1 UNIVERSIDADE DE CAXIAS DO SUL CENTRO DE FILOSOFIA E EDUCAÇÃO – CEFE PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO – CURSO DE MESTRADO MÁRCIA FERNANDES UMA INVESTIGAÇÃO SOBRE ESCALAS A PARTIR DE UMA PERSPECTIVA INTERDISCIPLINAR Caxias do Sul 2010 2 MÁRCIA FERNANDES UMA INVESTIGAÇÃO SOBRE ESCALAS A PARTIR DE UMA PERSPECTIVA INTERDISCIPLINAR Dissertação de Mestrado submetida à Banca Examinadora designada pela Coordenação do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade de Caxias do Sul, como parte dos requisitos necessários para a obtenção do título de Mestre em Educação. Linha de Pesquisa: Epistemologia, Linguagem e Educação. Orientador: Prof. Dr. Francisco Catelli Caxias do Sul 2010 3 4 5 Dedico este trabalho ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade de Caxias do Sul. 6 AGRADECIMENTOS Agradeço a todos que de uma forma ou de outra contribuíram para o desenvolvimento desta dissertação. Em especial agradeço: Ao Professor Dr. Francisco Catelli, pela motivação, compreensão, confiança e ensinamentos. A Professora Dra. Eliana Maria do Sacramento Soares, pelo apoio e incentivo ao trabalho. Ao Professor Dr. Jayme Paviani, pela motivação na construção do trabalho. Aos meus pais, pela espera, compreensão e paciência. A Fabio Casarotto, pelo apoio e incentivo à nunca desistir. Aos amigos que compreenderam minha ausência e estiveram presentes quando mais precisei. Aos colegas e professores da Universidade de Caxias do Sul, pela troca de experiências, que fizeram com que eu aprendesse tanto, durante esta caminhada. A Deus, que mesmo em dias de tempestades deu-me forças para continuar a caminhada. 7 “Aprender é a única coisa de que a mente nunca se cansa, nunca tem medo e nunca se arrepende”. Leonardo da Vinci 8 RESUMO: O presente trabalho tem por objetivo analisar o papel das ações interdisciplinares na formação do conceito de escala do estudante. Para isso, investigou-se, a literatura e os livros-texto sobre o assunto, assim como a posição dos docentes e a legislação estabelecida pelos Parâmetros Curriculares Nacionais sobre o tema. A pesquisa insere-se na linha de Epistemologia e Linguagem, do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade de Caxias do Sul, coordenado pelo Professor Doutor Jayme Paviani e orientada pelo Professor Doutor Francisco Catelli que trabalha na investigação de abordagens alternativas no ensino de ciências. No primeiro capítulo é feita uma análise do objeto de pesquisa, “escala”, buscando- se elementos na história da Matemática e da Física e relacionando-os com a Educação, especialmente com a construção do conhecimento. No segundo capítulo é realizada uma investigação na literatura sobre o conceito de interdisciplinaridade, consultando principalmente autores como Jayme Paviani e Olga Pombo, a fim de examinar a presença da noção de interdisciplinaridade no processo de construção do conhecimento. No terceiro capítulo procura-se identificar o processo de construção, leitura e interpretação do objeto escala na perspectiva dos professores de matemática e de física do ensino médio, verificando suas concepções sobre esse objeto e em que ele contribui para a formação do aluno. Observou-se, antes mesmo do início desta pesquisa, que o objeto escala não estava suficientemente esclarecido ao aluno de Ensino Médio que, frequentemente, apresenta dificuldades em construí-la e interpretá-la. Procura-se então responder à pergunta: “Que argumentos ajudam a sustentar o encaminhamento de ações interdisciplinares no ensino de escalas e medidas no Ensino Médio?” Buscando compreender a forma com que o objeto escala está sendo desenvolvido, foi feita uma análise de alguns livros didáticos de matemática e física distribuídos aos professores e alunos das escolas públicas de Ensino Médio pelo Programa Nacional do Livro Didático. Para conhecer o posicionamento dos professores sobre a forma com que o conceito de escala é trabalhado, foi feita uma entrevista semi-estruturada com um grupo de docentes que trabalha rotineiramente com esses livros. A partir da análise das respostas procurou-se verificar como eles acreditam que o aluno aprende, não apenas esse conceito, mas as definições fundamentais para a formação do estudante, e, se acreditam que ações interdisciplinares possam promover a melhoria na apreensão de conceitos. Através desta pesquisa foi possível perceber que os conceitos de escala e de medida são vistos, muitas vezes, apenas como ferramentas e não como formas de comunicação e representação. Esses conceitos não pertencem a uma disciplina somente, justificando a necessidade da presença da interdisciplinaridade, conceito pouco desenvolvido no contexto escolar atual. O presente trabalho tem como relevância científica a percepção da necessidade de se ampliar o campo de visão da ciência, extrapolando o conhecimento de apenas uma disciplina e interagindo com outras áreas. Além disso, esta investigação é relevante pedagogicamente na medida em que pretende contribuir para o preenchimento de uma importante lacuna existente no processo de ensino-aprendizagem de Matemática e de Física, a saber, a consciência limitada, por parte de alunos e professores, do caráter inerentemente interdisciplinar dos conceitos de escala e de medida, caráter esse que dá a elas a devida amplitude. Palavras-chave: Ensino-aprendizagem. Matemática. Física. Interdisciplinaridade. 9 ABSTRACT: The current paper aims to analyze the role of disciplinary actions in shaping the formaction of the concept of the scale of the student. In order to do so, the literature, didactics about the subject, the position of the docents who work in the areas and the legislation established by the National Curricula Parameters were investigated. The research is held in the line of Epistemology and Language, of the Post Graduation Program in Education at the University of Caxias do Sul, coordinated by Professor Doctor Jayme Paviani and monitored by Professor Doctor Francisco Catelli who works in the investigation of alternative approaches in the teaching of sciences. In the first chapter an analysis of the research object, “Scale”, is made in order to search for elements in the history of Mathematics and Physics and relate them with Education, especially concerning the of knowledge building. In the second chapter an investigation on the literature about interdisciplinarity is held, consulting mainly to authors Jayme Paviani and Olga Pombo, to examine the presence of the concept of interdisciplinarity in the construction of knowledge. In the third chapter the aim is to identify the process of building, reading and interpretation of the scale object in the perspective of mathematics and physics teachers of high school, verifying their conceptions about this object, and in what it contributes on the pupils’ formation. It was observed even before the beginning of this research that the scale object was not clear enough for the High School student who often has difficulty in building it and interpreting it. It was then necessary to answer the question: "What arguments give support of implementation of actions interdisciplinary teaching of scales and measures in high school?" In order to understand the way in which the scale object is being developed, an analysis of didactic materials was made, having books of Math and Physical aproved in the National Program of Didactic Book, and delivered for teachers and students of public high schools selected as samples.So that we could find out the positioning of the docents about the way the concept of scale is worked, a semi-structured interview was conducted with a group of mathematics and physics teachers who work with these books every day. From the analysis of their answers it was verified how they believe their pupils learn, not only this concept, but the fundamental definitions of the student’s formation, and, if they believe that interdisciplinary actions can foster the improvement in grasping concepts. Through this research it was possible to notice that the concepts of scale and of measure are often seen only as tools and not as ways of communication or representations. These concepts do not belong to a unique subject, that is why the interdisciplinarity is needed, a concept which is not enough developed in the school context. The realization of the need to broaden the view camp of science gives scientific relevance to the research, going beyond the knowledge of only one subject and interacting with other areas. Furthermore, this investigation is pedagogically relevant as it intends to contribute for the bridging of an important gap existing in the process of teaching-learning of Mathematics and Physics, the limited awareness of teachers and pupils of the inherent character of the concepts of scale and measure, a character that gives them the due extension. Key words: Teaching – learning. Mathematics. Physics. Interdisciplinarity 10 SUMÁRIO APRESENTAÇÃO...................................................................................................................10 INTRODUÇÃO........................................................................................................................11 1 ANÁLISE DO OBJETO “ESCALA”..................................................................................16 1.1 ESCALAS E MEDIDAS, UMA VISÃO DA HISTÓRIA DA MATEMÁTICA.........16 1.1.1 Origens da contagem............................................................................................17 1.1.2 Babilônia e Egito..................................................................................................19 1.1.3 Grécia e Roma......................................................................................................20 1.1.4 Euclides.................................................................................................................24 1.1.5 Arquimedes...........................................................................................................26 1.1.6 Descartes...............................................................................................................29 1.2 ESCALAS NA HISTÓRIA DA FÍSICA......................................................................30 1.2.1 O universo relógio de Newton..............................................................................32 1.2.2 O universo em evolução de Einstein....................................................................34 1.3 ESCALAS E SISTEMA INTERNACIONAL DE UNIDADES: UMA NECESSIDADE DE COMUNICAÇÃO.............................................................................35 1.3.1 Do Sistema Métrico Decimal ao Sistema Internacional de Unidades..................36 1.3.2 Instituto Nacional de Metrologia, Normalização e Qualidade Industrial – INMETRO.......................................................................................................................43 1.4 ESCALAS, MEDIDAS E EDUCAÇÃO.....................................................................44 1.4.1 Georges Cuisenaire...............................................................................................47 1.5 CONSTRUÇÃO DO CONHECIMENTO EM SALA DE AULA..............................49 2 INTERDISCIPLINARIDADE: CAUSA OU CONSEQUÊNCIA DO PROCESSO DE ENSINO APRENDIZAGEM?..................................................................................................50 2.1 INTERDISCIPLINARIDADE: ALGUMAS DEFINIÇÕES.......................................51 2.1.1 A fragmentação das disciplinas.............................................................................51 2.1.2 Inter, trans e multidisciplinaridade: a disciplina e seus prefixos..........................54 2.1.3 A interdisciplinaridade como uma possível alternativa na solução de problemas complexos........................................................................................................................54 2.2 A INTERDISCIPLINARIDADE COMO INTEGRADORA DE CONHECIMENTO58 2.3 A INTERDISCIPLINARIDADE E SUA IMPORTÂNCIA PARA A EDUCAÇÃO...61 2.3.1 Educação para compreender e interagir com o mundo.........................................61 2.4 A INTERDISCIPLINARIDADE NO ENSINO DE MATEMÁTICA E CIÊNCIAS NATURAIS. ........................................................................................................................65 2.4.1 Interdisciplinaridade no processo de construção do conhecimento......................65 2.4.2 Os Parâmetros Curriculares Nacionais e a interdisciplinaridade: um possível caminho para a resposta da questão pesquisada..............................................................67 2.5 AS DISCIPLINAS E AS IDEIAS ESTRUTURADORAS..........................................69 3 ANÁLISE DAS ENTREVISTAS........................................................................................71 3.1 SOBRE A METODOLOGIA.......................................................................................71 3.2 ANÁLISE DOS DADOS COLETADOS.....................................................................72 3.2.1 Escalas, Medidas e os Parâmetros Curriculares Nacionais de Ensino Médio de Matemática e Física.........................................................................................................73 3.2.2 Livro texto de Física.............................................................................................75 3.2.3 Livro texto de Matemática....................................................................................78 3.2.4 Entrevistas com os professores.............................................................................82 CONSIDERAÇÕES FINAIS...................................................................................................92 REFERÊNCIAS:......................................................................................................................95 APÊNDICE A: HISTÓRIA DA MATEMÁTICA: PITÁGORAS E O PROBLEMA DA 11 INCOMENSURABILIDADE.................................................................................................101 APÊNDICE B: ESTRUTURA DAS ENTREVISTAS VOLTADAS AOS PROFESSORES108 12 APRESENTAÇÃO A autora do presente trabalho vem de um curso bi-disciplinar, o antigo curso de Matemática com habilitação em Física, o qual trabalhava as duas áreas de conhecimento, integrando-as sempre que possível por meio de seus conceitos, conteúdos e aplicações. Isso despertou na autora o interesse em aprofundar o conhecimento a respeito da interdisciplinaridade. Durante os anos que esteve na Universidade, cursando a graduação, aprendeu que o conhecimento é um conjunto indivisível. Como destaca Morin (1996, p. 275), “... a química, num nível experimental, está no campo da microfísica. E sabemos também que a história ocorre num território, numa geografia. [...] Fica bem distinguir estas matérias, mas não é necessário estabelecer separações absolutas”. Da mesma forma, não é conveniente isolar a matemática da química ou da física, por exemplo, elas estão interligadas em diversos contextos, como unidades, grandezas, escalas e outros tantos conhecimentos. Quando a autora atuou em sala de aula, nos estágios com séries finais dos ensinos fundamental e médio, procurou construir com os alunos algumas percepções a respeito de problemas de escalas e medidas. Através dessa experiência, foi possível verificar, com auxílio dos professores atuantes nessas séries e com seus professores da graduação, que alguns alunos apresentavam dificuldades em esboçar e interpretar gráficos, que são utilizados frequentemente para representar dados de pesquisas e fenômenos ocorrentes em diversos contextos, como os da ciência, da política, da sociedade, entre outros. Além disso, alguns estudantes sentiam necessidade de compreender melhor sua localização no ambiente em que estavam inseridos, como por exemplo, do bairro onde moravam em relação a diferentes pontos da cidade. A partir dessas dificuldades de representação, e localização espacial apresentada por alguns alunos e confirmada pelos professores, a autora procurou refletir se poderia existir algum problema de aprendizagem referente ao ensino de escalas, e em caso afirmativo, onde estaria essa lacuna e como encontrar alternativas que pudessem amenizar esse problema. O estudo pretende contribuir para a compreensão de alguns problemas que existem no processo de ensino-aprendizagem de Matemática e de Física, auxiliando na percepção das relações entre as disciplinas e, consequentemente, melhorando a aprendizagem. 13 INTRODUÇÃO A educação científica da população passa por uma competência mínima no que diz respeito à leitura e interpretação de escalas. Essa noção do entendimento de escalas muitas vezes não é suficiente para que o aluno consiga fazer as devidas interpretações e representações de determinadas situações do cotidiano, como por exemplo, interpretar dados estatísticos fornecidos pelos diversos meios de comunicação, interpretar mapas, projetos técnicos simples, enfim, compreender as representações que as medidas associadas às suas unidades, oferecem. Para Tiles (2002, p. 375) “os números só são atribuídos após a seleção de uma unidade de medida”. A medida é fundamental para a física. Reforçando essa ideia Eddington (1981 apud CATELLI, 1999, p. 105) afirma que “a física é a ciência não dos objetos, mas das medidas”, e Lebesgue (1975 apud CATELLI, 1999, p. 103) afirma que “não existe assunto mais fundamental: a medida é o ponto de partida de todas as aplicações matemáticas”. Escalas são representações de grandezas umas pelas outras. De acordo com Catelli (1999, p. 95) “a grandeza se manifesta por uma variedade muito grande de domínios: comprimentos, distâncias, massas, superfícies, volumes, forças, densidades, capacidades, resistências, temperaturas, correntes, velocidades, intervalos de tempo, energias,...”