entidades fantásticas – caipora,294 lobisomem295 e visagens296 –, o sertanejo já anuncia se tratar de um assunto que vai envolver mistério, medo; vai falar de algo que o homem não é capaz de dominar, nem entender, pois se refere a seres sobrenaturais. Nas primeiras estrofes ele se apresenta, realçando sua antes incomparável coragem: chegou até a dormir no cemitério para tirar de vez a possibilidade de dúvida dos vizinhos a seu respeito. Ele era temido e considerado por todos, tanto por sua força física quanto por seu caráter alheio a superstições. Além de valente e de “ateu”, também costumava escarnecer de quem dizia acreditar nessas coisas. Mas há uma pedra no meio do caminho: Naquele tempo vevia Uma moça de encantá Chamada Rosa Maria. Parece que o Criadô, Com sua sabedoria, Com o seu sabê profundo, Toda beleza do mundo Dêxou para Rosa Maria. Após falar de sua fama, agora Mané Gibão apresenta Rosa Maria no enredo. Ela aparece na narrativa como o ponto desencadeador da trama. Não por si mesma, mas pela “travessia” que o rapaz enfrentará nalguma noite para visitá-la. Explica-se: apaixonado pela 294 Entidade fantástica da mitologia tupi, muito difundida na crença popular, talvez derivada da crença no curupira, do qual seria uma variante, e que é associada às matas e florestas e aos animais de caça, dele se dizendo que aterroriza as pessoas e é capaz de trazer má sorte e mesmo causar a morte (cf. Dicionário Houaiss da língua portuguesa, versão eletrônica). Como se poderá notar, o próprio Patativa ao logo do poema O caçador oferece algumas características a respeito deste mito. 295 Ser lendário, com origem em tradições europeias, segundo as quais um homem pode se transformar em lobo ou em algo semelhante a um lobo, em noites em que ele sente extrema raiva, só voltando à forma humana novamemente quando se acalma. Tais lendas são muito antigas e encontram a sua raiz na mitologia grega. Segundo As Metamorfoses de Ovídio, Licaão, o rei da Arcádia, serviu a carne de Árcade a Zeus e este, como castigo, transformou-o em lobo (Met. I. 237). No Brasil existem muitas versões dessa lenda, variando de acordo com a região. Uma versão diz que a sétima criança em uma sequência de filhos do mesmo sexo tornar-se-á um lobisomem. Outra versão diz o mesmo de um menino nascido após uma sucessão de sete mulheres. Outra, ainda, diz que o oitavo filho se tornará a fera. Em algumas regiões, o lobisomem se transforma à meia-noite de sexta- feira, em uma encruzilhada. Como o nome diz, é metade lobo, metade homem. Depois de transformado, sai à noite procurando sangue, matando ferozmente tudo que se move. Antes do amanhecer, ele procura a mesma encruzilhada para voltar a ser homem. Em algumas localidades diz-se que ele tem preferência por bebês não batizados, o que faz com que as famílias batizem suas crianças o mais rápido possível. Já em outras diz-se que ele se transforma se espojando onde um jumento se espojou e dizendo algumas palavras do livro de São Cipriano, e assim podendo sair transformado comendo porcarias até que quase amanheça, retornando ao local em que se transformou para voltar a ser homem novamente. A lenda do lobisomem é muito conhecida no folclore brasileiro, e assim como em todo o mundo, os lobisomens são temidos por quem acredita em sua lenda. (Cf. http://pt.wikipedia.org/wiki/Lobisomem. acesso em 6/5/2009). 296 Aparição sobrenatural; assombração, fantasma. (Dicionário Houaiss da língua portuguesa, versão eletrônica). 123 donzela, o sertanejo terá de realizar visitas periódicas a sua casa. E numa de suas vindas, um evento mudará os rumos de sua vida. Ele mesmo explica: Era uma esquisita estrada, Por ali ninguém morava E, além de desabitada, O povo todo falava Que naquela travessia Munta vez aparecia Um bode munto indecente Preto, da cô de viludo, Grande, barbado e chifrudo, Bodejando atrás da gente (...) Eu certa noite vortava Da casa do meu amô; A lua no céu briava Com o maior resprendô. Grande silenço fazia. Apenas a gente uvia O canto do bacurau, O canto do curujão, Rezando a sua oração Em argum oco de pau. A cena é de suspense: esquisita estrada e travessia são palavras misteriosas. Dão a ideia de horizonte, mas um horizonte do inesperado, da surpresa. Entrevê-se que a cena se passa em altas horas da noite, não há escuridão, pois a lua iluminava aquela noite sertaneja. Porém o grande silêncio, contrastando com o canto das aves noturnas, oferece uma imagem de terror, de causar arrepios. É um medo iluminado pela luz fria da lua e pelo silêncio do sertão que dorme. Mané Gibão parece ficar pequeno ante esse silêncio. É como se o homem de nome no aumentativo, Gibão, se sentisse diminutivo: Porém, depois, de repente, Eu sinti munto ligêro Assoprá um vento quente, Fedendo a pai-de-chiquêro. E de lá de dentro do mato, Com um rebuliço sem fim, Veio um bodão cabiludo, Preto, barbado e chifrudo Bodejando atrás de mim. Quage eu morro de pavô Vendo aquela arrumação. Meu cabelo arrupiou Que o chapéu caiu no chão. (...) O homem outrora capaz de domar os touros mais bravos nas paragens sertanejas, o homem que não conhecia o sentimento chamado medo e que nunca perdia uma luta, está agora acuado. O pavor o invade dos pés à cabeça. O arrepio é tamanho que seu chapéu não 124 sustenta na cabeça. É interessante o arrepio hiperbólico em que os cabelos arrepiados derrubam o chapéu. Mané Gibão é um nada ante o poder misterioso, ante a “assombração” das “coisas do outro mundo”: Vendo a pintura do cão, Vendo o medonho mistero, Eu disse com os meus butão: Ô pernas, pra que te quero? E dentro de dois segundo Eu desembestei no mundo Chega as pernas dava nó, E o bodão, o Lucifé: Bébébé, bébébébé!!! Pisando em meus mocotó. Gibão, como num pesadelo, quanto mais corre, mais parece não sair do lugar. Esforça-se, é veloz, no entanto, o lúcifer297 está ali, quase em parelheira, em seu encalço. O mistério é medonho, ele é incapaz de vencê-lo. Está sentindo na pele o conhecido ditado popular que diz: “se correr o bicho pega, se ficar o bicho come”. O que fará o rapaz corajoso para escapar dessa? O herói do sertão terá de encontrar uma saída, ainda que não seja pelo resultado de suas próprias forças físicas, de seus músculos fortalecidos pela vida dura e exigente do sertão. Ele agora sente-se dependente de outra força: Ficou no chão o meu chapéu E eu corri cheio de espanto, Depois me lembrei do céu, De Deus, dos anjos e dos santos. (...) A saída não é outra senão apelar para o céu. Duas forças misteriosas entram em combate: Deus contra o diabo, o bem contra o mal. Correndo cheio de espanto o rapaz lembra-se do céu, de Deus e dos anjos. Ou seja, na verdade sua tão arrogada descrença 297 Um dos muitos nomes do diabo. Lúcifer: em latim “o portador da luz”. Mas é um anjo decaído. Teria sido expulso do céu. A figura imaginária do diabo daria um capítulo à parte. Mas não é este o objetivo aqui. Convém, todavia, uma breve menção ao tema. Referindo-se ao cristianismo, Nogueira defende que a ideia do diabo, satã ou demônio acompanha o processo de elaboração da doutrina cristã desde sua nascente. Com o tempo ele é “institucionalizado” como o “Espírito do Mal”, passando “a integrar o dogma central do cristianismo, ou seja, o da queda do homem, do pecado original e da redenção pela morte do Messias na cruz. (…) Satã, o anjo caído, incorpora-se na serpente, um disfarce adotado pelo Diabo para levar a cabo sua ação maligna” (NOGUEIRA, Carlos Roberto F. O Diabo no imaginário cristão, p.28). Essa concepção teria sido retomada pelos primeiros Padres da Igreja durante os séculos II e III. E mais tarde, a mesma ideia reforçada por são Jerônimo (340-420) e Santo Agostinho (354-430). “No fim do século IV, tanto no Oriente como no Ocidente, os cristãos concordavam em que a queda do homem não foi mais que um episódio na história de um prodigioso combate cósmico, iniciado antes da Criação, quando uma parte das falanges celestiais se havia revoltado contra Deus, sendo então precipitada dos céus.” (Ibid., p. 29). Nessa concepção os demônios possuiriam corpos etéreos e faculdades extraordinárias de percepção, bem como capacidade de se transportar através do ar com velocidade incomparável. Eles serão transformados ao longo do tempo como a personificação do mal, os inimigos de Deus e causadores de toda espécie de mal. Na Idade Média encontra terreno fértil para a difusão de uma dicotomia entre o representado e o vivido, de modo que o Bem é pensado estritamente a partir de seu contrário, o Mal. Só pela fé se combateria o mal. Portanto, pode-se afirmar que Patativa põe em cena neste poema uma figura cheia de significados e que envolve sobremaneira o imaginário popular, representado nas mais variadas e assombrosas formas. Aqui ele se apresenta como um bode preto, uma figuração fértil na imaginação sertaneja. 