. Medir uma grandeza é compará-la com outra, sendo assim, grandezas de mesma espécie podem se compor uniformemente. Do ponto de vista matemático, as escalas são utilizadas abundantemente, em especial, na resolução de problemas em geral. Uma das bases da matemática é a medida, a representação de grandezas. Ao fazer comparações simples como verificar qual maçã da fruteira é maior, ou quanto de água é preciso ingerir durante o dia para saciar a sede, está se usando matemática na sua forma mais básica, ao verificar o mapa de uma região a qual não se conhece, para saber quanto longe se está ou como chegar a um determinado ponto, também está se utilizando escalas. Porém, a matemática não é detentora exclusiva do estudo de escalas. Escalas são encontradas em todas as disciplinas que envolvem as ciências naturais, ou seja, surge naturalmente uma noção de interdisciplinaridade como necessidade para compreender todas as relações envolvidas na solução de um problema complexo. Escalas são formas de representar grandezas, utilizadas em todas as áreas do conhecimento. E representar grandezas nada mais é do que medir. Sendo assim, no primeiro capítulo deste trabalho é feita uma análise do objeto de pesquisa “escala”, iniciando com uma 14 pesquisa bibliográfica, remetendo-se inicialmente à história da matemática e da física. Para a análise da historicidade dessas disciplinas foram consultadas obras de Carl Boyer e Howard Eves que apresentaram alguns fatos considerados importantes para o desenvolvimento desta dissertação. A seguir foi feita uma análise da importância do objeto de pesquisa na comunicação entre os povos, citando conquistas tais como a criação do Sistema Métrico Decimal, do Sistema Internacional de Unidades e do Instituto Nacional de Metrologia, Normalização e Qualidade Industrial (INMETRO). Tornou-se necessário também fazer uma análise da presença da medida e, consequentemente, das escalas na educação. Foi feita uma incursão na história da Educação, voltando-se, em especial, à história da educação matemática e da física, consultando, em especial, textos de Ubiratan D'Ambrósio. Relatou-se ainda, no primeiro capítulo, uma experiência importante para a educação matemática e para a construção do conhecimento realizada por Georges Cuisenaire. Matemática e Física são didaticamente disciplinas. Então, no segundo capítulo foi feita uma tentativa de definir o que é disciplina e a melhor definição, a partir da perspectiva à qual este trabalho se propõe, pode levar a alguns dividendos importantes. Por exemplo: para construir a noção de escala é necessário lançar mão de ideias que originalmente nascem de vários campos do conhecimento. Além disso, a relação entre as ciências (mais especificamente, seus resultados) e as sociedades levou – o legado da história humana mostra – a acordos que superaram fronteiras. Tal é o caso do Sistema Métrico. É redundante discutir aqui a importância de tais eventos. Ela é, sem dúvida, enorme. Mas qual a importância de tais eventos no quotidiano da escola? Seria o fato de eles serem considerados “como propriedade de outras matérias” que faz com que eles nem sejam, na maioria das vezes, evocados? Do ponto de vista do “objeto didático complexo” - a escala - que intenta-se construir, a perda é grande. A fragmentação das disciplinas pode deixar lacunas na formação do estudante. Para tentar esclarecer a necessidade de uma visão interdisciplinar do conhecimento foram consultadas, principalmente, obras de Jayme Paviani e Olga Pombo. Dessa forma, este trabalhado percebe a interdisciplinaridade, não como causa, mas como consequência do processo de ensino-aprendizagem. Outro aspecto, não menos relevante, que se pretende abordar nesta dissertação, em especial, no terceiro capítulo, refere-se ao papel da escola, e por extensão das disciplinas. Deveria a escola e suas disciplinas, darem conta desse “objeto complexo” com a dimensão que lhe é dada aqui? Em caso afirmativo, por que esse objeto e não os outros? Essas e tantas outras questões puderam – acredita-se – ser discutidas com proveito nesta dissertação. É claro 15 que para examinar tais conjecturas foram necessários instrumentos de pesquisa cuja abrangência fosse suficientemente ampla. Foi feita uma entrevista semi-estruturada com professores de uma escola púbica de médio porte da região nordeste do estado a fim de analisar sua posição sobre o papel das ações interdisciplinares para a formação do conceito de escala no estudante. É portanto, objetivo deste trabalho analisar o papel das ações interdisciplinares na formação do conceito de escala do estudante. Pretende-se com este estudo, contribuir para a Educação em Matemática e em Física, auxiliando na percepção das relações entre as disciplinas e, consequentemente, melhorando a aprendizagem, em especial, desses dois campos do conhecimento. 16 1 ANÁLISE DO OBJETO “ESCALA” 1.1 ESCALAS E MEDIDAS, UMA VISÃO DA HISTÓRIA DA MATEMÁTICA. Aprender matemática não é simplesmente aceitar fórmulas ou métodos prontos para resolver problemas, não obstante, muitas vezes o ensino de matemática é feito de forma “pronta e acabada”, sem que, nem mesmo um conhecimento breve e preliminar da razão e da importância do que se está aprendendo seja evocado. Uma forma para compreender determinado conteúdo é através de sua contextualização histórica, da origem desse conhecimento. Para D'Ambrósio (1996, p. 29) “ter uma idéia, embora imprecisa e incompleta, sobre por que e quando se resolveu levar o ensino de matemática à importância que tem hoje são elementos fundamentais para se fazer qualquer proposta de inovação em educação matemática e educação em geral.” Nessa perspectiva, parece interessante analisar alguns fatos que levaram à Matemática a ter tamanho valor na sociedade atual. Brasil (2002a, p. 25) complementa ao afirmar que “o caráter histórico” da construção do conhecimento científico é um traço geral de cada uma das disciplinas que compõem as ciências naturais1 e a matemática. Sob esse aspecto, o presente capítulo busca encontrar alguns dos principais fatos que marcaram a história da Matemática e da Física, focalizando o desenvolvimento e a construção dos principais conceitos presentes no estudo das de escalas e medidas. Inicialmente foi feita uma abordagem sobre a origem da contagem, o desenvolvimento da matemática e de outras disciplinas na Grécia, com destaque para a aritmética, geometria, astronomia e música. Nesse período destaca-se a crise dos incomensuráveis, talvez uma das maiores crises da matemática, que provocou uma revolução no desenvolvimento do conhecimento. Foram examinadas também algumas ideias dos principais pensadores ao longo da história que contribuíram para o crescimento da Matemática e da Física. Em seguida buscou-se investigar a “contribuição” das escalas para as diversas formas de comunicação social, bem como alguns aspectos correlacionados à Educação. 1Segundo Brasil (2002) compreendem as ciências naturais as disciplinas Física, Química e Biologia. 17 1.1.1 Origens da contagem “Se não tivéssemos primeiro a habilidade de contar, seríamos incapazes de medir.” (CARNAP, 1996). Não existem muitos registros sobre a origem da contagem, visto que a maior parte deles perdeu-se no decorrer do tempo. Acredita-se que o ser humano começou a utilizar-se da matemática muito antes de estabelecer a contagem. Os primeiros homens, na idade da pedra, viviam da caça e da coleta de alimentos, para isso utilizavam-se da comparação de grandezas constantemente. Por exemplo, qual seria o maior peixe? Ou quantos frutos seria necessário comer para saciar sua fome? Com a evolução da espécie humana, os homens passaram a viver em comunidade, formando uma sociedade de caçadores nômades. De acordo com Boyer (1996), para caçar eles desenvolveram algumas ferramentas pequenas e, percebendo que a pele dos animais era uma forma de se aquecerem, começaram a fabricar suas roupas. Mas ainda existia um problema: estando muito tempo em determinado local, iam se acabando os frutos e os animais se afastando. Assim, cada vez que se acabavam os alimentos, os homens precisavam ir em busca de novas fontes, deixando para trás suas casas e correndo novos riscos. As margens de rios, por haver maior diversidade de plantas e animais, eram os locais mais escolhidos. Encontram-se dados que mostram que as primeiras civilizações egípcias e mesopotâmia se estabeleceram às margens dos rios Nilo, Tigre e Eufrates. Para sobreviver, o homem precisava saber qual era o maior animal e qual o menor, era necessário comparar para ver quanto seria o ideal para alimentar todos os membros da comunidade. Segundo Boyer (1996, p. 1), “as noções primitivas de número, grandeza e forma poderiam estar relacionadas com contrastes mais do que com semelhanças – a diferença entre um lobo e muitos, a desigualdade de tamanho entre uma sardinha e uma baleia.” (Grifo do autor). Boyer afirma ainda que a matemática pode ter nascido dessa percepção de semelhanças e diferenças em número e forma. Porém, a natureza se modifica constantemente, e o homem sentiu necessidade de observá-la com mais cuidado. Percebeu que as plantas nasciam de sementes, e que os animais, desde que não se sentissem ameaçados, poderiam se aproximar, e conviver passivamente, passaram então a domesticá-los para serem presas mais fáceis. Para domesticar os animais o homem precisava ter alguns tipos de controle: saber quantos tinha, se algum havia fugido se existiam predadores, e assim por diante. Para isso, 18 começou a registrar os números, fazendo grupos de pedras, ou registrando em pedaços de osso ou bastões de madeira. Conforme Eves (1995, p. 26) era possível “contar fazendo-se ranhuras no barro ou numa pedra, produzindo-se entalhes num pedaço de madeira ou fazendo- se nós numa corda.” Quando o homem começou a cultivar seus alimentos, percebeu que se plantasse e não chovesse as sementes não nasceriam; então começou a prestar atenção nas épocas de chuva e de seca. Assim saberia quando deveria plantar suas sementes para obter uma boa colheita. Chiqueto (1996, p. 15) cita um exemplo fictício que mostra como, possivelmente, o ser humano começou a identificar as estações de seca e de chuva. É provável que esse episódio imaginário tenha se dado no Egito ou Mesopotâmia. “Um agricultor em determinada noite, pouco antes do clarear do dia, viu uma estrela muito brilhante, na direção do Sol”. Alguns dias depois de tê-la visto choveu. Muito tempo depois, esse homem viu a estrela no mesmo lugar pouco antes do Sol nascer. Dias depois, choveu. Na terceira vez que o agricultor “viu a mesma estrela no horizonte antes do nascer do Sol, achou que poderia chover novamente e se preparou para plantar. Realmente choveu, e a colheita foi boa.”. Assim, o homem começou a analisar o céu com mais frequência, para verificar as estações de chuva e seca. A estrela que o autor se refere é hoje conhecida por Sírius. Os homens logo perceberam que não era apenas a estrela Sírius que tinha um ciclo, mas que as demais também tinham. Essas observações podem indicar as origens da astronomia. Segundo Schenberg (1984, p. 15) as observações dos astros “podem ser consideradas o ponto de partida da cinemática2, que combina as idéias geométricas com o conceito de tempo”. A partir dessas observações o homem passou a medir o tempo, dividindo os anos pelos períodos de frio e calor, pela posição da estrela Sírius no céu. A observação da estrela Sírius no leste, fez com que o homem verificasse que a cada duas vezes que a estrela aparecia no mesmo ponto no céu, logo ao anoitecer, marcava um intervalo de 365 dias. Verificou também que a lua também tinha um ciclo, e que a cada doze aparições da mesma fase da lua, iniciava um novo ciclo na natureza, então se definiu o ano. A divisão de cada fase da lua serviu para que os homens se organizassem no plantio e colheita dos alimentos, definindo assim, os meses e, por extensão, construindo calendários. Com o desenvolvimento da agricultura, da escrita e da engenharia, tornou-se necessário organizar um calendário mais preciso, para registrar a produção. Novas tecnologias 2 De acordo com Sampaio e Calçada (1998, p. 1) “a cinemática é a parte da Mecânica que descreve os movimentos dos corpos através dos conceitos de posição, velocidade e aceleração.” Para trabalhar a Cinemática são necessários os conceitos de instante e de tempo. 19 foram surgindo como a construção de barragens e sistemas de irrigação. De acordo com Eves (1995, p. 57) o desenvolvimento de sistemas de irrigação e outros “projetos extensivos dessa natureza não só serviram para ligar localidades anteriormente separadas, como também a engenharia, o financiamento e a administração desses projetos, e os propósitos que os motivaram solicitaram o desenvolvimento de considerável tecnologia e matemática concomitante”. Dessa forma a matemática originou-se como uma ciência prática, capaz de resolver problemas ligados ao cotidiano dos povos. Os agricultores não precisavam mais fazer grandes viagens, mudando constantemente de lugar. Construíram aldeias e tiveram tempo para se dedicar às novas tecnologias e sistemas de contagem. Segundo Eves (1995, p. 24) “Depois de 3000 a.C. emergem comunidades agrícolas densamente povoadas ao longo do Nilo na África, dos rios Tigre e Eufrates no Oriente Médio e ao longo do rio Amarelo na China. Essas comunidades criaram culturas nas quais a ciência e a matemática começam a se desenvolver.” 1.1.2 Babilônia e Egito Várias contribuições para a matemática tiveram origem com os babilônicos. Esses registravam em tabletas de barro, documentos importantes, acontecimentos históricos e tábuas matemáticas3. Os babilônicos e egípcios tiveram grande importância na geometria, por tratarem de problemas práticos de medida. Os egípcios procuravam medir e demarcar suas terras, atividade que segue até os dias de hoje, quando topógrafos, geólogos, arquitetos e engenheiros fazem mapeamentos e plantas; o cálculo de áreas permanece até hoje como um dos grandes marcos da história da Matemática. Conforme Eves (1995, p. 60) por volta de 2000 a.C. a 1600 a.C. os babilônicos “deviam estar familiarizados com as regras gerais da área do retângulo, da área do triângulo retângulo e do triângulo isósceles”. Para Osserman (1997, p. 18), os babilônicos desenvolveram a matemática de forma muito mais elevada do que os egípcios. “Tinham um sistema mais sofisticado de representar os números e uma álgebra básica, assim como a geometria.”. E mesmo mil anos antes da prova dada por Pitágoras, os babilônicos já conheciam a relação do Teorema de Pitágoras. “A chave para obter um ângulo reto era que o quadrado do lado mais comprido fosse igual à 3 Segundo Eves (1995, p. 60), as tábuas matemáticas envolviam, tábuas de multiplicação, de inversos multiplicativos, de quadrados e cubos. 20 soma dos quadrados dos outros dois lados.” A maioria dos problemas da época estavam relacionados a problemas de medida de áreas de terras. No Egito, o ensino da matemática era baseado na resolução de problemas. Não se sabe ao certo os objetivos de alguns dos problemas registrados no Papiro de Rhind, o mais extenso dos papiros voltados à matemática. Segundo Boyer (1996, p. 11) o problema 79 do Papiro se refere a um homem que tinha sete mulheres, cada uma com sete gatos, cada gato com sete ratos e cada rato com sete espigas de trigo. O objetivo era que os alunos descobrissem quantos eram todos os presentes no problema. O desenvolvimento desses problemas pode ter sido movido por diversos motivos, o de ludicidade, por exemplo, associada à resolução de enigmas, uma forma de treinar cálculos ou uma técnica para desenvolver o raciocínio lógico. De acordo com Miorin (1998, p. 11) “... é bem provável que a prática tenha dado o hábito, persistente até hoje, de colocar problemas totalmente absurdos para os alunos, apenas com a intenção de treinar os algoritmos, ou até mesmo de desenvolver o raciocínio.” A hipótese citada por Miorin parece pertinente, visto que, como não havia muitas formas de registrar a aprendizagem na época, os iniciantes deveriam organizar uma forma de guardar o que aprendiam, e a prática talvez fosse o melhor instrumento. Mas a matemática egípcia não estava restrita apenas a problemas abstratos. Era extremamente precisa em problemas de contagem e medidas. O cálculo de áreas na construção de pirâmides, a mensuração de territórios, são exemplos de problemas que eram rotineiramente resolvidos pelos egípcios. Conforme Manacorda (2000) a civilização egípcia foi uma das que mais tempo durou, cerca de 4.000 anos. Era o pai, de forma autoritária, que ensinava o filho, que deveria decorar o que era considerado importante para a civilização. 1.1.3 Grécia e Roma As cidades que mais se destacam nesse período são Esparta, que buscava a formação do patriota guerreiro e Atenas que formava o homem para a liberdade. A Grécia é considerada “berço da civilização ocidental” para a educação e para a democracia e, segundo Guaydier (1984, p. 10), foi também “o grande centro intelectual da Antiguidade”, dando importantes passos para o desenvolvimento das Ciências. 21 A mais de 2.000 anos atrás, os gregos tiveram como ambição explorar a Terra, a fim de determinar sua forma e tamanho. Sabiam apenas que a Terra era muito grande, mas não tinham ideia de sua dimensão. Segundo Osserman (1997, p. 17) descobrir o tamanho da Terra “exigia também um desenvolvimento sistemático de um ramo inteiramente novo de conhecimento que os gregos chamariam de geometria, que literalmente significa medir a terra”. Eratóstenes, um matemático e geógrafo grego, tentou descobrir a medida do raio da Terra por volta de 240 a.C.. Segundo Barreto (2009), tendo acesso ao catálogo da biblioteca de Alexandria, o matemático e geógrafo verificou, que no dia do solstício de verão do hemisfério norte ao meio-dia, o Sol refletiria nas águas de um poço em Siene, localizada ao mesmo meridiano de Alexandria. Para isso deveriam estar alinhados, sobre o mesmo ponto imaginário, o Sol, o raio da Terra e o poço. Sabendo que distância entre Siene e Alexandria era de 800 Km, Eratóstenes verificou que o ângulo formado entre uma coluna em Alexandria e a sombra da Terra ao meio dia era de 7 1/2º, aproximadamente 1/50 do comprimento do meridiano terrestre de 360º. Através de alguns cálculos simples, Eratóstenes pode concluir que o raio da Terra era de aproximadamente 5.400 Km. Essa é talvez a primeira (e surpreendentemente precisa) medida do raio da Terra que se tem notícia. De acordo com D'Ambrósio, “os primeiros avanços da matemática grega são atribuídos a Tales de Mileto (625-547 a.C.) e a Pitágoras de Samos (560-480 a.C.).” Sabe-se também que além da matemática, em especial a aritmética e a geometria, os gregos se dedicavam à astronomia, à ginástica e à música. E é curioso notar que, à sua maneira, cada uma dessas disciplinas fazem uso extensivo da ideia de medida. Chamado de “um dos sete sábios da Grécia” Tales é considerado o primeiro matemático, por fazer as primeiras proposições a respeito da geometria dedutiva. Boyer (1996, p. 32) afirma que Tales “mediu a altura das pirâmides no Egito observando os comprimentos das sombras no momento em que a sombra de um bastão vertical é igual à sua altura.” Tales foi pioneiro nos cálculos astronômicos, todavia não há muitos registros sobre suas descobertas. Apesar de muitas dúvidas, “diz a tradição que em 585 a.C. Tales assombrou seus contemporâneos ao predizer um eclipse solar.” Nascido em Samos, Pitágoras viajou pelo Egito e Babilônia, adquirindo um grande conhecimento em matemática e astronomia. Voltando à Grécia se estabeleceu em Crotona, hoje sudeste da Itália, e fundou uma espécie de sociedade secreta fundamentada na matemática, filosofia e ciências naturais. A escola Pitagórica selecionava seus discípulos por sua índole e capacidade. 22 Na sua escola distinguiam-se quatro graus: os acústicos (ou acusmáticos), que tinham acesso à primeira educação musical, com mitos, cultos e cantos religiosos, memorização de poesias, instrumentos musicais, dança e ginástica; os matemáticos, que estudavam aritmética, geometria, astrologia e música; os físicos, que eram introduzidos aos estudos da natureza ou filosóficos; e os sebásticos, que eram introduzidos na ciência sagrada e esotérica. (MANACORDA, 2000, p.47). Para os pitagóricos tudo era explicado através dos números (inteiros). Pitágoras afirmava que para qualquer segmento de reta existiria outro que por menor que fosse poderia dividir o primeiro. Com a descoberta dos números irracionais, houve uma catástrofe, toda a base pitagórica foi por água abaixo. De acordo com Eves (1995, p. 107) a descoberta dos irracionais desestabilizou a ordem pitagórica. ... pois não só ela parecia perturbar a suposição básica da escola, de que tudo dependia dos números inteiros, como também porque a definição pitagórica de proporção, assumindo como comensuráveis duas grandezas quaisquer similares, fazia com que todas as proposições da teoria pitagórica das proporções se limitassem a grandezas comensuráveis, invalidando sua teoria geral das figuras semelhantes”. (EVES, 1995, p. 107). O problema da incomensurabilidade4 de Pitágoras foi talvez a principal crise da matemática. Na perspectiva de Thomas Kuhn as crises são os motores do desenvolvimento da ciência. Essa crise da matemática surgiu a partir de um problema de medida, e consequentemente de escalas. Catelli (1999, p. 123) cita um problema semelhante ao de Pitágoras, nesse problema são criadas duas escalas, a partir de um quadrado. Uma é constituída de réplicas do lado do quadrado, a outra de réplicas de sua diagonal. Mesmo que coincidindo o início de ambas, nunca mais haverá coincidência de traços de ambas, ou seja, não existem dois números inteiros, sejam quais forem, tais que a divisão de um pelo outro gere o número π (pi). 4 Apêndice A: Pitágoras e o problema da incomensurabilidade. 23 Ilustração 1: Um quadrado girando sobre um de seus lados gera uma escala. Uma segunda escala pode ser produzida se o quadrado girar sobre sua diagonal. Aqui, parece interessante chamar a atenção do leitor para uma particularidade da noção de medida. Do ponto de vista da física, uma medida leva em geral a um “ato de medida”. O metro padrão, depositado nos porões do Palácio de Sèvres, nos arredores de Paris, é um “objeto”, construído e conservado com extremo cuidado, mas mesmo assim, um “objeto”. Entretanto, o “ato de medida” matemático não envolve uma operação, no sentido de uma manipulação “concreta” de grandezas, nem leva a um “objeto” no sentido físico. A raiz quadrada de dois é um “objeto matemático”, construível, é certo, mas num significado que é específico da matemática. A catástrofe dos incomensuráveis não seria uma catástrofe se ela se restringisse a operações concretas de medida. A catástrofe dos incomensuráveis vem de uma demonstração da impossibilidade de representar a diagonal de um quadrado por meio de um de seus lados. Essa ideia essencial de medida sob uma perspectiva essencialmente matemática não pode ser perdida de vista. A crise dos incomensuráveis, conforme Eves (2004, p. 106) nasceu pela “descoberta da existência dos números irracionais”; até então acreditava-se que todas as medidas poderiam ser expressas por um número racional. Para Schenberg (1984, p. 16) a descoberta dos incomensuráveis “foi talvez a primeira grande revolução científica da História da Humanidade”. A Academia de Platão deu continuidade aos trabalhos da Escola Pitagórica. Eudoxo de Cnido (408-355, a.C.), membro destacado da Academia de Platão é considerado por Schenberg o descobridor da teoria dos incomensuráveis, do método axiomático e do método de exaustão. A geometria de Euclides está baseada nas ideias de Eudoxo. 24 1.1.4 Euclides Autor de um dos mais importantes documentos matemáticos, a obra Os Elementos foi uma das poucas da época que sobreviveu ao tempo. No decorrer de seu texto podem ser encontradas definições que pertencem à geometria plana, como a definição de ponto (“é o que não tem partes, ou o que não tem grandeza nenhuma”), de reta, (“uma linha reta é aquela, que está posta igualmente entre suas extremidades”) e de ângulo (“ângulo plano é a inclinação recíproca de duas linhas, que se tocam em uma superfície plana, sem estarem em direitura5 uma com outra.”) (Euclides, 1944, p. 4). Essas definições permanecem até hoje na iniciação à geometria e, posteriormente são ampliadas para dar continuidade ao ensino de matemática. Euclides é considerado por muitos historiadores de matemática como pioneiro na formulação de definições da geometria. Euclides destaca-se também na geometria no espaço, que trata do estudo das superfícies descritas por uma reta ou semicírculo que gira em volta de uma reta imóvel (Dieudonné, 1990). Para realizar suas medições Euclides utilizava apenas régua e compasso, por isso esses são chamados instrumentos euclidianos. Segundo Eves (1995, p. 134) a régua euclidiana “não tem escala”. Dessa forma, Eves afirma que “com a régua permite-se traçar uma reta de comprimento indefinido passando por dois pontos distintos dados. Com o compasso permite- se traçar uma circunferência com o centro num ponto dado passando por um segundo ponto qualquer dado.”. Ilustração 2: O centro da circunferência está definido a partir do ponto P1 da reta e sua extremidade no segundo ponto P2, selecionado na reta. Uma das grandes contribuições de Euclides diz respeito a grandezas, razões e 5 Direitura: Qualidade de direito ou reto. Direção retilínea. 25 proporções. Seu texto, começa com definições simples e a partir delas demonstra diversos teoremas, fazendo dessa obra uma das principais, senão, a maior das obras matemáticas de todos os tempos. Tamanha é sua importância que, nos tempos modernos, essa obra (ou pelo menos parte dela) tornou-se um elemento básico da educação matemática em praticamente todo o planeta. Vista originalmente como um instrumento e um modelo para pesquisa em matemática e outras ciências, a obra transformou-se gradualmente no componente básico da educação padrão – uma peça de equipamento intelectual com a qual se esperava que todo jovem estudante devesse pelejar, incorporando-a depois. (OSSERMAN, 1997, p. 19) É pena que estes teoremas, utilizados até hoje no ensino fundamental e médio, muitas vezes não venham acompanhados de uma consideração atenta sobre sua historicidade, ausência de reflexão esta que escamoteia em grande parte a enorme importância que eles possuem para a matemática e a ciência modernas. É preciso destacar que grande parte do conhecimento matemático da época estava relacionado a problemas de medida e consequentemente de escalas. Mesmo sendo um tema muito antigo, permanecem até hoje algumas lacunas na aprendizagem do conceito de medida, lacunas essas localizadas na geometria, mas não somente nela, de certa forma, todas as demais áreas do conhecimento são atingidas, principalmente nas ciências naturais. Uma hipótese plausível pode ser a de que: como a medida aparece naturalmente quando a obra de Euclides é vista sob um prisma histórico, talvez esta relação se tenha ocultado justamente pela quase que total ausência do enfoque histórico no cotidiano da educação matemática. Esse tema será retomado mais adiante. Mais do que geometria, Os Elementos abordam questões relativas a toda matemática da época, aritmética, geometria e álgebra, de forma inédita e incomparável. Para Boyer (1996, p. 82) “certamente nenhuma obra matemática teve influência comparável à de Os Elementos de Euclides. Como é apropriado o nome que os sucessores de Euclides lhe deram, 'o Elementador'!”. Conforme Eves (2004, p. 176) provavelmente Os Elementos foram escritos como texto de introdução de matemática geral, pois, conforme o autor, Euclides escrevera também sobre matemática superior. O título da obra Os Elementos é discutido por Eves ao afirmar que: 26 Segundo Proclo, os gregos antigos definiam os “elementos” de um estudo dedutivo como teoremas-mestre, ou teoremas-chave, de uso geral e amplo no assunto. Já se comparou sua função à das letras do alfabeto em relação à linguagem; aliás em grego as letras recebem o mesmo nome. (EVES, 2004, p. 176) Sobre sua vida não se sabe muito, nem ao menos seu nome correto. Ele foi chamado de Euclides de Alexandria por ter fundado nessa cidade uma escola, por volta de 306 a.C. após a morte de Alexandre, o Grande. Além de Os Elementos, Boyer (1996) cita outras importantes obras de Euclides que sobreviveram ao tempo. Os Dados, que serve de complemento a Os Elementos, aborda relações entre grandezas e aponta algumas regras e fórmulas algébricas. Divisão de figuras, outra importante obra que aponta para questões relativas à divisão de figuras geométricas planas. E também Óptica, que se contrapõe ao pensamento de Aristóteles que afirmava que a imagem ia em linha reta do objeto para o olho; para Euclides, é o olho que envia raios que chegam até o objeto. A matemática nesse caso é, em princípio, a mesma, o que provoca contradições são as descrições físicas conflitantes. As ideias de Euclides para a Geometria foram, segundo Schenberg (1984, p. 16), fundamentais para a o “desenvolvimento da Física”, sendo “o principal instrumento matemático até a época de Kepler e Galileu”. 1.1.5 Arquimedes Nascido em Siracusa, uma cidade localizada na Grécia, por volta de 287 a.C., Arquimedes foi um precursor do cálculo diferencial e integral. Fez muitas descobertas importantes nas áreas da matemática e da física, dentre elas o sistema de roldanas para mover corpos muito pesados de um lugar para outro. Uma das mais famosas descobertas de Arquimedes está ligada ao princípio que leva seu nome, o qual enuncia, conforme Tipler (2000, p. 354), que “um corpo total ou parcialmente imerso num fluido sofre um empuxo que é igual ao peso do fluido deslocado.” Assim era possível medir a força que qualquer líquido exerce sobre um corpo nele mergulhado. Conta a história que Arquimedes fez a descoberta por acaso: o rei de Siracusa havia encomendado uma coroa de ouro, mas estava desconfiado de que havia prata na composição dessa, então solicitou a Arquimedes que descobrisse se a coroa era verdadeiramente de ouro. Ao banhar-se, Arquimedes percebeu que quando entrava 27 em uma banheira o nível da água subia. Muito feliz saiu correndo pelas ruas gritando Eureca! (Achei!), completamente despido. Assim foi fácil descobrir de que era feita a coroa. Arquimedes colocou uma barra de ouro puro, de massa igual a da coroa, e recolheu a água que transbordou. Depois colocou uma massa igual a da coroa só que de prata pura, verificou que o volume de água que transbordou era maior, devido à densidade da prata ser menor. Ao colocar a coroa na água percebeu que o volume da água recolhido era intermediário entre o valor que transbordou da massa de ouro e o valor da massa da prata. Assim, verificou que a coroa não era de ouro puro. É curioso notar que o problema da coroa do rei é de fato um problema de medida. Arquimedes fez ainda diversas descobertas interessantes, algumas façanhas matemáticas, conforme afirma Guaydier (1984, p.13) Arquimedes, que soube, contrariamente aos seus contemporâneos, praticar o método experimental, determinou a lei do equilíbrio da alavanca e compreendeu a sua importância, como mostra a famosa frase: <>; tirou daqui uma teoria do centro de gravidade e conseguiu indicar a sua posição nalguns casos particulares. Foi pois o fundador da estática. ... É ainda o autor de uma quantidade de invenções: cadernal, parafuso sem-fim, parafuso de Arquimedes, e sem dúvida também o aereómetro. Enfim, para defender Siracusa sitiada pelos romanos, imaginou uma enorme quantidade de máquinas e dispositivos muito engenhosos. No que diz respeito ao cálculo de áreas, Arquimedes escreveu o texto “Sobre espirais”, que segundo Boyer (1996, p. 88) fora “muito admirada mas pouco lida, pois era geralmente considerada a mais difícil obra de Arquimedes.” Essa obra utilizava principalmente o método de exaustão e, conforme afirma Boyer, apenas Arquimedes conseguiu resolver a questão de quadrar um segmento de parábola (Quadrar significa aqui medir a área de um segmento de parábola tendo como “unidade” de medida de área um quadrado de lado dado). Ele elabora assim, o axioma que leva seu nome: “Que o excesso pelo qual a maior de duas áreas diferentes excede a menor pode, sendo somada a si mesma, vir a exceder qualquer área finita dada”, eliminando, assim, o indivisível fixo, muito discutido na época de Platão. A medida de áreas bastante complexas, sem o auxílio do cálculo diferencial e integral, que nem existia na época, faz com que Arquimedes seja hoje considerado o precursor do cálculo, conforme afirma Anton (2000, p. 4) “as atuais aplicações do cálculo têm raízes que remontam ao trabalho do matemático grego Arquimedes”, mesmo que os princípios fundamentais do cálculo atual tenham sido feitos independentemente por Isaac Newton e por 28 Gottfried Leibniz. Segundo Netz e Nöel (2009) Arquimedes fez ainda várias determinações de centros de gravidade, o do triângulo, por exemplo. Mas, mais que isso, ele se serviu da ideia de equilíbrio para a determinação da área de um segmento parabólico. É uma operação de medida, mas não envolve uma “ação” concreta de medição. Essa diferença pode ser crucial na delimitação do âmbito da matemática no que diz respeito à medida. Encontra-se aqui uma noção diferente sobre o que seja medir (“representar as grandezas umas pelas outras”). Em 1998 foi realizado o leilão de um palimpsesto6, o “Códex”, um livro de orações escrito por volta do ano 1000. Posto sobre um outro texto, escrito originalmente sobre pergaminho há muito mais tempo, que havia sido previamente raspado e apagado, o texto original continha nada menos que o único manuscrito de Arquimedes conhecido até hoje que contém o livro “Corpos Flutuantes”. Além do “Corpos Flutuantes”, encontram-se lá versões de dois outros textos extraordinários, o revolucionário “Método” e o lúdico “Stomachion”, um belo e curioso jogo de montar. (Netz e Noel, 2009, pg. 12). O que há nesse livro que poderia ter interesse para esta dissertação? Os gregos deram à matemática a característica que hoje lhe é peculiar de ciência precisa e rigorosa. Mas faziam isso evitando a armadilha do infinito. Os números dos gregos eram eventualmente muito grandes ou muito pequenos. Mas nunca eram infinitamente grandes. Ou infinitamente pequenos. O infinito, tal como os matemáticos o concebem hoje, só veio a ser domado no século XIX. O “Método” trata basicamente da “medição” de objetos matemáticos. Essa medição é na verdade uma operação matemática, literal e essencialmente não experimental (não configura um ato concreto de medida), que resulta no que os estudantes de hoje denominariam de “fórmula”, a fórmula de uma área, por exemplo. Por volta de março de 2001, técnicas extremamente sofisticadas de análise de imagens permitiram uma leitura de trechos até então ilegíveis do “Códex”. Essa leitura revelou pela primeira vez que Arquimedes, para realizar esta operação de medição, havia feito uma correspondência de um para um com todos os elementos de dois conjuntos infinitos, o que mostra que, nas palavras de Netz e Noel (2009, p. 209), “Arquimedes calculou com infinitos reais, em oposição direta a tudo que os historiadores da matemática sempre acreditaram sobre sua disciplina”. Convém lembrar aqui que o instrumento de um para um7 foi o que permitiu, no final do século XIX, a estruturação do conceito de infinito. Ainda nas palavras de Netz e Noel, “trata-se de nada menos do que a pedra fundamental para a moderna Teoria dos Conjuntos”. 6 Do grego “palin”, novamente e “psan”, esfregar. O termo “palimpsesto” denomina um pergaminho que foi raspado mais de uma vez, com a finalidade de ser reaproveitado. Neste caso, os textos de Arquimedes foram raspados e, sobre eles, foram reescritas orações. 