125 poderia não ser referente ao bem, mas ao mal, que para ele eram as artimanhas do diabo e as visagens do além. Em Deus ele devia acreditar. Embora não a demonstrasse, na hora do aperto recorreu àquela lembrança adormecida de que o céu seria seu socorro. O mais curioso dessa parte da narrativa é que Mané Gibão, embora forte e combatente, como num paradoxo, humildemente invoca os poderes do alto, numa reza representativa, evidenciando a figura do Padre Cícero e de Nossa Senhora Aparecida: Meu Padim Ciço Romão, Meu Santo do Cariri, Tenha de mim compaxão, Tire este bode daqui! Minha santa padroeira, Desta terra brasilêra, Santa Virge Aparecida, Que tudo vê e tudo pode, Não dêxe este grande bode Remexê na minha vida. O herói por um instante se torna exorcista, isto é, tem o poder de expulsar o diabo. A fórmula de sua prece298 é breve, porém eficaz. Embora possuído pelo medo, ele se arma de fé e, pronunciando uma reza espontânea, mas que certamente ouvira outras vezes em seu convívio e experiência pelo sertão, consegue deter o espanto e impedir que o misterioso bode tenha sucesso em sua emboscada: Eu vi que ele não gostou Da minha forte oração, Berrou, fungou, pinotou E desceu num sucavão, Em direção de um riacho E quando chegou embaxo, Deu um estôro danado Chega entrou na minha venta Uma catinga nojenta 298 Nesta prece Mané Gibão expõe dois traços ilustrativos de uma fé, por assim dizer, mista. Padre Cícero como a expressão de uma fé autônoma e Nossa Senhora Aparecida, uma fé institucional, isto é, em sintonia com o catolicismo oficial. Quanto ao Padre Cícero, explica-se: ele não é considerado pela Igreja Católica como um santo, mas seus romeiros, aqueles que periodicamente vão a Juazeiro do Norte, CE, visitar sua imagem e “pagar promessas” o converteram em santo. Ainda que a Igreja não o tenha canonizado, ele é venerado por milhares de devotos. Segundo Antônio Braga, que fez doutorado sobre Padre Cícero, entre outras explicações, esse fenômeno pode ser assim entendido: “Posso apontar alguns aspectos que dão ao caso do Padre Cícero tamanha força e – em certa medida – especificidade. Um deles é o fato de que os seus devotos são como que coprotagonistas de sua história de santidade. São sujeitos e agentes. Sem seus romeiros, Padre Cícero não teria se tornado santo. E sem eles a devoção não teria se mantido nem se desenvolvido após sua morte, em 1934. E essa é uma devoção que passa de mãe para filha, de pai para filho, de avó e avô para netos. E nessa história tem sempre um avô, bisavó, e assim por diante, que conheceu o Padre Cícero em vida, que era romeiro do Padrinho Cícero enquanto ele ainda era vivo. Então, os devotos estão falando e vivenciando uma devoção que também tem relação com suas próprias histórias, com a história de todo um vasto grupo de indivíduos que se encontram em torno da força identitária de serem afilhados do Padrinho Cícero. Agora, como todo o santo que se preze, ele é santo porque – para seus devotos – também faz milagres e intervém junto a Deus. Em suma, como todo santo de devoção popular, ele é uma força atuante, presente na vida daquele que crê e que – em sua perspectiva – se faz presente quando chamado a ajudar.” (Cf. http://www.unisinos.br/ihu/index.php?option=com_noticias&Itemid=29&task=detalhe&id=21543, Acesso em 27/4/09). 126 De inxôfre e chifre queimado. De uma figura assombrosa em forma de bode preto e chifrudo, o diabo se desfaz em ar e cheiros: estourou e exalou fedor de enxofre e chifre queimado. A cena oferece a possibilidade de imaginar que o “inimigo” não morre, mas se transforma noutra matéria: ele desaparece aos olhos, todavia, se faz sentir ao olfato. Interessante notar que sua fuga não é para o alto, mas para baixo, oferecendo uma imagem de que o demônio habita nos “subterrâneos”. Além disso, a menção a um riacho dá ideia de continuidade, como se após o estouro lá embaixo o diabo fosse misturado às águas e descesse em sua correnteza. Foi bem triste o meu estado, Não vou negá nem menti Passei a noite assombrado Sem deixar ninguém drumi. E depois que se espaiou Tudo quanto se passou, Naquela noite assombrosa, Eu fiquei tão acanhado, Nunca mais andei pros lado Da moça Maria Rosa. Tendo escapado do “bode preto”, Mané Gibão, no entanto, continuou assombrado. Um assombro que não podia esconder. Em casa todos puderam vê-lo não mais como aquele homem que arrogava coragem e zombava dos medrosos, mas um homem que ainda tremia de medo, contando o acontecido. Talvez jamais tivesse revelado sentimentos de fraqueza, escondia-se por detrás das expectativas alimentadas pelos vizinhos de que era um homem destemido. Daí sua vergonha agora para admitir ser também fraco. Como que guiado por um código de honra em que um herói não pode sentir medo, Mané Gibão acaba renunciando ao grande amor de sua vida, Maria Rosa. Além disso, não suportando os comentários infelizes a seu respeito, abandona sua terra natal e a ninguém informa o rumo que tomou na vida. Rescordando este passado, Me foge o sangue das veia, O corpo fica gelado E o cabelo se arrupeia, Fico cansado a tremê E sinto mesmo corrê Um suó frio na testa, Fico sem fôrgo e afrito. Te desconjuro Mardito! Eita bicho da molesta! Para Mané Gibão o encontro com a “assombração” foi tão marcante que, mesmo depois de muito tempo, quando se recorda, o corpo todo reage: falta-lhe fôlego, um aperto lhe invade o ser. Contar a experiência do vivido é expressar a garantia de que no mundo há forças superiores sobre as quais o homem não deveria duvidar. Ele sente-se à vontade, e como num 127 desabafo assinala que por mais que homem seja corajoso ele treme ante o poder do diabo. Mas é possível espantá-lo mediante a ajuda do céu, ou seja, pela oração a Deus e a mediação dos santos e anjos, que constituiria a força do bem. 4.4.2.4. O caçador A composição O caçador junto à presença do mito, especialmente a figura da caipora, apresenta uma crítica social incisiva ao que se refere à questão do latifúndio. Problema esse escravizador do sertanejo. Mas, além disso, interessa observar um artefato sobrenatural que sai da boca do caçador e culmina com seu posicionamento crítico e consciente a respeito do sistema que o oprime: o caçador teme e respeita os sinais sobrenaturais, guiado por eles até evita fazer suas caçadas. Porém o problema da terra mal repartida se explica pelas artimanhas do homem. A trama começa com a visita de um agente sanitário à casa de um caçador nos rincões do sertão. O objetivo da visita é conferir se a água consumida pela família está em condições de uso. Todo o poema é uma conversa curiosa: como em Filosofia de um trovador sertanejo aqui também é o narrador-personagem que fala do começo ao fim, ficando subentendidas as expressões do interlocutor. Entre uma expressão e outra é possível imaginar, e até notar certas reações do interlocutor. No entanto, a voz predominante é a do caçador. A história pode ser dividida em três partes: na primeira é a acolhida do agente sanitário na humilde casa do caçador; na segunda, o narrador fala para o visitador de certa áurea sobrenatural que envolve a vida de caçador, com especial menção ao poder misterioso da caipora; na terceira aborda o motivo pelo qual o fez viver da caça, manifestando o problema do latifúndio. As estrofes e fragmentos seguintes procuram acompanhar a sequência narrativa. Entre, mas tenha coidado, Que os meus cachorro é danado, Pode mordê meu patrão. Lá vem um se arrupiando, O bicho tá lhe estranhando: – Vai te aquietá, Tubarão! É o Tubarão e o Gigante, Morreu o véio Elefante, Que inté de pena chorei (...) Meu Elefante, coitado! Me deu munto ressurtado Na vida de caçado 128 (...) São dois companhêro exato, (...) O agente sanitário vem da parte oficial, é o Estado que o autoriza fazer as visitas e verificar se a água realmente é potável, se há o cuidado necessário para o seu consumo. É o “outro” que vem da cidade. O caçador, por sua vez, vive num mundo a parte, isolado. Mas a presença do fiscal demonstra que de algum modo ele está vinculado a essa outra instância da sociedade, o governo. Ainda que seja tão-somente para fiscalizar. Chegando à morada, o funcionário é convidado a entrar. Os dois cachorros que o estranham é a evidência de que ele é desconhecido, não tem laço nenhum com a família. O arrepio dos cães não deixa dúvida de que há a presença de inimigos, há estranhos invadindo o território. E ali, naquele território, eles obedecem apenas a uma voz: a voz de seu dono: “vai te aquetá Tubarão!”