29 1.1.6 Descartes Passando vários séculos adiante, encontra-se outro grande personagem da história da matemática, cuja relação com a representação mental de escalas e medida é bastante intensa. Nascido em 1596, René Descartes viveu num dos períodos mais importantes da história da matemática. Na sua época já era possível identificar nas matemáticas o seu caráter lúdico, estético e prático, como afirma Descartes (s.d., p. 3) “as matemáticas têm invenções bastante sutis, e que podem servir muito, tanto para satisfazer os curiosos quanto para facilitar todas as artes e reduzir o trabalho dos homens.” Esses aspectos, prático, lúdico e estético estando presentes no ambiente da sala de aula nos dias de hoje podem auxiliar para que o aluno possa compreender, não só a importância do caráter histórico mas, principalmente a utilidade da matemática no cotidiano do cidadão. Mesmo não sendo considerado matemático, por ter dedicado sua vida à ciência e à filosofia, Descartes contribuiu muito para a geometria cartesiana, conhecida hoje por geometria analítica, em sua obra “La Géométrie” (um dos apêndices do Discurso do método). Segundo Boyer (1996, p. 231) Descartes inicia o capítulo com a seguinte frase: “Todo problema de geometria pode facilmente ser reduzido a termos tais que o conhecimento dos comprimentos de certos segmentos basta para a construção.” Para Descartes, a geometria não era pensada em termos de incógnitas, mas através de segmentos de medida. 7 Um exemplo simples desta correspondência de um para um é o seguinte: comparando-se o número de números inteiros com o número de números pares (Essa é, a rigor, uma operação de medida, pois comparamos grandezas de mesma espécie). Associamos ao primeiro número inteiro, 1, o primeiro número par, 2. Ao segundo número inteiro, 2, corresponderá o segundo número par, 4. E assim sucessivamente. Compando-se as duas linhas abaixo: 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11, etc 2 4 6 8 10 12 14 16 18 20 22, etc. Para cada número inteiro, existe um número par que lhe corresponde. E vice versa. A conclusão, surpreendente, é a de que o número de números inteiros é igual ao número de números pares, embora haja, num certo sentido, duas vezes mais números inteiros do que há de números pares. O infinito é difícil de trabalhar justamente pelo número de paradoxos que produz. (Netz e Noel, 2009, pg. 192). 30 1.2 ESCALAS NA HISTÓRIA DA FÍSICA “Existe pelo menos um problema filosófico que interessa a todos os homens que pensam: é o problema da cosmologia - o problema de compreender o mundo – nós inclusive – e nosso conhecimento, como fazendo parte do mundo” (Popper, 1972 apud CATELLI, 1999, p. 18). De acordo com Osserman (1997, p. 35), para os gregos, “... a Terra era uma esfera situada dentro da grande esfera de estrelas fixas, enquanto o Sol, a Lua e os planetas estavam ligados a esferas intermediárias.” Ptolomeu acreditava na forma esférica da Terra, afirmando, conforme Osserman (1997, p.35), que “... se a Terra fosse plana do Oriente ao Ocidente, as estrelas nasceriam ao mesmo tempo, para os orientais e para os ocidentais, o que é falso.” O universo dos gregos seria eterno e imutável: a abóbada celeste, os movimentos circulares perfeitos, os planetas seriam astros “errantes”, mal comportados, que não se movem como as estrelas da esfera maior. Segundo Boyer (1996, p. 36), os pitagóricos acreditavam que no centro do universo havia um fogo, no qual todos os planetas, o Sol e a Lua girariam uniformemente, as estrelas seriam fixas, e a Terra em sua revolução teria seu movimento conservando sempre a mesma face não habitada voltada para o fogo central e por isso “nem o fogo, nem a contraterra eram jamais vistos.” Essa concepção permaneceu por mais de 2000 anos, até que Copérnico demonstrou que essa ideia não era compatível com o que era observado. Para Copérnico não haveria lugar privilegiado no universo; conforme Ray (1993, p. 116) “Nem o sistema solar, nem nossa galáxia, nem qualquer outra galáxia, nesse caso, seriam considerados 'centrais' ou possuidores de um status especial no universo como um todo. O universo se expande, mas não precisa ter um 'centro' como tal”. Essa não é uma noção trivial. Como podem diversos observadores, em lugares diferentes, observarem a mesma coisa, ou seja, as estrelas se afastando do ponto em que eles se encontram? É possível fazer a seguinte analogia: inflar um balão, no qual estão pintados muitos pontos e imaginar-se sobre qualquer um desses pontos, é possível ver os outros se afastando, não importa o ponto que se escolheu! No sistema solar, o Sol seria o centro. De acordo com Copérnico (Apud. Silveira, 2002 p. 3) “... o Sol senta-se como num trono real governando os seus filhos, os planetas que giram à volta dele”. Mas essa reflexão copernicana não era novidade conforme afirma Lucie (1978, p. 52): 31 ... mil e oitocentos anos, portanto, antes de Copérnico, Aristarco enunciou corretamente a hipótese segundo a qual a Terra tinha um duplo movimento de rotação: em torno do eixo dos pólos (movimento diurno) e ao redor do Sol (movimento anual). No entanto a hipótese de Aristarco não foi aceita na época, pois agredia o modelo aristotélico firmemente estabelecido, a Terra perderia seu lugar central no universo e segundo Lucie (1978, p. 52), essa nova representação “destruía a hierarquia do Cosmos e com ela toda a filosofia erguida sobre o senso comum, sobre os lugares naturais e sobre a essência das coisas.” Além disso, como se justificaria o fato de um corpo cair no chão, se a Terra girasse de oeste para leste? E mais, se a Terra girasse ao redor do Sol, como seria possível resistir aos ventos, que seriam muito violentos? Essas e outras questões levantadas dificultavam a ordem da física, levando ao abandono do heliocentrismo de Aristarco de Samos. Por volta de 1500 d.C. Copérnico explica um modelo que substituiria Ptolomeu e tentaria explicar Aristarco. Para Copérnico os corpos não iam para o centro do Mundo, iam para a Terra porque eram semelhantes e por isso tendiam a se unir. O Sol estaria localizado entre os astros. Mesmo rejeitando a teoria de Copérnico, os astrônomos da época reconheceram que graças a sua hipótese errada, foi possível calcular os movimentos das esferas celestes. Para Lucie (1978, p. 94), apesar de ter repetido Aristarco, Copérnico surgiu como o homem que “preparou e permitiu a verdadeira revolução do século XVII. As alterações à estrutura do Universo, que propunha, não poderiam concretizar-se sem que se processasse primeiro uma renovação total na própria estrutura da epistemologia científica.” As premissas de Copérnico influenciaram as descobertas de Newton que posteriormente formalizou a ideia de universo em movimento regular. Essa breve digressão sobre Copérnico e sua imagem de mundo parece desconectada do tema central desta dissertação: as escalas e as medidas. Mas, não é bem assim. A observação dos fenômenos da Natureza, é considerada por Schenberg (1984, p. 15) o “objetivo da Física desde os tempos antigos” e seu ramo mais antigo “a Geometria”, por fornecer uma descrição quantitativa das “grandezas físicas tais como comprimentos, áreas, volumes e ângulos”. Convém lembrar: “geometria” significa medir a Terra; e como será visto mais adiante, uma das medidas mais cuidadosas da circunferência da Terra foi executada por astrônomos, por intermédio de visadas precisas a algumas estrelas, e levou a nada menos do que ao metro padrão. Esse episódio da história abre a possibilidade de considerar a interdisciplinaridade como necessidade desde os tempos antigos, pois, de acordo com 32 Schenberg, os “desenvolvimentos primitivos da Geometria estiveram naturalmente relacionados com a Agrimensura, sobretudo no antigo Egito e na Mesopotâmia.” Problemas de geometria e consequentemente de medidas, como cálculo de áreas e volumes estiveram relacionados com o desenvolvimento do Cálculo Diferencial e integral no Século XVII, tornando-se um instrumento importante para a Física Teórica, que, conforme Schenberg (1984, p. 17), permitiram “a Newton dar as equações diferenciais fundamentais da Dinâmica”. 1.2.1 O universo relógio de Newton A geometria baseia-se na prática mecânica, e nada mais é que aquela parte da mecânica universal que propõe e demonstra com rigor a arte de medir. (NEWTON, 1987, p. 151. Grifo do autor) Nascido em 1642, Isaac Newton ingressou no Trinity College em 1661. Interessando- se inicialmente pela química; após seu primeiro ano de estudo, dedicou-se também à leitura de Euclides, Galileu, Kepler, Fermat e outros. Suas primeiras descobertas foram à respeito de funções das séries infinitas. Segundo Boyer (1996, p. 269) “Newton começou a pensar, em 1665, na taxa de variação, ou fluxo, de quantidades variáveis continuamente, ou fluentes – tais como comprimentos, áreas, volumes, distâncias, temperaturas.” Uma de suas mais conhecidas descobertas foi a da atração universal, a qual havia intrigado muitos sábios. Diversas hipóteses a respeito do movimento dos planetas haviam sido propostas, mas todas constituíam-se de fato em representações intuitivas, muito vagas. Newton enuncia, então, a primeira lei do movimento (1987, p. 162) afirmando que “todo o corpo permanece em seu estado de repouso ou de movimento uniforme em linha reta, a menos que seja obrigado a mudar seu estado por forças impressas nele”, mas justifica que “os corpos maiores que são os planetas e os cometas conservam por mais tempo seus movimentos, tanto os progressivos como os circulares, por causa da menor resistência dos espaços.” Para Newton todos os corpos, sejam eles terrestres ou celestes, obedecem às mesmas leis, inclusive as estrelas, sendo assim, elas não seriam fixas como dizia Descartes. Sua obra, segundo Guaydier (1984), é considerada fundadora da mecânica celeste, por sua perfeição avançada: ... demonstrava rigorosamente que o movimento elíptico, com a lei das áreas 33 relativamente ao foco (como acontece com os planetas), é devido a uma atracção inversamente proporcional ao quadrado da distância; demonstrava a seguir a recíproca, provando assim a identidade das leis de Kepler e da sua lei da atração; concluía com o enunciado do famoso princípio da atracção universal. (GUAYDIER, 1984, p. 24) No universo de Newton toda a matéria está interligada por forças gravitacionais, mas essa força gravitacional – que age à distância e cujos efeitos se fazem notar de forma instantânea – independe de outras forças da natureza, como por exemplo, a força eletromagnética. Segundo Parker (1986, p. 17) “a mecânica newtoniana como é conhecida actualmente, baseava-se numas poucas leis simples a partir das quais se podiam fazer previsões sobre qualquer tipo de movimento.” Newton é reconhecido como um dos maiores matemáticos do mundo conforme afirma Leibniz (apud EVES 2004, p. 447), “tomando a matemática desde o início do mundo até a época em que Newton viveu, o que ele fez foi, em grande escala, a metade melhor.” A geometria euclidiana é a “métrica” do Universo de Newton. Por exemplo, no mundo de Newton, retas paralelas só se encontrarão no infinito. A soma dos ângulos internos de triângulos é 180°. Essas teorias eram excelentes para a época (e de certa forma ainda são, hoje); tudo poderia ser explicado por alguns poucos postulados, mas havia algumas limitações. Após as ideias de Newton, surgiram outras sobre a eletricidade, o magnetismo e o calor, formando o que hoje é conhecido como Física Clássica. Segundo Parker (1986, p.18) “quando os cientistas começaram a tentar aplicar a teoria clássica no domínio do átomo e no do macrocosmos descobriram que ela não dava bom resultado. Algo estava errado.” Em 1900, através de suas observações Max Plank concluiu que a luz se propagava em partes ou partículas e não continuamente como alguns pensavam até então. Em 1923 Louis de Broglie em sua tese de doutorado, sugeriu que a matéria apresentava uma dualidade onda-partícula. Conforme Parker (1986, p. 19) o júri de doutorado sentiu-se embaraçado com as ideias de de Broglie8, então chamaram um especialista para aceitar ou rejeitar a ideia, o especialista era Albert Einstein e, “para a surpresa do júri, Einstein ficou fascinado com a proposta e disse-lhes estar convencido que a idéia era correcta.” O princípio da incerteza9, 8 Segundo Serway (1996, p. 56) em sua tese de doutorado Louis de Broglie “postulou que, em virtude de os fótons terem características ondulatórias e corpusculares, talvez todas as formas de matéria tenham propriedades ondulatórias e também corpusculares”. 9 Conforme Serway (1996, p. 62) a teoria quântica prevê que “é fisicamente impossível medir simultaneamente a posição exata de uma partícula e o momento exato da mesma partícula”. O princípio da incerteza de acordo com Serway enuncia que “se uma medida da posição for feita com precisão ∆x e se uma medida simultânea do momento for feita com precisão ∆p, então o produto das duas incertezas nunca poderá ser menor do que um número da ordem de ћ. Isto é, ∆x∆p≥ ћ”. 34 como será visto a seguir, terá implicações na noção de medida. 1.2.2 O universo em evolução de Einstein Para os gregos, o universo era eterno e estático. Para Newton, ele era móvel, porém regular como um relógio. Com os estudos de Albert Einstein houve uma evolução na concepção de universo. Grande parte do que até então era tido como verdade, vai, agora, por água abaixo. Pode-se considerar o universo de Einstein como turbulento. Estrelas nascem, envelhecem, morrem. Galáxias evoluem. Matéria e energia se transformam uma na outra. No universo de Einstein, a grande descoberta seria a teoria que unificasse as quatro forças no universo: a gravitacional (a maçã de Newton caindo da macieira), a eletromagnética (que aparece, por exemplo, ao ligar um motor elétrico), a nuclear forte e a nuclear fraca (estas últimas só aparecem em escala subatômica). Três delas já foram unificadas: a eletromagnética, a nuclear forte e a nuclear fraca. Falta, paradoxalmente, a força gravitacional. No universo de Einstein até mesmo as escalas se comportam de maneira diferente. Um exemplo disso é traçar um triângulo sobre a superfície de uma esfera. Seus ângulos internos não somarão mais 180°. Retas sobre esta superfície viram geodésicas. Elas podem se encontrar e ao mesmo tempo serem paralelas, pelo menos localmente. A extensão desta imagem leva a uma outra métrica, a métrica do espaço tempo. Como é possível ver, a ideia de medida permeia as visões de mundo da civilização ocidental dos últimos três ou quatro séculos, todas elas. Essa visão de mundo, de aparência bizarra e até mesmo improvável, a partir de um certo senso comum, é a base para todas as telecomunicações do mundo atual, que em algum momento são mediadas por princípios da teoria da relatividade. O GPS é um exemplo de objeto relativístico; ele revela uma métrica fantástica. É possível saber com precisão da ordem do metro em que ponto do planeta se está, dispondo-se, por exemplo, de um telefone móvel de tecnologia recente. Tem-se aqui a prova de uma medida extremamente refinada, que seria inviável sem o concurso de uma visão de mundo “einsteniana” ou relativística, a qual se revela aqui por seu lado “métrico”. Uma outra faceta desta abordagem sumária que se faz aqui das diversas cosmologias 35 da civilização ocidental é a da necessidade de sobreposição de campos do conhecimento para que essas cosmologias se cristalizem e adquiram o necessário rigor técnico. O problema da cosmologia é interdisciplinar, uma vez que a geometria euclidiana está para o universo de Newton assim como a geometria de Riemann está para o universo de Einstein. Essa faceta interdisciplinar, como foi dito no início pela voz de Popper, é fruto da tentativa de resolver um um problema filosófico que interessa a todos os homens que pensam: o problema da cosmologia. 1.3 ESCALAS E SISTEMA INTERNACIONAL DE UNIDADES: UMA NECESSIDADE DE COMUNICAÇÃO A definição de medida está relacionada à comparação de grandezas. Medir é representar, comparar uma grandeza com outra da mesma espécie, tomada como unidade. Mas – e algumas pessoas se surpreendem ao serem confrontadas com esta noção – não é a unidade de medida que é fundamental no processo de construção das grandezas físicas ou, por extensão, da elaboração das leis físicas. A medida, essa sim, é fundamental. Ampliando-se a explicação: as leis físicas, todas elas, conservam suas estruturas sejam expressas em um ou outro sistema de unidades. Os números que representam as constantes físicas universais são diferentes, em diferentes sistemas de unidades. Mas as constantes são as mesmas. A física é a mesma. A física não é a ciência dos objetos, ela é a ciência das relações que esse objetos guardam uns com os outros. Seria então a ênfase dada às unidades de medida excessiva? A resposta, como se pretende demonstrar a seguir, é: não. E esse “não” enfático vem de um ponto de vista que não parece ser muito difícil de sustentar. O conhecimento cientifico só pode ser assim denominado após ter sido compartilhado, depois de ter sido submetido à avaliação dos pares. Pensando-se em uma ideia original: se ela diz respeito a elementos que são previamente do domínio da ciência, mesmo essa representação sendo original, o contexto no qual ela nasce já está dado. Nesse sentido, sua originalidade se dá, diria-se, por contraste com algumas noções previamente estabelecidas, seja prolongando-as, seja contestando-as (ou ambas). Refletindo- se sobre a cosmologia de Newton e a de Einstein. A segunda nasce do interior mesmo da primeira, estendendo algumas de suas ideias (o conceito de massa, por exemplo) e contestando outras (um fluxo de tempo único, universal). 