. Os versos sugerem imaginar uma habitação pobre, porém bem protegida. Os nomes dos cães, que são os seus guardiões, expressam isso: Tubarão, Gigante, Elefante. É provável que sejam vira-latas, mas seus nomes o revestem de imponência. Eles representam a proteção, a companhia e o meio pelo qual o caçador encontra o suporte para sustentar a família. Além disso, e principalmente, são amigos fiéis. O caçador inclusive expressa sentimentos humanos pela perda de um deles: chorou quando da morte do Elefante. (...) Com meus cachorros fié; Com eles nada me embaraça, Só não mato munta caça Quando a Caipora não qué. Na companhia de seus cães o caçador enfrenta qualquer perigo, todavia, há uma entidade na mata que é mais poderosa que os cachorros: a caipora. Sem a sua permissão caçador algum tem sucesso. A presença do mito aqui insere um aspecto interessante da narrativa. Diz respeito à visão do mundo do caçador: por meio da figura fantástica da caipora ele fala ao homem da cidade não como quem conta um conto, mas trata do assunto de uma forma real, situando a existência desse ente e sua influência no seu modo de vida. A Caipora é quem é dona Das caças, e nunca abandona, Pois as caças é sua rês. Sem ela querer, por certo O caçadô mais esperto Nunca resurtado fez. O caçador agora se concentra em falar da caipora, o segundo assunto predominante da história. Ela não é somente defensora da natureza, é a proprietária de todas as caças do sertão. Como quem fala a um iniciante na matéria, ele exemplifica dizendo ao fiscal que a 129 caipora é como um fazendeiro e todas as caças da mata são suas reses. Portanto, para o caçador obter sucesso em suas caçadas depende exclusivamente da “vontade” da caipora. Ainda que o caçador tenha bons cachorros, isso não é garantia de êxito: ela é quem permite ou não o resultado satisfatório. Se ela não consentir, nem adianta ao homem enfrentá-la: sua força é indomável. Pode crê, é certo e exato, Tou véio de vê nos mato Essas feia arrumação; Mas nunca fui assombrado, Inté já tenho caçado Na Chapada do Espigão. (...) Mas esses espaiafato Que aparece por os matos Nunca, nunca me assustou; Pra isso eu sou munto forte, E só dêxo com a morte A vida de caçadô. O caçador percebendo da parte do interlocutor qualquer expressão de descrédito, para provar a veracidade de seu tema recorre à própria experiência de vida, afirmando que já viu muito “dessas coisas”, e menciona um “ponto fixo”, um lugar concreto onde a manifestação da caipora e de outras assombrações se deu. Assim, a “chapada do espigão” representa a região misteriosa e assombrosa. E sendo ele um caçador de coragem, até mesmo lá fez suas caçadas, demonstrando que, embora considere e ateste o poder da caipora e de outras “arrumações”, isso não é motivo para deixar de caçar. Somente a morte o impedirá de seu ofício. Mode sustentá a famia Caço de noite e de dia Sou obrigado a caçá Do sertão inté a serra É bem poça a minha terra, Não tenho onde trabaiá. Aqui tem início a terceira parte da narrativa: ele revela o porquê de sua valentia e disposição para a caça. Na é por hobby ou por coisa parecida. É por necessidade e precisão. A luta pela sobrevivência exige uma lida pesada, é uma luta de noite e de dia, ou seja, é permanente. E esse fardo não foi imposição da caipora ou de outra entidade misteriosa: seu padecer teve origem na conduta de uma pessoa deste mundo, de carne, osso e ambição. Eu perdi mais da metade Da curta propriedade Que herdei do meu avô: O coroné Macelino, Com seu istinto ferino 130 Sem quê nem pra quê, tomou (..) Levei a minha escritura, Porém ninguém se importou, Pois onde fala o dinhêro, O resto fica no acêro, Carimbo não tem valô. (...) Eu não fiquei satisfeito E fui, com munto respeito, Conversá com o coroné; Mas ele ficou zangado, Ficou me oiando de lado Com os óio de cascavé. (...) Eu não quis fazer desgraça, Vou vivendo só de caça, Não vou brigá com ninguém. Me conformo com a sina: Esta vida pequenina De quarqué forma tá bem. É possível aqui perceber um paralelo entre dois poderes: antes o caçador falou da caipora como a dona das caças e sua força misteriosa, mas aquela força não era ofensiva. A senhora das caças não tomava nada de ninguém. Se, às vezes, revoltava-se, não era por outra coisa senão em defesa de suas criaturas. Agora o poder do coronel Marcelino é cruel. Ele toma, invade, sem necessidade, a sua já minúscula propriedade. Nem mesmo a escritura da terra que herdara do avô lhe garantiu a posse da terra: é o velho drama da justiça e da corrupção. Nesse caso o dinheiro teria pesado mais num dos pratos da balança da justiça. O coronel saiu vitorioso. O caçador, no entanto, prossegue sua vã empreitada. Resolve enfrentar o coronel. Vai com muito respeito tentar resolver no diálogo um problema que para si é muito claro: a terra é sua. Só restava ao coronel admitir isso e deixá-lo em paz. Mas a reação do latifundiário foi de causar medo: o olhar de lado, como cobra cascavel pareceu muito mais assombroso para o caçador do que a manifestação da caipora em suas caçadas. Aquele olhar venenoso o caçador percebeu que poderia ser a origem de uma desgraça muito grande. Por isso, dando-se conta de sua impotência ante o poder do opressor, desiste. Não desiste por covardia, mas para evitar o pior. E num gesto de total desengano entrega sua condição ao destino, ou ao que ele chamou sina. Quero tá mêrmo afastado Deste mundo desgraçado Cheio de guerra e questão; Eu aqui gozo bastante, De um lado vendo o Gigante, De ôto lado, o Tubarão. 131 O caçador conclui afirmando que é preferível viver afastado a se defrontar com um mundo incapaz de conviver pacificamente, respeitando a igualdade de direito de cada um. Para ele, estar ao lado de seus dois cachorros é mais agradável do que viver num mundo de desgraça e guerra, onde os grandes exploram os pequenos. Seus dois cachorros têm muito mais valor do que os homens que se digladiam entre si. Os homens que fazem do mundo uma arena pelo simples prazer de concentrar riqueza, nesse caso representada pela acumulação de terra. De modo que, ele prefere se submeter aos riscos em suas caçadas e aos mistérios da caipora à vida num mundo hostil e sem equidade. O latifúndio é violento. A caipora apenas protege e cuida de sua propriedade, mas não o impede de adquirir o sustento para a família. 4.5. O mito e a convergência de sentidos Nos quatro poemas apresentados é possível assinalar aspectos comuns. Propõe-se observá-los agora. Primeiro, nota-se que, em todos, a existência humana está envolvida numa esfera de mistério. Esse mistério, como já indicado, diz respeito à esfera do sagrado, isto é, o “outro totalmente outro”. Essa realidade, porém, não está de todo alheia ao homem, ela se manifesta. Porém, de acordo com os enredos das narrativas, a felicidade ou a infelicidade na terra não dependem unicamente do homem. Haveria, pois, uma força sobrenatural capaz de traçar a sorte, não só da humanidade, mas de toda a criação. O segundo aspecto, e é o que se ressalta aqui, diz respeito à presença do mito nas quatro composições: a explicação a respeito dos descaminhos humanos tem um lugar primordial: o mito constitui a essência dos poemas. Quanto a isso convém lembrar que já Aristóteles (384 a.C – 321 a.C), que concebeu a poesia como imitação (mímesis, “imitação”: ação ou faculdade de imitar; reprodução ou representação da natureza), referindo-se precisamente à tragédia grega, considerava o mito como imitação de ações, isto é, o mito constituía o elemento por excelência deste gênero de composição. Ele é sinônimo de arte poética. Disse ele: Uno é o mito, mas não por se referir a uma só pessoa (...). Tal como é necessário que nas demais artes miméticas una seja a imitação, quando o seja de um objeto uno, assim também o mito, porque é imitação de ações, deve imitar as que sejam unas e completas e todos os acontecimentos se devem suceder em conexão tal que, uma vez suprimido ou deslocado um deles, também se confunda ou mude a ordem do todo.299 O mito no modo literário de conceber a tragédia grega é o que dá a unidade à composição, portanto indispensável. O poeta, porém, não precisa seguir a risca os mitos tradicionais, como num ato de fidelidade extrema. Ele precisa necessariamente ter posse da 299 ARISTÓTELES, Ética a Nicômaco, Poética, p. 208. 132 ideia geral do mito e, a partir disso, construir outra história, produzindo e acrescendo inventividade a imaginação. Para Aristóteles, o ofício do poeta não é narrar fidedignamente o que aconteceu, mas sim representar o que poderia acontecer. Nisso consiste a criatividade do artista. O grego, porém, não fecha a possibilidade de o poeta tratar do que realmente sucedeu, “pois nada impede que algumas das coisas que realmente acontecem sejam, por natureza, verossímeis e possíveis e, por isso mesmo, venha o poeta ser o autor delas.”300 É nessa perspectiva que o poeta é poeta pela imitação e porque imita ações. A partir dessa concepção primeira no sentido de entender o mito mais na perspectiva literária, convém agora ampliar a abordagem no intuito de apreendê-lo em suas bases antropológicas. Observa-se: A mitologia diz que existe um mundo paralelo ao natural e cotidiano, povoado de criaturas divinas e fantásticas que se aninham nos interstícios das realidades. Às vezes elas se deixam ver, assomando aqui e ali aos olhos dos poetas. A mitologia é a expressão dessas manifestações periódicas, que interessam ao mundo em sua totalidade, constituindo sua dimensão oculta.301 Um mundo paralelo ao natural, como referido acima, parece bem evidente no corpus analisado. Em Filosofia de um trovador sertanejo o cantador deixa muito claro a dicotomia entre este mundo e outro mundo além da morte. Ele até anseia que a morte, personificada num vigia, venha buscá-lo, pois aqui se vive prisioneiro das doenças, da fome, da miséria. Desse modo é como se ele expressasse que este mundo marcado pelo pecado é um verdadeiro caos, e que ele só pode ser superado, isto é, ser “cosmificado”, encontrar a ordem, mediante a morte. Ela é a passagem para o acesso ao sagrado. O bem e o mal estão em combate desde o evento do pecado primordial. Em A menina e a cajazeira os dois mundos são igualmente evidentes. A ordem do espaço só é uma realidade quando a menina, a árvore e toda a natureza vivem em plena harmonia com Deus. Quando o elo de amizade entre o céu e a terra é rompido, começa então a reinar a desgraça e toda sorte de sofrimento sobre a terra. A inocência da menina parece constituir um rico símbolo da humanidade feliz ao lado do criador. A perda dessa inocência pode figurar o pecado original. Adão e Eva entram na história como as personagens centrais do enredo, os primeiros culpados responsáveis pela “mancha” que atinge toda a humanidade. Em Uma do diabo a divisão desses dois mundo se faz notar igualmente no conflito entre as forças do bem e do mal.302 O mal, porém, pode ser “exorcizado” por meio da reza e da 300 ARISTÓTELES, op. cit., p. 209. 301 FERRARI, Ana, apud GALIMBERTI, Umberto. Rastros do sagrado, pp. 52-53. 302 A respeito da dicotomia entre “o bem e o mal” parece oportuno referir-se a um grande pensador que muito influenciou o pensamento ocidental, sobretudo no que se refere à religião. Trata-se de Santo Agostinho. Sua interpretação nesse sentido é a de que o mal é a “privação do bem”. A tese dele é de que “o mal, em si mesmo, não existe, é ausência, limitação do bem. O mal é puro não-ser, assim como a escuridão não tem uma realidade substancial, mas existe somente por via negativa, como ausência de luz” (cf. NICOLA, Ubaldo. Antologia ilustrada de filosofia, p. 134). Essa interpretação pode ser assim dividida: primeiro refere-se ao mal ontológico, 133 intermediação dos santos, representantes da força que combate o “inimigo” fazendo com que tudo volte à ordem. Nas quatro composições é notável que o mal é uma realidade presente no mundo. Mas é sobretudo nesta composição que ele aparece com um nome. O “inimigo” se chama “diabo” e seus variados sinônimos, como: lúcifer, capeta, mardiçoado, diôgo, bode preto . A composição O caçador, por sua vez, além de apresentar o limite do sagrado e do profano acrescenta uma novidade: o mal no mundo não se explica apenas pela existência de uma entidade demoníaca. O mal é também resultado das estruturas políticas. O poeta exemplifica com a ganância de um coronel que se apossa das terras dos pobres. Os pobres, representados na pessoa do caçador, não têm o amparo da justiça deste mundo. A justiça na verdade está a serviço de uma política que atende aos interesses de alguns privilegiados. Não é uma política que faça valer o serviço ao bem comum. Por isso, o caçador prefere viver isolado a se deparar com as hostilidades que regime assim provoca. Desse modo os poderosos da terra parecem mais assustadores para ele do que as entidades sobrenaturais. Todavia em todos os poemas a presença do mito é manifesta. Na perspectiva de Mircea Eliade os mitos são relatos de um acontecimento primordial, mediante a intervenção de entes sobrenaturais e que teve lugar no começo do tempo. Eles oferecem ao homem uma explicação do mundo e de seu próprio modo de existir no mundo. O autor explica: “O mito é pois a história do que se passou in illo tempore, a narração daquilo que os deuses ou os Seres divinos fizeram no começo do tempo.”303 Nesse sentido, conhecer os mitos é aprender o segredo da origem das coisas. Para o autor, o mito revela a sacralidade absoluta, isso porque relata a atividade criadora dos deuses, desvenda a sacralidade da obra deles. Ou seja, é por meio do mito que o sagrado se manifesta no mundo. Ele enfatiza: “É a irrupção do sagrado no mundo, a irrupção contada pelo mito, que funda realmente o mundo. Cada mito mostra como a realidade veio à existência, seja ela a realidade total, o Cosmos, ou apenas um fragmento: uma ilha, uma espécie vegetal, uma instituição que não existe; segundo, ao mal moral, isto é, o pecado; terceiro, ao mal físico: as doenças e os sofrimentos, consequências do pecado original (cf. NICOLA, Op.cit., pp. 134-137). Mas, dessa forma, como entender o sofrimento no mundo, os desastres, a morte? Para Agostinho a única forma de mal é a maldade humana que tem origem no pecado, isto é, no distanciamento da vontade humana em relação à lei divina. Assim, o autor do mal seria cada um, por livre vontade. O livre-arbítrio seria uma concessão, uma dádiva de Deus ao homem: “Era necessário que Deus desse ao homem essa vontade livre” (AGOSTINHO, Santo. O livre-arbítrio – Patrística – p. 75). De modo que, o livre-arbítrio humano é o que permite ao indivíduo ser conduzido e influenciado pelas paixões e pelos instintos, afastando-se, assim, do bem, da razão. A razão, por sua vez, dominaria todos os movimentos da alma. Nesse sentido, a origem do mal proviria do livre-arbítrio da vontade. A vontade livre do homem, porém, é um bem, pois provindo de Deus não poderia ser mal, uma vez que ele é a fonte de todo bem. Nessa perspectiva, para o homem superar o mal, deveria ser obediente a Deus, que é o Bem maior. O poema em questão parece ir nesta direção. 303 ELIADE, op. cit., p. 84. 134 humana.”304 Dessa forma, segundo Eliade, ao mesmo tempo em que o mito narra como as coisas vieram a existir, responde também a outra questão: o por que dessas coisas existirem. No entanto, a função mais importante do mito seria a de “fixar” os modelos exemplares de todos os ritos, isto é, das atividades humanas significativas, como: alimentação, sexualidade, trabalho, educação e outras. Nesse sentido, em toda e qualquer ação, quer seja uma simples função fisiológica, quer seja uma atividade social ou cultural, o homem estaria imitando os gestos exemplares dos deuses e repetindo as ações deles. Noutros termos, o rito, repetindo o mito, oferece um modelo exemplar, por meio do qual é possibilitada ao homem a presença do sagrado. É nesse sentido que Eliade assegura: “Para o homem religioso, a reatualização dos mesmo acontecimentos míticos constitui sua maior esperança, pois, a cada reatualização, ele reencontra a possibilidade de transfigurar sua existência, tornando-a semelhante ao modelo divino.”305 Essa repetição, segundo o autor, concorre para que o homem se mantenha no sagrado, e graças à reatualização dos gestos divinos exemplares, o mundo é santificado. Ou seja, é por meio desse corportamento do homem religioso que o mundo mantém-se na esfera da sacralidade. Essa repetição, porém, não é um mero relembrar. Narrar um mito é, pois, atualizar um acontecimento que se deu na origem de tudo. É também imitar a própria divindade. A esse respeito, o texto metafórico de Galimberti corrobora a compreensão. Diz ele: Com a insistência infinita da onda sobre a praia, a narrativa mítica é, na ininterrupta retomada literária, como o retorno da mesma onda sobre a mesma praia, onde porém cada vez todo o sentido se renova e enriquece, resumindo-se numa experiência que, indescritível na conceitualidade ocidental, volta-se para o espaço da interrogação, onde porém quem interroga não somos nós, mas o mito que já nos surpreendeu no diálogo da interrogação sobre nós e com nós.306 O mito, uma vez que é do âmbito do sagrado e canal de comunicação deste, escapa ao esquema conceitual. Por isso, “não se deve perguntar o que os mitos significam, porque mitos não significam, operam.”307 Nesse sentido, sua ação por excelência é manter viva no mundo a consciência do divino, por meio da qual a vida encontra sentido e a ordem se opõe ao caos. Nessa perspectiva, pode-se afirmar que o corpus de poemas selecionados e analisados aqui é representativo de uma poética marcada pelo sagrado, e como tal permeada 304 ELIADE, op. cit., p. 86. 305 ELIADE, op. cit., p. 94 306 GALIMBERTI, op. cit., p. 47. 307 Ibid., p. 46. 135 por mitos e “mistérios”.308 Considerando o corpus, portanto, é de notar que para o poeta Patativa o homem é um ser dependente de uma força superior. Essa força é Deus, e ele é indizível. Os mitos relatados se apresentam com a possibilidade de fazer o divino presente na história, e desse modo a existência encontre sentido, isto é, seja real, encontre uma ordem. É, portanto, dessa realidade que dependem a felicidade ou infelicidade da humanidade e da criação em geral. É essa sensação que os poemas parecem sugerir e a convergências de sua “teia de sentidos” pode indicar. 308 Mistério: “termo polissêmico derivado do grego mys: silêncio, fechar a boca. Significa, além de outras coisas, aquilo que não se deve falar; o que se deve receber em silêncio; o que não é explicável, que é inefável e que deve ser contemplado em silêncio. No plural, ‘mistérios’ quer dizer ‘cerimônias’: dramas, ritos, sacrifícios, revelações orais de algo sagrado associado à morte e ressurreição de um Deus. Os mistérios apontam para uma vida superior e bem-aventurada e fora deste mundo, e conduzem os iniciados a essa bem-aventurança.” (Cf. SANTRIDIÁN, Pedro R. Dicionário básico das religiões, pp. 340-341). 