36 Entretanto, e esse é o ponto que se destaca aqui, essa nova ideia só recebe o epíteto de “conhecimento científico” após ter sido submetida ao crivo dos pares. Modernamente, esse crivo se dá em especial através de publicações em meios especializados. O aceite, por parte dos avaliadores dessas publicações, é um primeiro passo para a construção da cientificidade dessas representações. O número de vezes que elas são citadas em outras publicações é outro elemento de garantia dessa cientificidade. E assim por diante. Há outros critérios de cientificidade, mas o reconhecimento pelos pares é sem dúvida um deles. Este é o ponto: o reconhecimento pelos pares envolve um processo de comunicação, o qual fica grandemente facilitado quando do uso de unidades comuns a ambos os interlocutores. Os critérios de cientificidade expressos acima dizem respeito ao assim chamado “meio científico”, já que estão diretamente associados à comunicação entre pares. O uso de unidades de medida também é de uso extensivo no meio científico, é certo. Mas não é exclusividade deste, pelo contrário, todo o comércio mundial de bens, das mais variadas espécies, em algum momento se dá pela intermediação de unidades de medida, as quais devem ser compartilhadas pelas partes. Como dissertar-se-á brevemente, o próprio metro padrão nasce dessa necessidade de compartilhar unidades comuns de medida. Por fim, observa-se que o argumento final para a demonstração do “não” expresso anteriormente. Não, a ênfase dada às unidades de medida não é excessiva, porque elas são um recurso de comunicação, seja entre pares no meio científico, seja no transcorrer de transações as mais diversas, em especial, as comerciais. A escola, nas suas várias manifestações, também se constitui num meio privilegiado de comunicação, seja de elementos ditos “científicos”, seja das implicações sociais do uso desses elementos (destacando-se aqui as unidades de medida). Procura-se então, incluir aqui uma breve digressão sobre esse meio privilegiado de comunicação: o sistema internacional de unidades. 1.3.1 Do Sistema Métrico Decimal ao Sistema Internacional de Unidades A necessidade do homem de medir vem desde a origem das civilizações. Durante um longo tempo cada povo utilizava seu próprio sistema métrico, os sistemas métricos antigos, dos quais se tem notícias, estavam predominantemente relacionados a partes do corpo humano. Mas esse sistema era difícil de ser compreendido quando havia comunicação entre comunidades diferentes. De acordo com IPEM/SP (1998) os diferentes sistemas de medidas 37 causavam problemas principalmente para o comércio, porque pessoas de diferentes regiões tinham sistemas diferentes para medir, tornando pouco confiáveis as unidades de medida devido à não correspondência entre elas. É possível comparar o problema da conversão de medidas ao problema da conversão de uma moeda em outra. A moeda não deixa de ser uma “unidade de medida” de algo. Mas, aparentemente, parece ser mais difícil definir unidades de medida de “valor das coisas” do que definir, por exemplo, uma unidade de comprimento. Esse é outro exemplo muito rico de um problema interdisciplinar. Para definir a correspondência entre uma unidade de moeda e o valor dos bens ao qual ela corresponde, precisa-se do concurso de muitas áreas do conhecimento. A economia, a sociologia, a matemática, a psicologia, a filosofia, são exemplos de algumas das áreas que poderiam contribuir de forma efetiva para essa “tentativa de correspondência” entre a unidade de moeda e o valor que ela representa. Para tentar solucionar o problema com as unidades de medida, por volta de 1789 o Governo Francês solicitou à Academia de Ciência da França a criação de um novo sistema, baseado numa constante que não tivesse relação com partes do corpo de algum membro da Família Real (em geral do Rei), unidade que geralmente era utilizada entre os povos. O problema dessa escolha era que a unidade assim gerada não era nem facilmente reprodutível, nem fornecia a exatidão necessária. Essa solicitação do governo ocorreu com a Revolução Francesa. É um evento que assume considerável relevância no contexto desta dissertação, que trata de uma visão didático pedagógica10 das escalas e das medidas. Tratou-se de um trabalho iniciado em junho de 1792, e que perdurou por sete anos, levado a cabo por dois astrônomos franceses, Delambre e Méchain, o qual resultou na definição do metro padrão. Nessa época, nos estertores da monarquia francesa, e no início de uma busca por uma igualdade (liberdade, igualdade, fraternidade ...) esses dois astrônomos partiram em busca do que na época era considerado uma utopia: um padrão comum de medida para todos os povos do mundo, baseado em algo que fosse compartilhado por todos: o globo terrestre, a “casa” de todos os povos. Segundo Alder (2003, p. 13), o sistema métrico era para ser “para todos os povos, para sempre”. Além de se constituir numa enorme força revolucionária, a Ciência também se caracteriza por fazer parte da história da humanidade pelo viés da análise de atos tão banais que via de regra sequer são notados. Pensando-se no ato de medir, o qual, pela força das 10 Pedagogia segundo Abbagnano (2000, p. 748) é a “prática ou profissão de educador; designa qualquer teoria da educação. A pedagogia contemporânea começa quando são postas de lado as pretensões opostas de reduzir o homem a espírito absoluto ou a mecanismo, e o homem começa a ser julgado e considerado como natureza, sem ser degradado o mecanismo”. 38 inúmeras repetições, torna-se absolutamente banal. Executa-se esse ato sempre que há troca de informações acuradas ou ao negociar os mais diversos objetos. Mas medir, quando pensado nesse contexto de trocas, pressupõe padrões compartilhados. E o termo “compartilhado” dá ao ato de medir uma forte conotação social. [...] o uso que uma sociedade faz de suas medidas expressa sua noção de eqüidade. Por isso, a balança é um difundido símbolo de justiça. A advertência se encontra no antigo testamento: “Não cometereis injustiça no juízo, nem na vara, nem no peso, nem na medida. Tereis balanças justas, pesos justos [...]. Nossos métodos de medição definem quem somos e o que valorizamos” (ALDER, 2003, P. 14) Nessa época, na França, estima-se que, distribuídas sob cerca de 800 nomes, abrigava-se a quantia de, aproximadamente, 250 mil unidades de pesos e medidas. Então, ao longo de 7 anos, Delambre e Méchain viajaram pelo meridiano da Terra que passa pelos arredores de Paris com a intenção de medi-lo. O arco correspondente a um quarto do meridiano terrestre (que passa por Paris), dividido em 10 000 000 de partes iguais, resultaria no metro padrão, uma das três unidades básicas do assim chamado “Sistema Internacional” (SI). Foi uma operação incrivelmente complexa, considerando-se os tempos violentos nos quais ela se desenvolveu: eram tempos de Revolução Francesa. Mas essa mesma revolução que levantou toda sorte de barreiras à consecução dessa delicada, complexa e extenuante operação de medida deu-lhe ao mesmo tempo o sopro idealista do qual ela se nutriu: direitos universais para todos e, por extensão um padrão de medida universal. Os dados por eles obtidos foram apresentados, em Paris, a uma Comissão Internacional, provavelmente a primeira conferência científica internacional. Esses mesmos dados foram “materializados” numa barra de platina, a qual existe até hoje. Conforme Alder (2003, p. 16) Napoleão Bonaparte teria dito que “as conquistas passam [...] e estas operações permanecem”. Conforme INMETRO (2002) o maior objetivo do chamado sistema métrico foi o de facilitar a comunicação entre cientistas, engenheiros, administradores. Estima-se que mais de 95% da população mundial use hoje, de forma oficial, esse sistema, e seu sucesso é apregoado como um dos grandes triunfos da globalização. Mas há um “erro” nessa definição original do metro, que seria perpetuado em cada definição subsequente. Segundo levantamentos atuais, feitos por satélite, o comprimento do arco do meridiano do pólo ao equador é de 10 002 290 m, em lugar dos 10 milhões de metros previstos. Dito de outra forma, o metro calculado por Delambre e Méchain é aproximadamente 0,2 mm mais curto. A história desse erro é contada na obra A Medida de Todas as Coisas e, no contexto 39 desta dissertação, parece ser extremamente útil considerá-la sob diversos pontos de vista. O primeiro deles é o de que o estabelecimento de um padrão para a comparação de grandezas umas com as outras é uma operação que só tem sentido em um contexto de troca, portanto, em um contexto social, onde comerciantes, cientistas, políticos, professores, artistas e muitos outros se põem de acordo para usarem todos um mesmo padrão. Mas esse padrão não é algo absoluto. A escolha da Terra como a referência para essa unidade de medida de comprimento, o metro é, como o próprio nome diz, uma escolha. Uma escolha feliz, mas é uma escolha. E a decisão de tomar a décima milionésima parte do meridiano terrestre como base também é arbitrária. Se a escolha fosse, por exemplo, dividir o quarto do meridiano terrestre em seis milhões de partes, o comprimento que daí resulta poderia ser comparável à estatura média de uma pessoa. O segundo aspecto, também extremamente relevante – já mencionado anteriormente -, é o de que a operação de medir não é dependente de um padrão. Medir é exprimir as grandezas umas pelas outras. Então, é possível - e se faz isso, com frequência - definir “padrões” diferentes conforme a medida a ser realizada. Por exemplo: uma mesa passa pela abertura da porta? Poder-se-ia, ao invés de movimentar a mesa, “materializar” sua largura por meio de, um cabo de vassoura e “transportar” esse comprimento até a porta, comparando-o à sua abertura. Essa comparação é uma medida. Entretanto, não há padrões envolvidos, exceto o comprimento do cabo da vassoura, o qual é, evidentemente, um “padrão” provisório. A mesma operação, feita com uma trena, produz um idêntico resultado (pode-se saber se a mesa passa ou não pela porta). Mas esse resultado obtido com a trena pode ser comunicado de maneira não ambígua, por telefone, por exemplo, a alguém. É claro que essa comunicação poderia ser feita também em termos do padrão provisório, o cabo de vassoura. Mas quem garante que o cabo de vassoura de quem recebe a mensagem é o mesmo da pessoa que envia? A medida traz à luz uma relação entre grandezas. E essa relação pode ser expressa das mais variadas formas, mas é sempre a mesma relação. Nesse contexto, o erro na determinação do metro padrão não tem nenhuma consequência. O metro não perde, por conta dessa diferença, seu principal atributo, que é o de poder ser reconstituído sem ambiguidade por qualquer grupo de cientistas ou engenheiros que disponham das ferramentas necessárias. E é isso que conta num processo de troca de informações que envolva medidas de comprimento. Essas considerações têm todas um evidente valor didático e pedagógico, e neste trabalho será feita a tentativa de mostrar que raramente esses aspectos são elucidados, tanto na ação do professor em sala de aula, quanto nos textos que eventualmente servem de base para o 40 seu trabalho. Mais tarde, por volta de 1837, os valores do metro padrão foram ligeiramente corrigidos, e de acordo com Oliveira (2000, p. 1) o metro foi definido como sendo a “distância medida à temperatura do gelo fundente, entre dois traços gravados em uma barra de platina irradiada”. Essa barra foi guardada no “Bureau Internacional des Poids et Mesures” (BIPM). Além do metro, foram criadas outras duas unidades de medida: o quilograma e o litro, que aos poucos foi sendo adotada por quase todas as nações, unificando o sistema de medidas. A missão do Bureau Internacional é, segundo INMETRO (2007, p. 11) “assegurar a unificação das medidas físicas”, sendo encarregado: − de estabelecer os padrões fundamentais e as escalas das principais grandezas físicas, e de conservar os protótipos internacionais; − de efetuar a comparação dos padrões nacionais e internacionais; − de assegurar a coordenação das técnicas de medidas correspondentes; − de efetuar e de coordenar as determinações relativas às constantes físicas que intervêm naquelas atividades. Em 1960, o sistema métrico foi renomeado, passando a se chamar “Sistema Internacional de Unidades, (SI)”. De acordo com o resumo do Sistema Internacional de Unidades publicado em março de 2006, o conjunto de normas evolui constantemente, buscando acompanhar as necessidades de precisão nas medições em todos os segmentos da ciência, da tecnologia e das atividades humanas em geral, a mais recente definição das unidades do SI foi estabelecida em 1983. São sete as grandezas de base do Sistema Internacional: comprimento, massa, tempo, corrente elétrica, temperatura (termodinâmica), quantidade de substância e intensidade luminosa. Todas as demais grandezas são derivadas dessas grandezas de base. 1.3.1.1 Comprimento No século XIX desenvolvia-se uma nova etapa. Como o crescimento do desenvolvimento científico e tecnológico estava ultrapassando barreiras jamais alcançadas até então, a metrologia se tornava imprescindível para o crescimento da física experimental e da indústria. E, ao final do século XIX iniciou-se a revolução científica, causando uma 41 transformação maior, não apenas nos padrões da metrologia, mas em todos os campos da ciência e tecnologia. As medidas precisavam ser cada vez mais precisas. Em 1960, conseguiu- se uma nova definição para o metro sendo baseada no comprimento de onda do criptônio 86. Essa unidade é relativamente fácil de reproduzir em um laboratório equipado e não se degrada com o tempo. E, em 1983 conseguiu-se fazer a definição do comprimento através da velocidade da luz, conforme afirma INMETRO (2007, p. 21), “o metro é o comprimento do trajeto percorrido pela luz no vácuo durante um intervalo de tempo de 1/299 792 458 de segundo”. Essa escolha implica numa adoção tácita dos conceitos que emanam de uma visão de mundo particular: aquela da teoria relatividade. A definição do metro hoje é a distância que a luz percorre, no vácuo, num intervalo de tempo igual a 1/299792458 segundos. Note-se que, em 1983, o valor da velocidade da luz foi definido como 299792458 m/s. Segundo Halliday (1993, p. 1107) um dos dois postulados da velocidade da luz afirma que “a velocidade da luz no espaço livre (vácuo) tem o mesmo valor c em todas as direções e em todos os sistemas de referência inerciais”. Um sistema inercial é um sistema não submetido a nenhuma espécie de aceleração. É, como dito acima, praticamente um ato de fé na teoria da relatividade e na visão de mundo que ela propicia. 1.3.1.2 Massa De acordo com os mais recentes padrões do Sistema Internacional de Unidades (SI) a massa está definida pela medição da massa de “um cilindro, constituído de uma liga de 90% em massa de platina e 10% em massa de irídio.” Conforme INMETRO (2007, p. 95) em razão “do acúmulo de poluentes na superfície desse cilindro a massa sofreu um aumento de 1x10 -9” (uma parte em 109). Por esse motivo só é considerada correta a massa após a “limpeza- lavagem” de uma forma específica. A unidade de massa é o quilograma (kg). Atualmente tenta-se criar um padrão de massa que não apresente esses problemas. Uma forma de fazer isso seria, por exemplo, construindo uma esfera praticamente perfeita de silício monocristalino. A massa padrão seria então definida a partir do número de átomos contido nessa esfera. Como diria o filósofo Carnap, citado na sessão 1.1.1, “se não tivéssemos primeiro a habilidade de contar, seríamos incapazes de medir.” Porém, as dificuldades técnicas para se chegar a este padrão são imensas. Mas parece que não é uma tarefa impossível. 42 1.3.1.3 Tempo De acordo com INMETRO (2007, p. 97), poucos laboratórios de metrologia do tempo conseguem realizar a unidade de tempo com alta precisão. “Para isso esses laboratórios concebem e constroem padrões primários de frequência que produzem oscilações elétricas, cuja frequência está numa relação conhecida com a frequência de transição do átomo césio 133 que define o segundo” que é a unidade de tempo aceita pelo SI. Para construir uma escala de tempo, são utilizados vários relógios em funcionamento ao mesmo instante, combinando seus dados. Para o SI (2007, p. 98), a “escala se baseia nos resultados de comparações locais de relógios, no laboratório, com uma incerteza frequentemente inferior a 100ps.” (Pico segundo: um milionésimo de um milionésimo de segundo, ou em notação científica, 1 × 10-12 s). O resultado da combinação desses relógios permite estabelecer uma escala de tempo de referência mundial, o chamado Tempo Atômico Internacional (TAI). O tempo atômico internacional é a coordenada de referência de tempo, estabelecida pelo Bureau Internacional na Hora, com base nas indicações de relógios atômicos que funcionam em diversos estabelecimentos, conforme a definição do segundo, unidade de tempo do Sistema Internacional de Unidades. (INMETRO, 2007, p. 99). Não é comum encontrar de forma direta o tempo atômico internacional. O tempo anunciado pelos meios de comunicação é fornecido numa escala de tempo chamada Tempo Universal Coordenado (UTC). O UTC é definido de tal maneira que difere do TAI em um número inteiro de segundos; a diferença ente o UTC e o TAI é igual a -31 s, em 1o de julho de 1997. Essa diferença pode ser modificada em 1 s, pelo uso de um segundo intercalado, positivo ou negativo, a fim de que o UTC permaneça de acordo com o tempo definido pela rotação da terra tal que o sol cruza o meridiano de Greenwich ao meio- dia do UTC, a menos de 0,9 s, aproximadamente, em média, durante um período de um ano. Além disso, os tempos legais da maioria dos países são defasados de um número inteiro de horas (fusos horários e horário de verão) em relação ao UTC. Os laboratórios nacionais mantêm uma aproximação do UTC designada por UTC (k) para o laboratório k. Os desvios entre UTC (k) e UTC são, em geral, reduzidos a poucas centenas de nanossegundos. (INMETRO, 2007, p. 100). Poderia parecer exagerada a preocupação em estabelecer uma base de tempo tão precisa. Entretanto, há muitas situações no estado atual da tecnologia que exigem um sincronismo o mais preciso possível. Dois exemplos: 43 1- O GPS. Sem uma base de tempo extremamente precisa, o GPS não daria as localizações com a precisão que hoje é possível, da ordem do metro, em qualquer lugar do planeta. 