136 CONSIDERAÇÕES FINAIS “Conheço que estou no fim E sei que a terra me come Mas fica vivo o meu nome Para os que gostam de mim.” 309 O teólogo peruano e principal mentor da teologia da libertação, Gustavo Gutiérrez, disse certa vez que a “melhor forma de falar de Deus é por meio da poesia”.310 Ao concluir este trabalho pode-se afirmar sem receio que Patativa do Assaré fez isso durante toda a sua vida e o realizou com “zelo sacerdotal”, sentindo-se realmente vocacionado a dizer uma palavra transformadora: palavra que leva em si o emblema do sagrado. Deus permeia sua obra. No entanto, é importante ressaltar que o Deus pronunciado por Patativa, embora revestido de uma linguagem com “tons” nitidamente cristãos, não se caracteriza unicamente com um o tipo de fé estabelecida. Com a liberdade poética ele se permitiu falar do divino de um modo muito livre. E mais: é de notar que, na totalidade de sua obra, a vida é mais que todos os esquemas estanques, sejam eles relacionados à religião, à literatura ou à política. A vida é o que conta. Daí a marca poética caracterizada pelo anúncio e denúncia. Semelhante a um profeta bíblico, ele clama por justiça em nome dos camponeses pobres, dos operários oprimidos, das crianças famintas, dos discriminados pela miséria, pela cor, pela origem, enfim sua voz brota de uma realidade que pede atenção aos que são esquecidos e renegados ainda hoje pela história oficial. O viés político, portanto, é nítido de uma ponta a outra na poética patativana. Nesse sentido, poesia, fé e política é um tripé que, embora pareça inconciliável, converge muito bem em Patativa do Assaré. Ele sempre tomou partido, mas nunca como filiação político- partidária. Seu partido era em defesa da vida, tanto a humana, quanto a vida dos animais e da natureza em geral. Afirmar isso a seu respeito não é nenhum exagero, tampouco um elogio gratuito. Muito menos é uma leitura “messiânica” a seu respeito. É sua obra “no todo” que lhe confere tal qualidade. Essa afirmativa feita agora é resultado do que se pôde alcançar no segundo e no terceiro capítulos deste trabalho, nos quais se fez uma tentativa de apresentar a trajetória de vida do poeta, sua poesia oral e a passagem desta para letra: a sensibilidade em 309 ASSARÉ. Patativa do. Digo e não peço segredo, p. 109. 310 Cf. Revista Vida Pastoral, maio-junho 2009 – ano 50 – n. 266, p. 39. 137 favor dos que mais sofrem é uma marca especial. A essa marca se pode atribuir relevante valor social e político. O inconformismo no sentido político presente na poesia de Patativa é também um convite ao pensamento, ao filosofar. O pensar aqui não entendido numa perspectiva de ausência do mundo, como se a atitude filosófica fizesse parte de uma instância sem nexo algum com a realidade tal qual ela se apresenta. Em Patativa as questões filosóficas “nascem” das experiências ordinárias do dia a dia, como “necessidade da razão humana”. Ou seja, é uma busca por respostas para as perguntas, e mais do que a busca de uma verdade, ele parece guiado pelo desejo de apreender os significados da vida. O poeta de Assaré, a partir da experiência da tensão entre o “senso comum” e o ato de fazer poesia, não se furta do mundo ordinário de sua comunidade. Ao contrário, é da comunidade com a qual interage que brotam seus versos repletos de esperança e crítica. Dessa forma, a poética patativana pode ser um importante “instrumental” de reflexão, de busca de “significados”, de argumento e de ação no sentido de formação política. Política entendida como a busca do bem comum. O pensamento do poeta parece um “aliado” no combate à política falsa. Se realmente é uma poesia que instiga o pensar, ela certamente influirá na abertura de horizontes de esperança. Horizontes que levem em conta o valor da vida humana e da natureza. Além disso, e principalmente, ela em toda a sua simplicidade pode ser um “ingrediente” importante na formação das novas gerações, no sentido de conhecer aspectos humanos e naturais de um “sertão” cheio de encanto, mistérios e também sofrimento. Numa realidade em que cabeças são feita pelos “discursos mediáticos”, permeados de informações fornecidas “prontas”, como um saber pré-fabricado sem a necessidade de buscar seu significado; um pouco mais de arte poética poderia ser um “remédio” contra certo “torpor” a que tantos são submetidos todos os dias. Os poemas de Patativa são uma boa dica para ver o mundo com outro olhar. Nessa perspectiva, o contato com a obra do poeta, o deixar-se conduzir por seu “canto”, é também uma forma de “educar a consciência”, pois seu canto melodioso, às vezes saudosista, incita sobretudo a não “achar normal” o número de “bandidos” que a polícia mata nos morros e nas favelas do Brasil, ou os números de mortos nos conflitos agrários de Norte ao Sul do país por causa da concentração de terra. Incita, sim, a outro olhar, guiado pela compaixão e pelo espírito de paz, fraternidade e partilha dos bens da terra. Para o canto do poeta ainda não seria normal entrar no coral dos que “papagueiam” frases como “deixa 138 morrer, é bandido”, enquanto “engravatados” do governo ou da iniciativa privada também roubam, seja dos cofres públicos, seja de bolsos privados. Ouvir o canto do poeta é não aceitar a inércia a que os homens podem ser submetidos ante as situações da vida que pedem pensamento e ação. Nesta pesquisa se procurou antes de tudo situar o fenômeno da oralidade. É nesse campo que Patativa se sentia muito à vontade. O oral constitui a essência de sua poesia. Ele se sentia “em casa” quando o assunto era declamar em “viva voz”. Foi nessa perspectiva que no capítulo de abertura se fez uma panorâmica desse fenômeno, tomando como referência características da antiguidade grega e alguns aspectos do período medieval. Isso não com a pretensão de contar a história da oralidade, mas no intuito de observar a importância da comunicação oral e perceber que Patativa tem por trás de si uma tradição de poetas e cantadores, que fizeram da voz o veículo primeiro da palavra poetizada: do grego Homero aos cordelistas do sertão. O que se alcançou desse item é que a voz é a essência da poesia. A poesia é antes de tudo um acontecimento oral. O escrito e outras formas de expressão poética são tão-somente mais um veículo pelo qual a poesia pode se manifestar. Mas, sua razão de ser está na vocalidade que lhe é inerente. Dessa forma, defende-se que o saber oral jamais poderia ser considerado um “saber menor”. A oralidade aliada à escrita, e vice-versa, só tem a contribuir para a erradicação de uma “chaga” que ainda envergonha o Brasil: o analfabetismo. Assim, pode-se expressar aqui que, à medida que se aprofunda o contato com a poesia escrita de Patativa, é como se num gesto espontâneo ela pedisse a presença da voz. De fato, pela força da sonoridade e outros elementos constitutivos da arte patativana, sobretudo as rimas, o leitor atento, em pouco tempo, é capaz de ouvir o ressoar da voz, e até se pegar envolvido na prática de versejar. A voz é quase um tipo de encantamento. Nesse sentido, é a voz quem revela Deus. Daí o corpus de poemas escolhido para análise e interpretação das “marcas” do sagrado em Patativa. O poeta como “emissário” do divino tem como instrumento primordial apenas a voz. Dessa maneira, uma característica que se pode considerar dos poemas escolhidos é que em todos eles Patativa punha na boca do narrador uma voz: eles tinham algo a dizer em “viva voz”. Nenhum escrevia ou lia seu discurso. Havia na verdade um processo dialético. Embora não se apresentasse a fala do interlocutor, nas entrelinhas se notava uma fala virtual. A segunda característica é que todos, com exceção de O caçador, tinham uma plateia. O a Filosofia de um trovador sertanejo 139 mostra claramente que o cantador está diante de um público, o A menina e a cajazeira não explicita, mas se entrevê que o narrador está contando uma história, logo tinha ouvintes ao redor. O caçador, por sua vez, dialoga com um agente sanitário. Ou seja, a presença da voz é essencial em todas as composições. É por meio dela que o poeta narra o mito. O mito se realiza pela voz. Além disso, o mito se apresenta com a função de expressar uma realidade sagrada. O sagrado em Patativa é um tema recorrente. Há na totalidade de sua obra um eu- poético capaz de se extasiar diante da natureza, devotando admiração e respeito ao “poder do onipotente”. A natureza, portanto, não é somente “natural”, ela está prenhe de sentido religioso: tudo sai das mãos divinas, o mundo está impregnado de sacralidade. A própria inspiração poética é dádiva sagrada. Pelos poemas analisados, entre outros aspectos, pode-se considerar que em todos eles a existência humana é dependente do “desígnio de Deus”. É impossível ao homem furtar- se dele. Isso porque para o homem a vida só tem sentido num mundo “cosmificado”, isto é, em ordem. Essa ordem se dá mediante a presença do sagrado no mundo. De modo que em todas as personagens das narrativas é o “sobrenatural” que sustenta e dá sentido a existência. As desgraças do mundo e o sofrimento humano são o preço da perda dos “laços de amizade” divina. A felicidade seria o restabelecimento do “paraíso perdido”. Além do mais, o diabo como personificação do mal é uma realidade presente no mundo. Duvidar de sua existência é correr o risco de ser surpreendido por ele nas “travessias da vida”. No entanto, em Patativa, o mal também se explica pelas estruturas sociais injustas. O sentido religioso e filosófico que se pode tirar dessa característica visão do mundo é que o homem não é capaz de tudo. Há um “mistério” no começo, no meio e no fim de sua vida, que ele não pode domar. Receba isso o nome de sorte ou destino; em essência, é uma “força” que move a existência, não somente humana, mas de todo o universo. Todavia, há um espaço chamado liberdade que possibilita ao homem retomar sua amizade com Deus, rompida pelo evento da “culpa original”, pois somente pela “graça divina” ele pode agir e produzir efeitos. Há partes em que o poeta apresenta a vida de um modo tão trágico que parece não haver saída: ao homem só restaria se conformar. Esse “se conformar”, no entanto, não quer dizer que o homem fique esperando que tudo “caia do céu”, uma vez que seu destino já está traçado. O poeta deixa entrever, porém, que o homem é também dotado de “vontade livre”. 140 Ele pode agir, ele pode fazer sua própria história. Exemplo disso é a composição O caçador: nela nem é o poder sobrenatural que impede o homem de ser feliz, mas as estruturas sociais injustas. De modo que ele é instigado a dá seu grito de liberdade. Nesse sentido, em poucas palavras e de modo geral, pode-se afirmar que, ao contrário de uma perspectiva mais afeita ao pensamento moderno, em que o homem se apresenta como senhor absoluto de seu destino, o poeta tende mais para uma leitura “medieval”, na qual a origem e o destino humano estão nas mãos de Deus. Talvez seja mais brando dizer que o poeta oscila entre a “vontade livre” e a dependência nas mãos divina. Ou, quem sabe, ele encontre um equilíbrio entre ambas. No que tange à perspectiva literária, espera-se com este estudo contribuir para o conhecimento e divulgação da obra de Patativa. Pelo que se notou, é uma poética vasta: há muito que conferir e aprofundar na variedade de temas e na “fartura” de versos que o poeta do sertão produziu generosamente. Ademais, nada do que se argumenta aqui se pretende fechado. Até porque o enfoque do sagrado é uma questão complexa. Oxalá o recorte feito aqui motive outros olhares e investigações. Este ano é especialmente sugestivo para entrar em contato com Patativa: é o centenário de seu nascimento.311 A presente pesquisa quer ser também um modo de homenagem. Enfim, estudar a poética patativana é conhecer um pouco mais do Brasil, do “Brasil real”, ou usando uma expressão de Patativa, o “Brasil de baixo”. Estudar o poeta é entrar em contato com uma expressão artística que nasce da força, da resistência e criatividade peculiar do “mundo dos simples.” Conhecê-lo é somar valores na cultura brasileira. O poeta fez poesia na mesma língua de escritores cultos como João Cabral de Melo Neto e Guimarães Rosa, apenas para citar dois clássicos. Fez verso nessa mesma língua, no mesmo país, no mesmo período histórico e tratou de temas semelhantes. Trata-se, portanto, de uma voz, de um “texto aberto”, por isso universal. Há em Patativa a utopia de outro mundo possível. Esse mundo acontece se “Deus quiser”, mas também depende do pensamento e das mãos do homem: pensar e agir. Isso é sagrado. Isso é político. Para Patativa o destino de todas as coisa está em Deus. Mas para ele isso também não tira do homem a tarefa de contribuir para colocar o mundo em “ordem” e se sentir “em casa” nele. Trata-se de uma “empreitada” constante. Só termina com a “passagem para o outro mundo”, com a morte. Mas a última palavra em Patativa não é a morte, pois essa passagem não é outra coisa senão o canal para outra vida. Nele tudo parece começar e terminar no mistério. 311 Patativa nasceu no dia 5 de março de 1909. Faleceu em 8 de julho de 2002. 141 REFERÊNCIAS AGOSTINHO, Santo. O livre-arbítrio. Trad. Nair de Assis Oliveira. São Paulo: Paulus, 1995 (Patrística). ALFREDO, Olegário. Patativa do Assaré: o Camões do Nordeste brasileiro. Folheto. Belo Horizonte, 2002. ALONSO SCHÖKEL, Luis e DIAS, J.L Sicre. Profeta I: Isaías, Jeremias. Trad. Anacleto Alvarez. São Paulo: Paulus, 1988. ANDRADE, Cláudio Henrique Sales. Patativa do Assaré: as razões da emoção (capítulo de uma poética sertaneja). Fortaleza: UFC/São Paulo: Nankim Editorial, 2003. ARENDT, Hannah. A dignidade da política. Trad. Helena Martins, Frida Coelho, Antônio Abranches, César Almeida, Claudia Drucker e Fernando Rodrigues. Rio de Janeiro: Relume- Dumará, 1993. ARISTÓTELES, Ética a Nicômaco, Poética, Vol. II, São Paulo: Nova Cultural, 1991 (Os Pensadores). ASSARÉ, Patativa do. Aqui tem coisa. São Paulo: Hedra, 2004. __________. Cante lá que eu canto cá. 13. ed, Petrópolis, RJ: Vozes, 2002. __________. Digo e não peço segredo. Org. 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Foi Adão e sua esposa, Que os mais véio faz as coisa Sobre este mundo crué, Mode os mais novo pagá. De trumento e confusão, Os poeta sempre gosta No mêrmo tempo que Deus De dá sua pinião; Fez o Céu, o Má, e o Chão, Um descreve de improviso Fez tombém de barro um home, Que o mundo é um paraíso Que é justamente esse Adão; Enfeitado de fulô; Ele era um belo vivente, Já ôto, que é mais exato, Santo, fié, inocente, Diz que o mundo é um treato Mas depois foi treiçoeiro, Cheio de cena de horrô. Fez uma grande desorde, Pruquê não cumpriu as orde E afiná, todos poeta Do nosso Deus Verdadêro. Falando neste respeito, Descreve este mundo véio, Por essa causa, no mundo Cada um lá do seu jeito; Sofre o grande e o pequenino, Por isso eu agora vou Eu inté fico abusado, Pedi ao senhô dotô Seu dotô, quando magino Um pôquinho de tenção; Em Adão, êsse marvado No causo que eu possa sê, Sacudí nós no pecado, Que eu quero também fazê Podendo nois ta inocente! A minha comparação. Mas não tem jeito que dá, O jeito é nós perdoá, Não vou dizê que os poeta Pruquê Deus perdoa a gente. Não estão comparando bem, Mas como o assunto me cabe, No dia que Deus fez ele, Eu quero falar tombém. Incalocou num lugá O mundo é uma cadeia Que os home sabido chama Que de preso véve cheia, Paraíso Terreá, Ninguém me diga que não; Tarvez uma bela charca, A morte é seu sentinela, Dessas de premêra marca, E é quem arranca as tramela Que tem todas prantação; Das porta desta prisão. Ou entonce, como a quinta De seu Mane da Jacinta, O mundo é uma cadeia Moradô no Buqueirão. Onde se véve a pená; Nós somo os prisionêro Entonce, naquela charca, Deste carce universá; Ou por ôta, Paraíso, Vivendo nesta prisão, Era mêrmo um céu aberto, Tudo de argema nas mão, Tudo era riqueza e riso; Os grião é as doença; Mas Adão, se achando só, Pediu a Deus um xodó, 312 ASSARÉ, Patativa do. Inspiração Nordestina, Que a vida tava crué; 2006. pp. 95-105. Deus, vendo essa choradêra, 150 Lhe entregô por companhêra Grande pecado morta. Uma fromosa muié. Esse fruito do pecado Parece que tinha um quê, E eu vou lhe contar tudo Que a gente vendo, ficava Do jeito que aconteceu; Com vontade de comê. Tarvez inté vamincê Seu Doto, eu não seu não, Saba mio do que eu, Mas faço avaliação Apois vejo que o senhô Que aquele fruito dali Tem a carta de dotô, Agradava a nosso orfato, Remexe em todos papé Como essa fruita do mato E sabe lê e escrevê, Que o povo chama piquí. Mas vou sempre lhe dizê Cumo Deus fez a muié. Deus pediu a Adão e a Eva Que eles nunca se esquecesse: Deus mandou Adão drumi Comesse dos ôto todo, E logo, assim que mandou, Mas aquele não comesse, Sem demorá um momento Pruquê se Adão não uvisse, Adão no sono pegou. E um dia nele bolisse, E nesse sono pesado, Vinha fome, peste e guerra Deus aparpando dum lado Pra castigá sua raça, Arrancou-lhe uma costela, E tudo que era desgraça E sem perpará o esboço, Aparecia na terra. Daquele pequeno osso Fez Eva, fromosa e bela. Mas Adão, esse sujeito A quem tou me referindo Daquele ossinho pequeno (Que Jesus lhe tape as oiça, Num momento Deus fez Eva, Mode ele não tá me uvindo) Pois pra fazê quarqué coisa Era munto cabeçudo! Munto tempo Deus não leva; Pruquê Deus ensinou tudo Aquele artista porfundo Do jeito que era preciso, Fez aquilo num segundo, E o pateta de teimoso, Sem nunca tê estudado; Comeu do fruto gostoso Entonce, Adão acordou, Que tinha no Paraíso. E quando se levantou, Eva tava do seu lado. Da cabeça dele mêrmo Podia não tê comido, Morando no Paraíso, Mas a muié sempre faz Adão com Eva ficou A desgraça do marido! Aquele santo casá Veio uma cobra das treva, Feito por nosso Senhô; E tanto fez, inté que Eva Satisfeito eles vivia, Do fruito pôde comê, Pruquê de tudo eles via E na mêrma casião Uma fartura sem fim; Deu a seu marido Adão, Sem trabaio e sem cansêra, Mode o pobe se perdê. Toda sorte de fruitêra Tinha naquele jardim. Eu sei que Adão é curpado E no pecado caiu, Mas entre as fruitêra boa Mas porém não foi por gosto, Havia a da triste sorte, Foi pruque Eva iludiu; Que quem comesse o seu fruito Apois ela, seu dotô, Ficava sujeito à morte. Foi quem premêro porvou Se Eva e Adão percisava, Do fruito da perdição Dos ôtos todos tirava Quebrando a santa premessa, E comia a se fartá; E o povo, quando convessa, Mas daquele não comia. Só bota a curpa em Adão. Pruquê comendo, fazia 151 Se Adão vivesse sozinho, Que Eva a seu marido fez, Tava livre de pecá, Dexôu tudo padecendo Mas o home é bem tolo e caça Nas grade deste xadrez. Sarna mode se coçá; Só se goza boa sorte Quando o fruito Eva lhe deu, Depois de uma boa morte; Ele, de bobo, comeu, E deste xadrez imundo E eu penso que o pobre inté A morte é quem nos tresporta, Nem tava com essas fome, Cada um tem sua porta É pruquê ele era um home De saí pro ôto mundo. Gunvernado por muié. A pessoa quando tá Logo que comêro o fruito Bem doente, quage morta, Aqueles dois mal uvido, A morte ta com certeza Quando cuidaro, era tarde: Bem no pé da sua porta; Tava todos dois despedido; Já ta pegada na tranca, Um do oto envregonhado, E no momento que arranca, Cada quá mais acanhado