2- O sincronismo das transmissões via satélite. Para que o sincronismo nestas transmissões seja aceitável, a estação emissora e a estação receptora devem possuir relógios ajustados para diferenças da ordem de um milionésimo de segundo. 1.3.2 Instituto Nacional de Metrologia, Normalização e Qualidade Industrial – INMETRO O Instituto Nacional de Metrologia, Normalização e Qualidade Industrial - Inmetro - é uma autarquia federal, vinculada ao Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior, que atua como Secretaria Executiva do Conselho Nacional de Metrologia, Normalização e Qualidade Industrial (Conmetro), colegiado interministerial, que é o órgão normativo do Sistema Nacional de Metrologia, Normalização e Qualidade Industrial (Sinmetro). (INMETRO, 2009) No Brasil, após diversas tentativas de se uniformizar as unidades de medida, Dom Pedro II padronizou como sistema de medidas o sistema métrico decimal francês. Com o desenvolvimento da indústria foi necessário implantar um sistema de medidas mais eficaz e confiável, protegendo produtores e consumidores e, de acordo com o INMETRO (2009, p. 1) “em 1961 foi criado o Instituto Nacional de Pesos e Medidas (INPM), que implantou a Rede Brasileira de Metrologia Legal e Qualidade, os atuais IPEM, e instituiu o Sistema Internacional de Unidades (S.I.) em todo o território nacional”. Mas não foi suficiente, a industrialização crescia rapidamente no país, sendo necessário acompanhar a evolução tecnológica e, em 1973, criou-se, então, o Instituto Nacional de Metrologia, Normalização e Qualidade Industrial com objetivo, segundo INMETRO (2009, p. 1), de “fortalecer as empresas nacionais, aumentando a sua produtividade por meio da adoção de mecanismos destinados à melhoria da qualidade de produtos e serviços”, favorecendo os consumidores, por meio da metrologia e da avaliação da conformidade, buscando a melhoria da qualidade dos produtos e serviços. Praticamente todas as relações sociais de comércio no Brasil em algum momento são mediadas de alguma forma pelo INMETRO. A presença desse órgão no cotidiano dos brasileiros é algo muito grande, e em muitos casos passa despercebido. Os técnicos do 44 INMETRO fazem testes com produtos que são utilizados constantemente, como a resistência de brinquedos e utensílios domésticos, a resistência de sacos de lixo, o poder de bloqueamento de protetores solares, a fidelidade das etiquetas de produtos alimentícios quanto à massa, às informações prestadas sobre calorias, e assim por diante. 1.4 ESCALAS, MEDIDAS E EDUCAÇÃO Pitágoras fundamentou a matemática liberal, onde unidas a aritmética, a geometria, a música e a astronomia formavam o quadrivium. Segundo Eves (1995, p. 97) a esse grupo de matérias “se acrescentava o trivium, formado de gramática, lógica e retórica. Essas sete artes liberais eram consideradas como bagagem cultural necessária de uma pessoa educada”, mas foi Platão quem influenciou para que a disciplina se tornasse essencial para a educação do ser humano. São atribuídas poucas contribuições matemáticas à Platão. Uma das mais importantes foi a formalização da análise. Segundo Boyer (1996, p. 61), Platão observou que “com frequência convém, pedagogicamente, quando a cadeia de raciocínios que leva das premissas à conclusão não é evidente, inverter o processo.” Se uma proposição é provada como sendo verdadeira, é possível inverter o raciocínio resultando numa demonstração da proposição. Eudoxo de Cnido ressignificou o conceito de proporção, excluindo o zero e esclarecendo a definição de “grandezas de mesma espécie”. Segundo Boyer (1995, p. 62) “um segmento de reta, por exemplo, não pode ser comparado, em termos de razão, com uma área, nem uma área com um volume.” Essas definições são citadas no livro V de Euclides. Assim, “a/b=c/d se, e somente se, dados inteiros m e n sempre que manb então mc>nd. As civilizações clássicas, já a partir do século V antes de Cristo, caracterizaram-se entre outras coisas pelo florescimento das artes, da literatura, do teatro e da filosofia. Essa última contou com a lógica, entre outras disciplinas, para seu desenvolvimento; a lógica pode ser considerada um dos pilares da matemática contemporânea. Na Física, Eratóstenes (por volta de 276 – 194 A.C.) numa tentativa de descobrir os tamanhos do Sol e da Lua, chegou à conclusão que para isso era necessário saber a medida do raio da Terra. Outros, como Aristóteles, Eudoxo e Arquimedes e Aristarco já haviam calculado, mas Eratóstenes 45 conseguiu fazê-lo com uma precisão maior, o que foi uma verdadeira façanha para a época. De acordo com Boyer (1996, p. 109) observou-se “que ao meio dia no dia do solstício de verão o Sol brilhava diretamente para dentro de um poço profundo em Siene.” Simultaneamente em Alexandria, localizada no mesmo meridiano e a certa distância de Siene, foi visto que o Sol projetava uma sombra “indicando que a distância do Sol ao zênite era um cinquentavo de um círculo”. Dessa forma, Eratóstenes verificou que a circunferência da Terra era aproximadamente cinquenta vezes a distância entre Siene e Alexandria, equivalendo a cerca de 37.000 quilômetros. Arquimedes contribuiu com a Matemática e a Física por meio das demonstrações matemáticas que fez evocando o “equilíbrio” de segmentos em torno de seus centro de gravidade, um problema onde as ideias de escala, proporção e medida aparecem literalmente “à flor da pele”. Francis Bacon e o empirismo: importantíssimos na consolidação de uma corrente de pensamento que dominou (e ainda domina) muitas concepções na área da educação para as ciências e a matemática, talvez com um destaque especial para certas áreas da Física. Segundo Abbagnano (2000, p. 378) o Empirismo é uma “corrente filosófica para a qual a experiência é critério de verdade. Além disso, essa corrente reconhece que toda a verdade pode e deve ser posta à prova, logo eventualmente modificada, corrigida ou abandonada”. No contexto da Física (mas não só dela) é praticamente impossível pensar em um experimento sem associar a ele alguma espécie de medida. Na mesma época de Bacon, Comenius, considerado por muitos o pai da didática moderna, numa vocação mais idealista11 escreve um tratado - Didática Magna - que é até hoje referência. Conceitos como a importância de aprender divertindo-se são atualmente evocados e postos em prática. No caso específico da matemática e da física, Comenius (1976, p. 246) afirma que “Aumentar-se-á ao estudante a facilidade da aprendizagem, se se lhe mostrar a utilidade que, na vida quotidiana, terá tudo o que se lhe ensina. E isso deve verificar-se em todas as matérias: na gramática, na dialéctica, na aritmética, na geometria, na física, etc”. No “Plano da Escola Latina”, Comenius (1976, p. 437) fez algumas sugestões: [...] conduzindo devidamente os adolescentes por estas classes, consigamos [...] IV. Matemáticos, V. Geômetras, tanto para as várias necessidades da vida, como porque estas ciência preparam e aguçam o engenho para as outras.[...] VII. Astrônomos, versados, ao menos, nas coisas fundamentais, ou seja, na doutrina da esfera e do cômputo, pois, sem estas, a física, a geografia e a maior parte da história são cegas. 11 Conforme Abbagnano (2000, p. 607) “denomina-se idealista quem admite que os corpos têm somente existência ideal nos nossos espíritos, negando assim a existência real dos próprios corpos e do mundo”. 46 No século XIX, dentro de uma percepção realista da evolução do pensamento pedagógico, destacam-se Auguste Comte, considerado por alguns “o homem que quis dar ordem ao mundo”, fundador da corrente positivista12, e Karl Marx, com o materialismo dialético13. É curioso notar que a noção de ordem é central dentro da concepção de medida. De fato, medir grandezas é representá-las umas pelas outras, e uma consequência desse processo é o fato de ser possível “colocá-las em ordem”. Comte é sucedido por Durkheim, tido como o criador da sociologia da educação, seguido por B. F. Skinner, com sua teoria do comportamento (behaviorismo). Numa linha evolucionista o grande nome é evidentemente Charles Darwin; na psicologia do desenvolvimento encontra-se a corrente construtivista, com Jean Piaget, Emília Ferrero e Howard Gardner com suas inteligências múltiplas, e, paralelamente, Lev Vygotski, o teórico do ensino como um processo social. As considerações feitas acima sobre a importância de se ter um padrão de medida universal evidenciam sua natureza essencial, a saber, a característica de poder ser compartilhado. Um padrão de medida é, nessa acepção, um “objeto social”. Pelo lado do Marxismo e do neo marxismo, é possível mencionar Michel Foucault, crítico ferrenho da instituição escolar, e Pierre Bourdieu, investigador da desigualdade, na Europa, e Florestan Fernandes - ensino democrático - e Paulo Freire -mentor da educação para a consciência - no Brasil. Dentro da corrente idealista14, destaca-se John Dewey e sua educação progressiva, e Marta Montessori com sua escola nova. No Brasil, Anísio Teixeira e Darcy Ribeiro são nomes a destacar. Na segunda metade do século XX se desenrola uma ação didático pedagógica de grande porte, ligada ao ensino aprendizagem da matemática e à ideia mesma de medida. Dedicar-se-á a ela, a seguir, uma reflexão um pouco mais longa. 12 O Positivismo, segundo Abbagnano (2000, p. 776) foi adotado por Augusto Comte para sua filosofia, que passou a designar uma grande corrente, com numerosas manifestações em todo o mundo ocidental no século XIX. Sua característica está relacionada à romantização da ciência, sua devoção como único guia da vida individual e social do homem. 13 Conforme Abbagnano (2000, p. 651) o materialismo dialético tem seus princípios propostos por Marx e desenvolvidos por Engels. “Entende-se por essa expressão a filosofia oficial do comunismo enquanto teoria dialéctica da realidade (natural e histórica)”. 14 Termo introduzido na filosofia em meados do século XVII. Segundo Abbagnano (2000, p. 523) a referência inicial está ligada à doutrina platônica das ideias. 47 1.4.1 Georges Cuisenaire Um episódio marcante na história recente do ensino de matemática é a estratégia de ensiná-la aos jovens estudantes através de barrinhas de madeira coloridas, as réguas “Cuisenaire”. De acordo com Oliveira (2009) Georges Cuisenaire, professor de matemática belga, ensinava matemática aos seus alunos por meio de conjuntos de pequenas réguas de madeira, com comprimentos proporcionais a alguns números inteiros, e em cores bem definidas. A partir da manipulação dessas réguas, os jovens aprendiam operações de adição, subtração, produtos, divisão. Tudo em cima de operações de medida. Esse método surgiu a partir da constatação de que um aluno não conseguia desenvolver alguns conceitos matemáticos. De acordo com Márquez (1964), o professor Cuisenaire buscou, uma forma de desenvolver algo concreto que auxiliasse o aluno a compreender algumas ideias iniciais relacionadas às operações matemáticas. Para isso ele lançou mão de peças retangulares de madeira com dez tamanhos diferentes, e comprimentos de 1cm, 2cm, 3 cm, consecutivamente, até 10 cm. Cada peça foi pintada em cores diferentes. Ilustração 3: Exemplo de réguas de Cuisenaire. Fonte: o autor. Definindo como unidade a primeira peça, um cubo 1 cm x 1 cm x 1 cm, o professor realizou operações de adição sobrepondo as barras e comparando-as com as maiores. Segundo Oliveira (2009), durante 23 anos, Cuisenaire estudou e experimentou o material que criara na aldeia belga de Thuin. A partir de um encontro com outro professor, o egípcio Caleb Gattegno, é que o seu uso se difundiu com enorme êxito. O egípcio, radicado na Inglaterra, passou a divulgar o trabalho de Cuisenaire – a quem chamava de “Senhor Barrinhas”. 48 Um bom exemplo da utilização do material de Cuisenaire atualmente pode ser ilustrado nas primeiras noções de comparação entre grandezas, construindo a matemática de forma concreta. Pode-se distribuir barrinhas e pedir aos estudantes que comparem grandezas, de forma que seja possível chegar a dois tamanhos iguais, ou seja, verificando quantas barrinhas são necessárias para se chegar a um mesmo tamanho. Pela ilustração 4, pode-se concluir, nesse caso, que para chegar ao tamanho de duas barrinhas azuis, são necessárias três barrinhas vermelhas. Formalizando matematicamente pode-se dizer que 2 azuis = 3 vermelhos, ou ainda que 1 (vermelho) = 2/3 (1 azul). Ilustração 4: É possível perceber que a soma das duas barrinhas azuis é igual a soma das três vermelhas, que é igual a uma barrinha preta, poderíamos criar um sistema de “variáveis barrinhas”. Este pode ser considerado um dos fundamentos da matemática: a medida. Fonte: o autor. Um traço importante dessa experiência (que chegou ao resto do mundo como um do pilares da chamada “matemática moderna”) era a liberdade dos estudantes para criar e resolver uma enorme gama de problemas. A memorização era substituída pela experimentação O que restava eram mais modelos operatórios, e menos “decoreba”. Mais imaginação, menos regras para obedecer. As regras existiam sim, mas elas apareciam naturalmente, por necessidade, fruto de mecanismos simplificadores que iam aos poucos sendo construídos pelos próprios alunos, movidos sempre pela necessidade de resolver problemas e, raramente ou quase nunca como consequência de rotinas impostas pelo professor. Foi uma experiência notável, uma experiência didaticamente fantástica, pois, além de permitir que o aluno construa sua aprendizagem, ensina-se matemática a partir de seu âmago, de sua gênese mesma: a ideia de medida (e por extensão, pelas escalas). 49 1.5 CONSTRUÇÃO DO CONHECIMENTO EM SALA DE AULA Segundo Moraes (2003, p. 116) o construtivismo “é uma postura epistemológica que entende que o conhecimento se origina na interação do sujeito com a realidade ou desta com o sujeito, seja ela a realidade física, social ou cultural”. Dessa forma Moraes justifica a necessidade de ir além do nível individual no processo de construção do conhecimento. O construtivismo supera a abordagem empirista que afirma que o conhecimento se gera no objeto e vai além da abordagem inatista que acredita que o conhecimento está implícito, escondido no sujeito, é preciso apenas despertá-lo no indivíduo (MORAES, 2003). Para D'Ambrósio (1996, p. 19) o conhecimento é um processo constantemente elaborado, resultante de um passado que se projeta no presente e elabora estratégias para o futuro, seja próximo ou distante. Segundo D'Ambrósio (1996, p. 19), o conhecimento “que se apresenta como a interface entre o passado e o futuro, está associado à ação e à prática. [...]. O presente é o momento em que essa [inter]ação do indivíduo com seu meio ambiente [...] manifesta-se.” O conhecimento é gerado, segundo D'Ambrósio (1996, p. 26), “pela necessidade de uma resposta a situações e problemas distintos, está subordinado a um contexto natural, social e cultural”. Ao se deparar com uma situação-problema, o indivíduo vai buscar elementos que conhece na tentativa de encontrar uma possível solução. Para isso pode ser necessário o concurso de mais de uma disciplina. Essa questão será abordada no próximo capítulo. O processo histórico do desenvolvimento do conhecimento não tem uma data inicial. É provável que tenha surgido através das observações e das necessidades do ser humano. O homem foi desenvolvendo os conceitos gerando novos conhecimentos e, para conhecer com maior intensidade cada parte de um novo conhecimento surgiram disciplinas diversas. As disciplinas dividiam o conhecimento em partes, fazendo com que se possa estudar cada parte do tema. Mas essa divisão acabou por gerar um novo problema: a fragmentação do conhecimento em partes cada vez menores. No segundo capítulo será também discutido esse tema. 50 2 INTERDISCIPLINARIDADE: CAUSA OU CONSEQUÊNCIA DO PROCESSO DE ENSINO APRENDIZAGEM? Interdisciplinaridade é o conceito onde hoje se reconhecem as nossas reflexões sobre a condição fragmentada das ciências. (POMBO, 2004). O objetivo desta pesquisa, não é simplesmente discutir como se deve, ou não, trabalhar a interdisciplinaridade no contexto escolar, e sim analisar o papel das ações interdisciplinares na formação do conceito de escala do estudante. Pelo fato de a escala se constituir num objeto multiforme, passível das mais diversas interpretações, foi preciso fazer uma delimitação, focando para a formação desse conceito na matemática e na física. Para compreender as relações entre a interdisciplinaridade e o objeto estudado “escala” buscou-se apoio teórico de autores como Pombo, Paviani, Etges e Morin, fazendo uma relação com os Parâmetros Curriculares Nacionais de Matemática e Ciências Naturais do Ensino Médio15 publicados em 2002. Pois bem, escalas são representações de medida, a qual se constitui numa das origens da matemática. É preciso então analisar a gênese da matemática, mas para analisar as origens da matemática não é possível limitar-se apenas a essa disciplina, como reforça Pombo (2004, p. 148) ao afirmar que “compreende-se que a interdisciplinaridade surja hoje como um efeito correctivo, o contraponto possível a uma ciência sem unidade.” Em vista disso, buscou-se algumas definições sobre o conceito de interdisciplinaridade, analisando a fragmentação das disciplinas, os prefixos que acompanham a palavra disciplina – inter, multi e trans-, a interdisciplinaridade como uma alternativa na solução de problemas, sua importância para a educação e para o ensino de matemática e ciências e por fim, uma síntese das ideias estruturadoras das disciplinas. O que segue, portanto, são algumas reflexões sobre a interdisciplinaridade, pois essa é uma consequência, uma necessidade, e não o motor deste trabalho. 15 A documentação referida como Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) compreende as disciplinas de Ensino Médio de Biologia, Física, Matemática, Química e suas Tecnologias. É um documento que expressa a lei vigente no Brasil sobre as habilidades e competências a serem desenvolvidas nessa etapa de estudos no Brasil. 51 2.1 INTERDISCIPLINARIDADE: ALGUMAS DEFINIÇÕES Mesmo que se consulte diversos teóricos que dedicam-se ao estudo da interdisciplinaridade, não é possível encontrar uma definição concreta da palavra. Pode-se dizer que a palavra interdisciplinaridade está sendo usada demasiadamente sem um conhecimento concreto de seu significado. Pombo (2004, p. 30) afirma que a palavra interdisciplinaridade “entrou na linguagem de todos os dias e invadiu todos os espaços. (...) todos a utilizam para, com ela, qualificar os mais variados projectos e iniciativas, podendo mesmo dizer-se que, de tão vulgarizada, a palavra está gasta e vazia.” Não existe interdisciplinaridade sem disciplina. Para Paviani (2008, p. 26) “as disciplinas podem ser definidas como sistematizações ou organizações de conhecimentos, com finalidades didática e pedagógica, provenientes das ciências e, em circunstâncias especiais, de outros tipos de saberes.” Segundo Morin (2001a, p. 105) “disciplina é uma categoria organizadora do conhecimento dentro do conhecimento científico.” Para o autor a disciplina limita fronteiras, divide e especializa a área que abrange. Ela nasce de um conhecimento externo e de uma reflexão sobre si mesma. A origem da palavra disciplina, segundo Morin (2001a, p. 105), era utilizada, antigamente, para “designar um pequeno chicote utilizado no autoflagelamento e permitia, portanto, a autocrítica.” A palavra disciplina, segundo Pombo (2004, p. 4) “pode ter, pelo menos, três grandes significados: Disciplina como ramo do saber: a Matemática, a Física, [...], disciplina como componente curricular: História, Ciências da Natureza [...] e disciplina como conjunto de normas ou leis que regulam determinada atividade”. Para Pombo a definição de disciplina é tão difícil quanto a definição de suas ramificações: multi, trans, inter. 2.1.1 A fragmentação das disciplinas O dicionário Aurélio (1985, p. 165) define disciplina de seis formas diferentes: “1. Regime de ordem imposta ou mesmo consentida. 2. Ordem que convém ao bom funcionamento duma organização. 3. Relações de subordinação do aluno ao mestre. 4. Submissão a um regulamento. 5. Qualquer ramo do conhecimento humano. 6. Matéria de 52 ensino. Entrando na Filosofia, Abbagnano (2000, p. 289), apresenta dois significados distintos para a palavra disciplina: 1. Uma ciência, enquanto objeto de aprendizado ou de ensino. 2. Função negativa ou coercitiva de uma regra ou de um conjunto de regras, que impede a transgressão à regra. A palavra disciplina apresenta diferentes significados. Uma forma de compreender o significado e o desenvolvimento das disciplinas é retomar as origens da palavra. Segundo Paviani (2008, p. 30) “na Grécia antiga, por obra dos sofistas, dos primeiros cientistas e historiadores e principalmente de Platão e Aristóteles, teve início a divisão do conhecimento em disciplinas.” Num breve percurso histórico, verifica-se na Antiguidade o conhecimento era divido em disciplinas: o trivium e o quadrivium. O primeiro, segundo Boyer (1996, p. 49) abordando a “aritmética (ou números em repouso), geometria (ou grandezas em repouso), música (ou números em movimento) e astronomia (ou grandezas em movimento)” e o segundo “consistindo de gramática, retórica e dialética”. Essa divisão era metodológica, e o conhecimento era visto em sua totalidade conforme afirma Jaeger (1989, p. 256). As Mathemata representam o elemento real da educação sofística; a gramática, a retórica e a dialética, o elemento formal. A posterior divisão das artes liberais no trivium e no quadrívium depõem também a favor daquela separação em dois grupos de disciplinas. A diferença entre a função educativa de cada um dos dois grupos tornou-se permanente e notória. O esforço para unir os dois ramos baseia-se na idéia da harmonia ou, como em Hípias, no ideal da universalidade; mas nunca se trata de alcançá-lo pela simples adição. (1989, p. 256) A educação na Grécia tinha o ideal de formar o cidadão que dominasse todas as artes, podendo com elas conhecer a natureza, a sociedade16 e a si próprio, mantendo o equilíbrio nas relações. O conhecimento (destacando-se o conhecimento filosófico) surgia a partir da dúvida. Conforme Giotto (2004, p. 111) “na busca do entendimento humano e de seus fenômenos, o povo grego iniciou-se no conhecimento filosófico, o qual teve como ponto de partida a inquietação e a dúvida.” Buscava-se o entendimento do todo, do conjunto, da ordenação do cosmos. A filosofia seria a forma de compreender as inquietações do homem. “A filosofia nasce como conhecimento racional da ordenação do mundo, o cosmos, para os gregos.” Essa forma de compreender o mundo permanece até o século XVI, quando surge uma nova visão de mundo. Nasce a filosofia moderna, com o racionalismo clássico através de pensadores como Galileu, Descartes, Bacon, Pascal, Hobbes, Spinoza. 16 Dambrósio (1999, p. 98) define sociedade “como um agregado de indivíduos (todos diferentes) vivendo num determinado tempo e espaço, compartilhando valores, normas de comportamento e estilos de conhecimento, isto é, cultura, e empenhados em ações comuns.” 53 Galileu (1987) é considerado precursor da física moderna, através das leis fundamentais do movimento. É destaque na filosofia por seu método de observação dos fenômenos. Através desse método, os fenômenos são analisados isoladamente, livre de crenças religiosas. O método galileano consiste na experimentação, verificando sua legitimidade através da exposição do fenômeno a determinadas circunstâncias. Para o pensador o conhecimento da natureza só é verdadeiro se demonstrado matematicamente. Esses princípios abalaram a ideia de que o mundo possui uma estrutura finita e ordenada. O objetivo de Descartes era conhecer o homem e sua natureza. De acordo com Giotto (2004, p. 114) “para Descartes o homem é um ser dual, que pensa e tem um corpo, semelhante a uma máquina [...], e todos os processos corpóreos obedecem às suas próprias leis. O mundo do pensamento, do espírito, res cogitans, e o mundo material, do corpo, res extensa, estão interligados, mas a alma encontra-se fora do corpo, sendo ela que oferece a este o anima.” Dessa forma de pensamento, fragmentada, nasce a ciência moderna e, conforme Lück (1994, p. 37), “a disciplina (ciência), entendida como conjunto específico de conhecimento com características próprias, obtido por meio de método analítico, linear e atomizador da realidade.” Produzindo um conhecimento aprofundado, porém parcial, que Lück define como “as especializações”. Para Foucault (1979, p. 105-106) os mecanismos disciplinares são antigos, “mas existiam em estado isolado, fragmentado até os séculos XVII e XVIII, quando o poder disciplinar17 foi aperfeiçoado como uma nova técnica de gestão dos homens.” Esse autor vê a fragmentação das disciplinas como uma forma de “melhorar” o desempenho das atividades dos seres humanos através do controle. A interdisciplinaridade surge em meados do século XX como alternativa para promover o diálogo entre os saberes, diante da fragmentação do conhecimento que chega aos dias atuais apresentando uma crescente manifestação das especializações, cada vez mais surgem especialistas em fragmentos menores, perdendo a compreensão da totalidade do universo. Observe-se que essa não é uma crítica às especializações, pois essas são responsáveis por grande parte do que se sabe atualmente. Também se tem consciência de que seria impossível conhecer tudo sobre todas as áreas do saber. O que se pretende com essa reflexão é apenas rever o olhar sobre as demais disciplinas, tentando estabelecer um diálogo entre as diferentes áreas do conhecimento. 17 Foucault interpreta a disciplina como um “exercício de poder”, citando os mosteiros e a escravidão como modelos de mecanismos disciplinares. 54 2.1.2 Inter, trans e multidisciplinaridade: a disciplina e seus prefixos A disciplina apresenta diversos prefixos, o que esse trabalho destaca é o prefixo inter, mas é interessante conhecer os diferentes prefixos que acompanham a palavra disciplina e que estão sendo fortemente discutidos atualmente. Na perspectiva de Piaget (1972) a multidisciplinaridade ocorre quando, para resolver determinado problema se faz necessário o uso de mais do que uma disciplina, apenas como ferramenta, não enriquecendo ou alterando a mesma. Dessa forma a multidisciplinaridade acaba muitas vezes sendo apenas uma justaposição de disciplinas, sem cooperação entre elas. Piaget (1972) afirma também que a transdisciplinaridade é a interação de várias disciplinas, uma etapa superior à interdisciplinaridade que atingiria algo além das investigações especializadas, um sistema total e sem fronteiras, unindo diversas possibilidades através de transformações regulares e definidas. Já a interdisciplinaridade é definida por Piaget (1972) como uma forma de intercâmbio mútuo e interação entre as ciências, enriquecendo-as reciprocamente. Paviani (2008, p. 109) afirma que “o conceito de interdisciplinaridade pode ser entendido como uma maneira de integração entre as ciências e as disciplinas, e a transdisciplinaridade como a integração entre as formas de conhecimento: o mito, o místico, o religioso, o artístico, o científico e o empírico.” O que provoca o surgimento desses prefixos, não é o fato de que alguns pesquisadores se reúnem para debater sobre determinado problema, é o surgimento de um problema que precisa de mais do que uma especialidade ou disciplina para ser resolvido. Dessa forma, segundo Paviani (2008, p. 29) a multi e a interdisciplinaridade “são uma condição constante do conhecimento teórico em seus diversos estágios de desenvolvimento.” Então, em face do exposto, pode-se afirmar que a interdisciplinaridade surge como necessidade ao tratar-se de um problema complexo. 2.1.3 A interdisciplinaridade como uma possível alternativa na solução de problemas complexos Uma forma de definir o que é um problema complexo é identificar uma definição 55 para problema. Para Catelli (1999, p. 150) “ter problemas não é em geral algo que se deseje, não é agradável! Normalmente procura-se evitar problemas...”. Mas frequentemente as pessoas deparam-se com problemas que precisam resolver. Na escola os professores propõem problemas para resolver, esses problemas em geral são predominantemente extrínsecos, predomina o meio, e em geral não levam à interdisciplinaridade. Quando o ser humano se depara com um problema que o deixa desconfortável, que faz com ele tome decisões, buscando uma solução, está diante de um problema intrínseco, nesse caso é o sujeito quem comanda, é ele quem sente a necessidade de resolver o problema. Catelli (1999, p. 154) afirma que “um problema não é então um exercício de familiarização, é um desequilíbrio, uma ruptura!” Einstein, segundo Morin (2005, p. 49) tinha um problema intrínseco que provavelmente levou-o às suas descobertas, “Einstein dizia de si mesmo: Eu era uma criança retardada. O tempo sempre me deixava estupefato, enquanto os outros achavam o tempo muito normal.” É um problema de questionamento pessoal, mas muito real. O que normalmente encontra-se no cotidiano escolar são problemas extrínsecos, que não se inserem em contextos que envolvam o aluno e não despertam sua curiosidade. Já os problemas intrínsecos, segundo Catelli (citação privada), “os problemas que partem do interior dos próprios estudantes, parecem contribuir de maneira muito mais efetiva para o desenvolvimento de uma conduta autônoma e criativa.” Tomada brevemente uma possível definição do que possa ser um problema, pode-se identificar nela a necessidade de uma definição de complexidade. Segundo Petraglia (1995, p. 46) a palavra complexidade, para Morin, lembra problema, e não solução. O pensamento complexo é capaz de considerar todas as influências recebidas: internas e externas. É capaz de enfrentar “a confusão, a incerteza, a contradição” e, simultaneamente, conviver com a “solidariedade dos fenômenos existentes em si mesmo”. O todo é uma unidade complexa, pois, de acordo com a autora, o todo vai além da soma das partes, uma parte entrando em contato com outra modifica-se e modifica o todo. O todo organizado é alguma coisa a mais do que a soma das partes, porque faz surgir qualidades que não existiriam nessa organização; essas qualidades são “emergentes”, ou seja, podem ser constatadas empiricamente, sem ser dedutíveis logicamente; essas qualidades emergentes retroagem ao nível das partes e podem estimulá-las a exprimir suas potencialidades. Assim podemos ver bem como a existência de uma cultura, de uma linguagem, de uma educação, propriedades que só podem existir no nível do todo social, recaem sobre as partes para permitir o desenvolvimento da mente e da inteligência dos indivíduos. (MORIN, 2005, p. 180) 56 A complexidade pode ser comparada ao exemplo de Pascal (2006, p.28-29) sobre a associação das partes que constituem o todo. Para ele, “vinte mil homens formam um exército, embora nenhum deles seja exército”, o todo (exército) modifica as partes (homens), mesmo que nenhuma das partes seja o todo ou, que nenhum dos homens seja exército, a união das partes, diante de um propósito comum, forma o exército. No campo da física, a complexidade começa a destacar-se no século XIX com relação onda-partícula. Segundo Morin (2005, p. 33-34) “a microfísica desembocava não apenas numa relação complexa entre o observador e o observado, mas também numa noção mais do que complexa, desconcertante, da partícula elementar que se apresenta ao observador ora como onda, ora como corpúsculo.” Petraglia associa a complexidade com a música (1995, p. 49) ao afirmar que a “música é mais do que a junção de sons ou notas musicais distintas.” Ela congrega três elementos básicos: o ritmo, que é a associação do tempo com o movimento, a melodia que é a associação dos sons e a harmonia que é o conjunto de regras para o uso de sons sucessivos e simultâneos. Esses elementos ainda recebem a interpretação do músico, que dá significado particular à música. Morin (1987, p.15) defende a ideia de que o conhecimento é “um fenômeno, multidimensional, no sentido em que é, de maneira inseparável, ao mesmo tempo físico, biológico, cerebral, mental, psicológico, cultural, social”. Um exemplo de problema complexo voltado à Geometria é citado por Pascal (2006, p. 25) sobre a indivisibilidade do infinito. Para ele “por maior que seja o movimento, o número, o espaço, o tempo, sempre há um maior e um menor, de modo que todos eles se sustentam entre o nada e o infinito, estando sempre infinitamente distantes dessas extremidades”. Problemas complexos não são em geral os problemas de aula. São exemplos de problemas complexos: a disponibilidade de energia numa determinada região, problemas de poluição, o problema da violência na escola e na sociedade em geral, o problema da interdisciplinaridade versus a disciplinaridade, etc... A interdisciplinaridade está presente na educação18 de maneira concretizada, não é possível entender qualquer fato com o conhecimento de apenas uma disciplina específica. Seja em sala de aula, seja em pesquisas sobre qualquer conteúdo científico. Trata-se de uma visão total do objeto, de uma maneira que se possa entender a função do conjunto e não apenas o estudo de um determinado elemento. Pombo reforça essa ideia ao afirmar que: 18 No item 2.3 tentar-se-á uma possível definição de Educação no contexto escolar. 57 Sabemos que grande parte da Química que hoje conhecemos seria impossível sem os desenvolvimentos da Física Quântica, que os dispositivos matemáticos de Riemann foram decisivos para a Física da Relatividade de Einstein, a Biologia de Darwin é devedora da Economia concorrencial de Smith e Malthus. (2004, p. 141). Para construir o conhecimento são necessários vários elementos, que são encontrados não somente em uma ou duas disciplinas, mas em diversas áreas que muitas vezes estão amarradas por uma série de conceitos, que, naquele momento, não estão explicitados diretamente ou ainda não foram analisados sob um olhar específico de uma determinada investigação. A construção do conhecimento de acordo com Micotti (1999, p. 158) leva em consideração “o significado que as atividades têm para o aprendiz. Para que um indivíduo consiga se apropriar do saber, este deve ter sentido para este indivíduo, corresponder aos seus interesses”. E os interesses normalmente não ficam restritos à determinada disciplina, o ser humano pensa em problemas, ou conforme Micotti, em questões que o auxiliem a se compreender e a compreender o meio em que vive. A divisão em disciplinas do processo de ensino pode resultar em obstáculos para pesquisa científica; em geral é preciso analisar cada parte do objeto a ser estudado para depois ver o todo que se forma. A ciência chegou a um ponto tal, que não se pode mais ficar somente presa a esse modelo, é necessário analisar o todo. A ideia de medida participa da sustentação de todas as disciplinas que almejam o status de científicas. Isso porque, segundo Catelli (1999, p. 103) “o que não se mede, não pode ser objeto de ciência”. Por exemplo, a Física é a ciência das medidas, das relações entre grandezas, e a matemática tem a medida como base da maior parte de suas aplicações. Uma parte de algumas disciplinas se estrutura a partir da ideia de medida, ou seja, não é a medida que se estrutura a partir da Matemática ou da Física, mas é ela que precede o advento das disciplinas. A impossibilidade de medir pode enfraquecer as disciplinas ditas científicas, a ponto de poder contribuir até mesmo para sua extinção. Um exemplo recentíssimo é a teoria das cordas, na física. Há cientistas que a acusam de não ser de fato uma teoria física, haja visto a impossibilidade, pelo menos até o momento, de derivar dela possibilidades de medida. E é de certo modo surpreendente: a propriedade estruturadora que a noção de medida possui, em grau altíssimo na matemática e na física, brilha pela sua ausência, seja nos livros didáticos, seja nas falas dos professores como será demonstrado, no capítulo 3. A adoção da interdisciplinaridade apresenta alguns riscos no contexto da escola e na educação de maneira geral. Hoje há muitos conceitos diferentes sobre interdisciplinaridade, 58 isso acaba muitas vezes por distorcer o sentido da palavra. Paviani, afirma que diante de tantos conceitos é preciso ter cuidado com as interpretações, pois a palavra acaba muitas vezes sendo entendida de forma incorreta. Se de um lado a interdisciplinaridade pode significar uma estratégia de flexibilização e integração das disciplinas, nos domínios do ensino e da produção de conhecimentos novos, da pesquisa, de outro lado, ela pode tornar-se um mal entendido, especialmente quando é assumida como uma meta ou solução absoluta e autônoma, anulando totalmente existência das disciplinas. (2008, p. 7) Não se trata de extinguir as disciplinas do contexto escolar. Como se pode perceber a palavra interdisciplinaridade vem de disciplina, o que está sendo focado aqui é uma forma de relacionar as disciplinas a partir de um determinado problema. Paviani (2008, P. 18) afirma ainda que “... a interdisciplinaridade não é um fim que deva ser alcançado a qualquer preço, mas uma estratégia, um meio, uma razão instrumental, uma mediação entre a unidade e a multiplicidade, entre as partes e o todo.” Uma definição começa a emergir é a de que a interdisciplinaridade nasce da tentativa de resolução de um problema complexo. Dentro dessa perspectiva várias disciplinas são “chamadas” a se manifestarem, dando-lhes voz na tentativa de compreender o problema. Nessa acepção, a interdisciplinaridade “aparece” sempre depois de conhecer o problema e não antes. Não se aprende interdisciplinaridade para depois utilizá-la. Ela surge como necessidade metodológica, como estratégia de organização na tentativa de uma solução do problema. 