O espírito avoa veloz Queria se escapulí. De dentro desta prisão, Ô hora triste e mesquinha! Que Eva e seu marido Adão Eva, coitada, não tinha Dêxou de herança pra nós. Um pano pra se cobri. Seu dotô, eu falo franco, Deus, vendo aquilo, ordenou Se eu morrê, não dou cavaco, A um anjo da Gulóra Eu mêrmo tenho vontade Que expursasse Adão mais Eva De saí deste buraco; Do Paraíso pra fora; Juro por Nossa Senhora E eles dois foro sofrê Que chegando a minha hora Inté um dia morrê, Eu não digo nem adeus Mode assim podê gozá. A este triste recanto Diz as Leitura Sagrada Das santa coisa de Deus. Que a morte foi inventada Daquele tempo pra cá. Se a vida traz o tromento E a morte o descanso traz, Ante daquele pecado Não dou cavaco em morrê, A vida era uma deliça; Pra gozá da santa paz. Mas depois dele ficou Eu inté tenho alegria, Cheia de dô e maliça. Pruquê vejo todo dia Por causa de Eva e de Adão Que a morte qué me levá; O mundo é uma prisão, Já oiço a zoada dela, Cumo eu dixe a seu dotô: Sacolejando a tramela Foi Eva mais seu esposo Da porta, pra me sortá. Os primêro criminoso Que nesta cadeia entrou. Seu doto, e agora mêrmo Que eu já fiz seu mandado, Entonce Deus resorveu, Dê lecença pr’eu findá. Pra se vingá dessa afronta, Este assunto tão puxado. Entregá o mundo à morte, Penso já lhe agradei, Mode ela tomá de conta; Apois boa prova dei E a morte, cumo vigia, Da minha comparação, Veve sempre, noite e dia, Lhe jurando com franqueza Do Brasi ao estrangêro, E afirmando com certeza Com sua foice na mão Que o mundo é uma prisão. Vigiando esta prisão E sortando prisionêro. E eu só não canto mió, Lhe espricando tudo a fundo, Com a grande farsidade É pruquê nunca estudei 152 E só conheço no mundo A minha veia paioça, Os trabaiadô da roça E os vaquêro da fazenda; Sou matuto de verdade Eu só vou lá na cidade Comprá minhas encomenda. Mêrmo, o jeito é eu dexá: Que a viola se danou, Pipocou uma das prima E o bordão desafinou; Tombem, eu já cantei munto, Tá terminando esse assunto Que vasmicê me pedia, E o que dixe já provei; Descurpe se eu não cantei Coisa de filosofia. 153 Sofre martiro e cansêra. Cumo prova eu conto agora A menina e a Cajazeira313 A triste e penosa historaDa menina e a cajazêra. Argúem diz que o mundo presta, Num sito munto distante, Grita mêrmo em arto som, Na bêra de uma lagoa, Mas é tolo e nada sabe Morava um casá fie, Quem diz que este mundo é bom. Uma gente munto boa. Como é que ele tem bondade Tinha uma linda criança, Se a nossa felicidade Risonha cumo a esperança, Voa como o pensamento, Era linda e prazentêra, E da praça inté no campo E brincava todo o dia O gozo é cumo o relampo, Na sombra fresca e sadia Que abre e fecha num momento? De uma bela cajazêra. Dêrne do premêro dia Bem de juntinho da casa Que Adão mais Eva pecou, A cajazêra nasceu, A rosa criou espinho, Linhêra, iguá uma frecha, Tudo se desmantelou. No rumo do céu cresceu. E Deus, vendo que a desgraça Era franzinha, dergada, De Adão, o chefe da raça, Mas a copa arrendodada Percisava sê comum, Não podia havê maió. Depressa sentenciou, Quem reparava dizia E uma pacela de dô Que mêrmo só parecia Reservou pra cada um. Um grande chape de só. Inté as arve do campo, Entonce, a linda criança, Que não ofende a ninguém, Aquela boa menina, Herdou daquela miséra, Era o prazê e era a paz Tem suas máguas também. Da cajazêra franzina. Muntas vêz, um pau bonito Naquela sombra vevia, Que os gáio va no infinito, Durante as horas do dia Parece alegre e feliz, Sempre contente, brincando, Mas quando o ráio lhe acerta, Cheia de vida, zelando Sapeca todo e conserta Os seu brinquedo infantí. Da copa inté a raiz. Aquela copa vistosa Que curpa tem este pau, Pra inocente criança Promode o raivoso ráio Era um céu, um paraíso Lhe queimá de meio a meio, Verde, da co da esperança. Lascando gáio por gáio? As ave fazia festa, Se o pobre é um inocente Tinha graça a doce orquesta E o corisco, de repente, Daquele musgo de pena, Faz a maió anarquia, Com seus requebrado canto, Tá quage certo e provado Lovando o riso e o encanto Que tudo vem do pecado Daquela santa pequena. De Adão, o pai de famia. Se o vento vinha de longe, Tudo quanto a terra cria Todo amoroso, brincá, Tem que passá sofrimento, Encrespando na lagoa, Tem seus momento de gôzo As águas cô de cristá, E seus ano de tromento. Na cajazêra chegando As pobre arve, coitada, Era tão macio e brando Sem a ninguém devê nada Cumo quem faz a escôia De uma amô e de um carinho, 313 ASSARÉ, op. cit., pp. 115-122. 154 Soprando devagarinho Nunca mais botou cajá. Mode não derrubá fôia. Sentindo a sombra vazia, Tudo quanto era bondade, Aquela pobre infeliz Paz, inocença e beleza, Foi ficando deferente, Vinha ali fazê morada Acabrunhando as raiz. E toda essa riqueza E cm a marcha dos ano A menina era a rainha, E o choque dos desengano Dava a entendê que Deus tinha Que o mau destino lhe deu, Pra o nosso mundo increu, A cajazêra franzina, Em favo daquele sito, Com sodade da menina Mandado lá do infinito Munchou a copa e morreu. Um pedacinho do céu. Morreu a pobre, sem curpa, Se em cima, na verde copa, Sem devê nada a ninguém. A passarada cantava, Inté as arve do campo Em baxo, na fresca sombra, Tem suas mágua tombém A criancinha brincava. Ficou entonce em memora Aquela arve tão amiga, Do dia e da crué hora Caridosa, sem fadiga, Daquele amargoso adeus, De tudo era potreção. Seca, no sito deserto, Sua copa arredondada Com os seus braços aberto Vivia sempre enfoiada, Pedindo o socorro a Deus. Que fosse inverno ou verão. Quem tinha lhe conhecido Mas a nossa curta vida, Na doce felicidade, Quando começa a sê bela, Vendo o seu grande abandono O vento da negra sorte Chorava de piedade, Dá um sopro e desmantela. Pois aquela cajazêra, Se o sito era um paraíso Bonita, alegre e linhêra, De sossego, paz e riso, Tava um pau véio, cacundo, Se aquela doce união De gáio tingido e preto, Foi grande felicidade, Parecendo um esqueleto Maió foi a crueldade, Chorando as dô deste mundo. E a dô da separação. No gáio, onde os passarinho A amiga da cajazêra, Gorgeava de menhã, Tão nova, tão pequenina, Ficou cantando somente Perdeu ali um tesoro, A feia e triste coã. Pois a mão da triste sina E de noite o vento afoito, Roubou-lhe a felicidade. Roncando e lhe dando açoito, E uma água de orfandade Formava uma entoação Dos óio dela caiu. De causá medonho espanto, Quem era tão prazentêra, Acompanhada do canto Da querida cajazêra Do agorento corujão. Chorando se despediu. E pra ficá bem provado Foi se embora saluçando Que tudo o que a terra cria Aquela criança boa, Tem seus momento de gôzo Dêxando luto e tristeza E os seus ano de agonia, Lá na bêra da lagoa. Ela foi, pôco a pôço, E a cajazêra copada Banindo e criando oco, Vendo a sua camarada Num desmantelo sem fim, Da sombra se retirá E sujeita aos bicho mau: Levando o pranto no rosto, O besôro serra-pau, De tanto sofrê desgosto A broca, a traça e o cupim. 155 Tudo sofre, tudo pena, A vida é pesada cruz, Ninguém se julgue feliz, Que aquilo que agora é luz Mais tarde pode sê treva. A curpa de Adão mais Eva Se espaiou na terra intêra. Tudo ali tornou-se em ruína, Com a farta da menina E a morte da cajazêra. Inté a prope lagoa Perdeu a quilaridade, Criou nas águas uma sombra Roxa, da cô da sodade. Tudo neste mundo passa, O sito perdeu a graça, Daquele sonho de amô Hoje ali já nada existe, Apenas o choro triste Da rola fogo-pagou. 156 Caboge ou feitiçaria E as questão eu resorvia, Uma do Diabo314 Sem usá arma de fogo. Em vez de uma cartuchêra, O mundo sabe e percebe Eu só gostava de usá O Diabo o quanto é sagaz, Uma faca jardinêra Ele não come nem bebe, E um cacete de jucá Se não da arte que faz. Pra recate desaforo. Pra tudo ficá ciente, Quando se acuava um tôro Vou pedi a toda gente Na fazenda do patrão, Que agora em silenço fique, Que os vaquêro se assombrava, Que eu vou contar minha histora, O patrão logo gritava: Que amendornta e que apavora, Vão chamá Mané Gibão! Capaz de dá tremilique. E eu saía com prazê, Mané Gibão é meu nome, Sem cumpanhêro, sozinho, Já fui cabra de corage. Como quem ia tangê A caipora, o lubisome A juriti de seu ninho E outra quarqué visage, E mesmo por um capricho Para mim tudo era peta. Eu desacuava o bicho Foi por isso que o capeta Sem ajuda de ninguém. Aquele mardiçoado Por causa dessa proeza, Se largou de seus coidado Lá naquela redondeza E veio mexê comigo. Todos me queria bem. Fui sujeito corajoso, Mas divido à valentia Topava quarqué parada. E também à mangação, E, al´me disso, era teimoso, Que eu fazia a quem dizia Não acreditava em nada. Que tinha visto visão, Arma penada e caipora Cert a vez, fui castigado Não me entrava na mimora. E hoje tou bem imprado, Para mim esses mistero Não duvido de ninguém. Era conto de vigaro No mundo de tudo isiste, Certa vez, me duvidaro Coisa alegre e coisa triste. E eu drumi no cimetero. Lá no meu torrão natá, No cimetero drumi Naquele tempo vevia E tomei por um brinquedo. Uma moça de encantá Lá eu não vi nem uvi Chmada Rosa Maria. Coisa que me fizesse medo. Era um anjo incantadô. No cimitero da rua, Parece que o Criadô, naquela noite de lua Com sua sabedoria, Com seu brio incantadô, Com o seu sabê profundo, Branco da co da cambraia, Toda beleza do mundo Somente o corta-mortaia Dêxou para Rosa Maria. Agorava os mafeitô. Eu ficava bem contente Lá na terra onde eu vivia, Na minha vida de moço, No meu querido sertão, Quando eu via em minha frente Todo povo conhecia Esta santa em carne e ôço. Quem era Mané Gibão. Era simpate e formosa Tudo ali me respeitava, E tinha uma fala dengosa Pois eu não acreditava Como quem pede perdão. Nas artimanha do Diôgo. Quem reparasse o seu jeito, Sentia dentro do peito 314 ASSARÉ, op. cit., pp. 304-313. 157 Chucaiando o coração. Em argum oco de pau. Porém depois, de repente, Vevia sempre briando Eu senti munto ligêro Os óio desta donzela, Assoprá um vento quente, Parecia ta chamando Fedendo a pai-de-chiquêro. A gente pra perto dela. E lá de dentro do mato, Tinha uma luz pura e fina Com grande espaiafato, Como estrela matutina, Um rebuliço sem fim, Quando aponta no nascente. Veio um bodão cabiludo, Eu possso afirmá divera, Preto, barbado e chifrudo Aqueles dois óio era Bodejando atrás de mim. Dois quixó de pegá gente. Quage eu morro de pavô Eu amava esta donzela Vendo aquela arrumação. E ela me amava também. Meu cabelo arrupiou, Eu queria bem a ela Que o chapéu caiu no chão. E me queria bem. Fiquei sem jeito e sem prano, Uma noite e outra não, Meu deu forte tremedêra, Eu ia vê a feição Caiu da mão o jucá Daquela moça bonita. E não pude nem puxá Da casa dela pra minha Minha faca jardinêra. Quage meia légua tinha De estrada munto esquesita. Vendo a pintura do cão, Vendo o medonho mistero, Era uma esquesita estrada, Eu disse com meus butão: Por ali ninguém morava Ô pernas, pra que te quero? E, além de desabitada, E desembestei no mundo O povo todo falava Chega as pernas dava nó, Que naquela travessia E o bodão, o Luçifé: Munta vez aparecia Bébébé, bébébébé!!! Um bode munto indecente Pisando em meus mocotó. Preto, da cô de viludo, Grande, barbado e chifrudo, Foi grande a minha agonia, Bodejando atrás da gente. Foi grande o meu padecê. Dentro do peito eu sentia Mas, quando algum camarada O meu coração batê. Me falava no tal bode, Não foi graça nem brinquedo! Eu dava uma gargaiada E quem é que não tem medo E lhe tomava a pagode. Das manha do satanaz? E tanta coisa eu dizia Ô que coisa estravagante! E tanto fiz zombaria Era eu correndo adiante Daqueles amigo meu, E ele bodejando atrás. Até que chegou a hora Da minha grande caipora, Ficou no chão o meu chapéu O castigo apareceu. E eu corri cheio de espanto, Depois me lembrei do céu, Eu certa noite vortava De Deus, dos anjo e dos santo. Da casa de meu amô; Quando eu tive esta lembrança, A lua no céu briava Veio um raio de esperança Com o maió resprendô. Lá das artura descendo Grande silenço fazia. E mesmo cortando a fala, Apenas a gente uvia Falando fora da escala, O canto do bacurau, Fui esta oração fazendo: O canto do corujão, Rezando a sua oração Meu Padrim Ciço Romão, 158 Meu Santo do Cariri, Prumode se desforrá, Tenha de mim compaixão, Ia na minha morada Tire este bode daqui! Somente fazê narquia. Minha Santa Padroêra Shegava um e dizia: Desta terra brasilêra, “Como vai Mané Gibão? Santa Virge Aparecida, Armazém de pabulage, Que tudo vê e tudo pode, Cadê a sua corage? Não dêxe este grande bode Ainda viu o bodão?” Remexê na minha vida. E eu só ficava pensando Ante d’eu rezá com fé, Que o que eles tava dizendo, O bicho era bodejando Tudo aquilo era pagando Com aqule bébébé, O que eu já tava devendo. Iscumando e pinotando, E tanta coisa dissero, Que eu mesmo dizê não sei. Tanta mangação fizero, Mas porém, quando eu falei Até que eu não aguentei. No nome de Meu Padrim Saí de lá escondido. E no de Nossa Senhora, Por lá não é conhecido O bodão, naquela hora, Quá rumo foi que tomei. Saiu de perto de mim, Porque, no sertão, o povo Eu vi que ele não gostou Vevia a zombá de mim, Da minha forte oração, Era o veio e era nôvo Berrou, fungou, pinotou E Palo, Chancho e Martim. E desceu num sucavão, Em quarqué parte que ia Em direção de um riacho Incontrava uma narquia, E quando chegou embaixo, Uma pilera, um pagode. Deu um estôro danado Tudo de mim caçoava, Chega entrou na minha venta Munto lá só me chamava Uma catinga nojenta O Mané Gibão do bode. De inxôfre e chifre queimado. E eu tomava por castigo, Eu senti grande miora, Pois eu não tinha dereito Vendo o bicho se afastando E é por isso que hoje eu digo: E saí de estrada a fora Isto se dá com sujeito Com as pernas bambeando. Que a certas coisa se astreve, E eu não nego nada não, Neste mundo ninguém deve Nem que façam mangação Duvidá de seu ninguém, Eu não vou escondê nada No mundo de tudo isiste, Dos aperto que passei Coisa alegre e coisa triste, Quando eu em casa cheguei O mundo de tudo tem. A calça tava moiada. Rescordando este passado, Foi bem triste o meu estado, Me foge o sangue das vêia, Não vou negá nem menti O corpo fica gelado Passei a noite assombrado E o cabelo se arrupeia, Sem dexar ninguém drumi. Fico cansado a tremê E depois que se espaiou E sinto mesmo corrê Tudo quanto se passou, Um suó frio na testa, Naquela noite assombrosa, Fico sem fôrgo e afrito. Eu fiquei tão acanhado, Te desconjuro, Mardito! Nunca mais andei pros lado Eita bicho da molesta! Da moça Maria Rosa. E lá naquele lugá, Aqueles meus camarada, 159 O Caçador315 Das caças, e nunca abandona, Pois as caças é suas rês. Seu dotô, vossa incelença Sem ela querê, por certo Aqui tem franca licença, O caçadô mais esperto Não tem de que se acanhá. Nunca resurtado fez. Se o senhor é empregado, Tem seu dereito sagrado Assim como o fazendêro Dos pote fiscalizá. Tem vaca, bode, carnêro E mais ôtas criação, Mas tarvez nesse Giene A caipora, com certeza, O senhô nunca envenene É quem faz toda defesa Meus pote, pois a muié Das caças, por o sertão. Ajeita a todo momento, E bota piaba dento É quem as caças defende; Mode não criá marté. E quando a Caipora entende De os cachorro trapaiá, Entre, mas tenha coidado, O mato fica esquesito, Que os meus cachorro é danado, E os caçadô fica afrito, Pode mordê meu patrão. Não mata nem um preá. Lá vem um se arrupiando, O bicho ta lhe estranhando: Pode crê, é certo e exato, – Vai te aquetá, Tubarão! Tou veio de vê nos mato Essas feia arrumação; É o Tubarão e o Gigante, Mas nunca fui assombrado, Morreu o veio Elefante, E inté já tenho caçado Que inté de pena chorei. Na chapada do Espigão. Ah, cachorro bom dos diabo! Duzentos e tantos rabo Seu dotô, essa Chapada De tatú dependurei. Do Espigão é assombrada Que eu não sei nem lhe dizê; Ele não temia a nada Eu juro por Jesus Cristo E nunca perdeu caçada, Cumo de lá tenho visto Era bicho acuadô. Munto caçadô corrê. Meu Elefante, coitado! Me deu munto resurtado Às vês os cachorro arenga, Na vida de caçadô. Começa numa estrovenga, Fazendo uma confusão, Estes dois também acôa, Correndo no tabulêro Tenho feito noite boa Cumo se fosse um vaquêro Que não perciso mió. Na pega de um barbatão. São dois companhêro exato, Eu onte truxe do mato, Ôtas vez, cachorro apanha Dois peba e três lapichó. Que o grito vai da montanha Zoando nos cafundó. Seu dotô, eu vou passando E a gente, uvindo de perto, Minha vida aqui caçando Tudo declarado e certo, Com meus cachorros fié; A lapada do cipó. Com lês nada me embaraça, Só não mato munta caça Tudo aquilo é a Caipora Quando a Caipora não qué. Que, pros cachorro i se embora, Faz o maió rapapé; A Caipora é quem é dona Faz zoada que admira, Pois a Caipora se vira 315 ASSARÉ, op. cit., pp. 106-111. Naquilo que ela quisé. 160 Mas esses espaiafato Eu não fiquei satisfeito Que aparece por os mato E fui, com munto respeito, Nunca, nunca me assustou; Conversá com o coroné; Pra isso eu sou munto forte, Mas ele ficou zangado, E só dêxo com a morte Ficou me oiando de lado A vida de caçadô. Com os óio de cascavé. Mode sustentá a famia Eu não quis fazê desgraça, Caço de noite e de dia, Vou vivendo só de caça, Sou obrigado a caçá Não vou brigá com ninguém. Do sertão inté na serra; Me conformo com a sina: É bem poça a minha terra, Esta vida pequenina Não tenho onde trabaiá. De quarqué forma ta bem. Eu perdi mais da metade Quero vivê sossegado Da curta propiedade Com meus cachorros de lado, Que eu herdei de meu avô: Inté quuando Deus quisé. O coroné Macelino Apois eu só acho acho graça Com seu istinto ferino Em meus cachorro de caça, Sem quê nem pra quê, tomou. Meus fio e minha muié. Sem raiva, questão nem zanga Não gosto de brincadêra, Fez ele tinia grande manga, De forró, de bebedêra Tão grande que faz horrô, E de ôtas ingorfação E a parte do meu terreno, Do povo de fina crasse, Que já era bem pequeno, De onde brota e de onde nasce Dentro da manga ficou. A maió das perdição. Mode não havê censura Quero ta mêrmo afastado Levei a minha escritura, Deste mundo desgraçado Porém ninguém se importou, Cheio de guerra e questão; Pois onde fala o dinhêro, Eu qui gozo bastante, O resto fica no acêro, De um lado vendo o Gigante, Carimbo não tem valô. De ôto lado, o Tubarão. De que serve eu sê casado, Me largá de meus coidado Pro mode pegá em questão? Desprezá minha famia, Pra fazê estrepolia E cai na perdição? Só peço a Deus que na vida Nunca me farte a comida, Um bom armôço de angú Bem saboroso e sadio, Feito de massa de mio Misturado cm tatu. Também abuso a política Que é pió que a paralítica Do veio Estêvo Dôdô. Acho inté bom não sabê Contá, escrevê nem lê, Mode eu não sê inleitô.