2.2 A INTERDISCIPLINARIDADE COMO INTEGRADORA DE CONHECIMENTO Segundo Pombo (2004, p. 133) o acelerado crescimento científico do último século gerou uma “crescente fragmentação e especialização do universo do conhecimento.” Para Pombo esse desenvolvimento da especialização resultou na organização das ciências, tal como encontram-se atualmente. A especialização do conhecimento é característica do desenvolvimento do conhecimento científico e, de acordo com Pombo, é “condição de possibilidade do progresso do conhecimento em geral”, pois delimita o objeto a ser investigado e aumenta o rigor e a profundidade da análise. A redução de um problema a uma determinada disciplina facilita a visão do cientista, permitindo-lhe aprofundar o conhecimento sobre seu objeto de estudo, abrindo caminhos para os demais pesquisadores da sua área de 59 investigação. A interdisciplinaridade surge como uma forma de integrar os conceitos às disciplinas, enriquecendo as ciências e buscando, conforme afirma Thiesen (2008, p. 545), “responder à necessidade de superação da visão fragmentada nos processos de produção e socialização do conhecimento”. O conhecimento científico conduz via de regra à evolução do saber do ser humano. Hoje é possível medir, pesar, analisar sob vários aspectos o universo. Porém, ao mesmo tempo em que a ciência pode ser libertadora, questionadora, enriquecedora, ela acolhe aspectos nem tão positivos. A especialização excessiva pode ser um deles. Para Morin (2001, p. 16) “o desenvolvimento disciplinar das ciências não traz unicamente as vantagens da divisão do trabalho [...], mas também os inconvenientes da superespecialização: enclausuramento ou fragmentação do saber”. As ciências estão em constante evolução, o que dificulta uma caracterização específica de cada uma. O que parece ser mais viável é o estreitamento de relações entre elas, tornando-as assim mais próximas. Não se trata de excluir disciplinas, e sim de sistematizar determinados conteúdos, a fim de deixar mais acessível ao educando o entendimento do objeto estudado. É uma forma de mediar a comunicação. Conforme Etges (1994, p. 74) “a interdisciplinaridade é um elemento mediador de comunicação, primeiro, do cientista consigo mesmo quando traduz para si mesmo o construto que ele criou ou utiliza, e, segundo das diferentes disciplinas ou construtos entre si, bem como entre estes e a linguagem do cotidiano, do senso comum”. A interdisciplinaridade pode ser considerada um movimento natural, espontâneo, a tal ponto que a consciência de sua presença nem sempre seja explícita. O ser humano existe como integrante de um mundo complexo, precisa dar sentido à sua vivência, constrói assim sua percepção de mundo. Partindo de uma visão de cidadão comum, que precisa se situar como parte de um todo, ou como leitor de um jornal ou atento a qualquer outro meio de comunicação que aponta dados estatísticos sobre os problemas que afetarão direta ou indiretamente sua vida pessoal, como por exemplo, a taxa com que está aumentando a temperatura da Terra, ou a taxa de desemprego em sua cidade. Conversar, discutir, dialogar sobre um assunto, não são ações que possam caracterizar uma conduta conscientemente interdisciplinar, pode-se dizer que essas ações contêm elementos que são próprios de determinadas disciplinas, por exemplo: − ao falar da camada de ozônio, são necessários elementos da química e da física; − ao comentar a diferença de temperatura de determinado mês, em relação ao mesmo 60 período de anos anteriores, são necessários elementos da estatística, da geografia; − quando se fala sobre determinada cultura que não sobrevive mais em dada região se faz necessária a presença da biologia, da geografia. A interdisciplinaridade possibilita a integração do que está sendo estudado em determinadas disciplinas, enriquecendo os domínios do saber. Assim, nos casos citados acima podem-se utilizar dados matemáticos, para compreender a geografia, a biologia, e a sociedade em geral. A interdisciplinaridade é definida por especialistas como a interação existente entre duas ou mais disciplinas. Essa interação pode ir da simples comunicação de idéias à integração mútua de conceitos diretores da epistemologia, da terminologia, da metodologia, dos procedimentos, dos dados e da organização referentes ao ensino e à pesquisa. (PIRES, 2000) Para que um saber, interdisciplinar ou não, se torne cientificamente válido, é necessário submetê-lo a um processo de verificação pela comunidade científica. Conforme Morin (2005, p. 40) para que um conhecimento seja considerado científico “é preciso que haja uma grande atividade crítica mútua, é preciso que as teorias se confrontem, que existam pontos de vistas diferentes”. Segundo Machado (1993, p. 24) é cada vez mais difícil enquadrar um fenômeno científico em uma única disciplina e quando este se fecha em apenas uma área, torna-se fragmentado, levando a “um fechamento no discurso, o que constitui um obstáculo na comunicação e na ação.” Da mesma forma, é possível perceber que os conteúdos das disciplinas escolares ficam longe de uma limitação em apenas uma área. Hoje, a Física e a Química esmiuçam a estrutura da matéria, a entropia é um conceito fundamental na termodinâmica, na Biologia e na Matemática da Comunicação, a Língua e a Matemática se entrelaçam nos jornais diários, a propaganda evidencia a flexibilidade das fronteiras entre a Psicologia e a Sociologia, para citar apenas alguns exemplos. Em conseqüência, a idéia de interdisciplinaridade tende a transformar-se em bandeira aglutinadora na busca de uma visão sintética, de uma reconstrução da unidade perdida, da interação e da complementaridade nas ações envolvendo diferentes disciplinas. (MACHADO, 1993, p. 24) 61 2.3 A INTERDISCIPLINARIDADE E SUA IMPORTÂNCIA PARA A EDUCAÇÃO De acordo com D'Ambrósio, a cultura ocidental valoriza prioritariamente o intelecto sem relação com as funções vitais do ser humano. Essa separação de corpo e mente remete-se a filosofia cartesiana de Descartes que separa o trabalho mental do manual, privilegiando, muitas vezes, uma aprendizagem baseada na repetição. O autor define a educação nessa perspectiva como um modelo Taylorista que trata o aluno como se estivesse em uma esteira de montagem (a escola), ao passar pela esteira o produto (aluno) vai gradualmente sendo montado pelos operários treinados (professores) para realizar o trabalho em tempo determinado (séries), passa por controle de qualidade do produto (avaliações) e chega ao final da esteira de produção pronto (alcançando objetivo da educação). Esse modelo, de acordo com D'Ambrósio “nada mais é do que um treinamento de indivíduos para executar tarefas específicas.” Assim, tendo capacidade de realizar trabalhos de rotina, porém inibindo seu potencial crítico, o estudante pode não se sentir plenamente participante da sociedade na qual está inserido. A educação, conforme D'Ambrósio (1996, p. 68), deve ser “uma estratégia da sociedade para facilitar que cada indivíduo atinja o seu potencial e para estimular cada indivíduo a colaborar com os outros em ações comuns na busca do bem comum”. Segundo o autor, essa estratégia é desenvolvida para atingir seu potencial criativo e para estimular e facilitar a ação comum, para se viver em sociedade e praticar a cidadania. Nessa perspectiva, a educação “pede” uma definição interdisciplinar, uma vez que ela aparece em diferentes contextos: escola, livros, família, mídia, cada contexto apontando para uma visão do que ela possa ser. 2.3.1 Educação para compreender e interagir com o mundo Para Aranha (1996, p. 50) a educação “é fator importantíssimo para a humanização e a socialização”. A educação pode ser vista então como uma forma de transmissão da herança cultural, adequando-se ao novo e rompendo-se com o velho. A educação torna-se então uma forma de mediação entre o indivíduo e sociedade. Na perspectiva de Aranha, o ser humano se desenvolve integralmente através da educação, o educando organiza sua visão confusa e 62 fragmentada, desenvolvendo habilidades e uma personalidade social. A educação, conforme Aranha (1996, p. 51) é um processo que deve instrumentalizar o educando a ser “capaz de agir sobre o mundo e, ao mesmo tempo, compreender a ação exercida”. Sob essa óptica, a educação não é um processo neutro, ao contrário, está carregada das concepções da cultura a que pertence, da política, dos valores; esses são exemplos de fatores que determinam o processo educativo. Da mesma forma, a Educação abre caminhos para a crítica e a oposição às certas imposições que emanam da sociedade. Paviani (2008, p. 108) reforça o pensamento de Aranha afirmando que para entender a educação é preciso ir além do âmbito educacional. Nos dias de hoje “... a educação não mais pode ser examinada e compreendida como um fenômeno isolado. Mais do que nunca, o econômico, o social e o político, como o ético e o estético e o religioso efetivam as complexas camadas das relações educacionais.” Para o autor “a educação consiste num processo de integração dos saberes”, numa construção inter e transdisciplinar. D'Ambrósio (1996, p. 86) complementa Aranha e Paviani afirmando que “estamos numa sociedade do conhecimento” e por isso a responsabilidade do professor vai além de sua disciplina. Mas as disciplinas “conversam” entre si? Parece que o hábito de fazer as disciplinas “conversarem” remete apenas a disciplinas ditas “diferentes entre si”, mas as partes das disciplinas também pouco conversam, isso talvez explique a resistência quase natural à interdisciplinaridade. Um exemplo disso são os pré-requisitos das disciplinas. Para aprender cálculo quatro, são necessários conhecimentos dos cálculos um, dois e três, da mesma forma, o cálculo três só conversa com o dois e com o quatro... Percebe-se que o primeiro nível da interdisciplinaridade é a interdisciplinaridade dentro da mesma disciplina. Os Parâmetros Curriculares Nacionais (2002), salientam a importância da integração dos saberes, quando afirmam que as disciplinas devem ser trabalhadas numa perspectiva integradora, tornando-se mais acessível uma articulação entre as disciplinas de uma mesma área do que entre áreas diferentes. Assim, ao procurar conceitos semelhantes nas disciplinas de uma mesma área, é possível articular esses conceitos e formular um programa de trabalho mais agradável e interessante, auxiliando o estudante a compreender conceitos presentes no cotidiano escolar na matemática e nas ciências naturais, como por exemplo, escalas, grandezas e unidades de medida. 63 Também alguns conceitos gerais nas ciências, como os de unidade e de escala, ou de transformação e de conservação, presentes de diferentes formas na Matemática, na Biologia, na Física e na Química, seriam muito mais facilmente compreendidos e generalizados, se fossem objeto de um tratamento de caráter unificado feito de comum acordo pelos professores da área. (BRASIL, 2002a) Para que haja uma convergência entre as disciplinas, uma alternativa é que se faça um plano pedagógico que articule as disciplinas de todas as áreas tendo como meta atingir aos objetivos da comunidade escolar. No Ensino Médio as disciplinas são aprofundadas em seu caráter específico, mas sempre que possível podem ser integradas, proporcionando uma aprendizagem mais significativa, onde o aluno possa aplicar o conhecimento aprendido na sua vida, em benefício próprio e da sociedade e possa ainda compreender a si mesmo e o meio onde vive. Para os PCN (Brasil, 2002, p. 8) mesmo sendo importante uma demarcação disciplinar, “é preciso desenvolver uma articulação interdisciplinar, de forma a conduzir organicamente o aprendizado pretendido.” Para entender problemas complexos, como o aquecimento global, por exemplo, são necessários conhecimentos da Física para compreender o conceito de energia, da Química para entender o processo de combustão, da Biologia para verificar as consequências do aquecimento para o meio ambiente, e vai além das Ciências Naturais, pois para compreender a relação do aquecimento global e sua relação com o ser humano são necessários conhecimentos das Ciências Humanas. Dessa forma, conforme os PCN (Brasil, 2002, p. 9), mesmo tratando-se de uma determinada disciplina, uma perspectiva mais abrangente de um problema pode “transbordar os limites disciplinares”. Nesse contexto os fundamentos das ciências são considerados essenciais, mas estudá-los pode ser uma atividade disciplinar. Porém, frequentemente comenta-se que, para se desenvolver uma atividade interdisciplinar é necessário conhecer com profundidade a Física, toda a Química, toda a Biologia, toda a Matemática e assim por diante. Esse é um projeto impossível! Uma alternativa é focar a disciplinaridade para os fundamentos dessas disciplinas com a intensão de fazê-las “conversarem”. A disciplinaridade sob essa óptica se torna um elemento chave para promover a interdisciplinaridade. O plano pedagógico da escola tem por necessidade propiciar formas que auxiliem o aluno a compreender sua realidade, preparando-o para compreender o mundo. Dessa forma, o desenvolvimento da sociedade pode depender do que está sendo proposto pela escola, de como ela está preparando o aluno para a vida e vice-versa. Cada disciplina deve ser vista como integrante dos saberes necessários a uma educação que permita que o cidadão tenha entendimento do mundo que vive. Para isso, torna-se necessário que o aluno compreenda os fundamentos das ciências. Segundo Etges (1995, p. 77), só através da interdisciplinaridade é 64 possível integrar “o mundo do vivido, do analógico, do imediato”, dissolvendo-os e transformando-os em “estruturas de pensamento, de ciência, de conhecimento”, promovendo um sistema formal e autônomo do pensamento, sistema esse que é almejado pelos Parâmetros Curriculares Nacionais: ... o aprendizado deve contribuir não só para o conhecimento técnico, mas também para uma cultura mais ampla, desenvolvendo meios para a interpretação de fatos naturais, a compreensão de procedimentos e equipamentos do cotidiano social e profissional, assim como para a articulação de uma visão do mundo natural e social. Deve propiciar a construção de compreensão dinâmica da nossa vivência material, de convívio harmônico com o mundo da informação, de entendimento histórico da vida social e produtiva, de percepção evolutiva da vida, do planeta e do cosmos, enfim, um aprendizado com caráter prático e crítico e uma participação no romance da cultura científica, ingrediente essencial da aventura humana. (PCN, BRASIL, 2002, p. 7) Numa sala de aula, os elementos que levam à interdisciplinaridade, deveriam idealmente ser trazidos pelos estudantes. Essas manifestações por parte dos estudantes, quando estimuladas, tornam-se frequentes e, num certo grau, impossíveis de serem consideradas na sua totalidade. Mas se esses elementos são trazidos pelos alunos, fica garantida (pelo menos preliminarmente) sua significação. A partir do momento em que o aluno cria suas estruturas lógicas de pensamento, cabe ao educador impulsioná-lo a avançar e decodificar o conhecimento para sua vida pessoal, re- significando seus saberes escolares em saberes do cotidiano. Para Etges (1995, p. 78) quando o aluno não cria essas estruturas “fica sendo uma máquina de algoritmos, de regras, de leis, etc. Torna-se um cidadão rígido, sem alma.” A interdisciplinaridade nesse contexto pode ter a função de criar novos construtos, promovendo a liberdade do cidadão, fazendo com que saiba tomar decisões e agir de forma inovadora. ...uma vez que o educando adquiriu as estruturas fundamentais do pensar científico, verá que os construtos se entendem por si mesmos, porquanto as relações são necessárias. [...] a multiplicidade de construtos postos à disposição de nossos jovens e adolescentes os põe em condições de escolher o que lhes é mais adequado. A liberdade de escolha é fundamental neste estágio de desenvolvimento do educando e está em acordo com a lógica da produção do saber. (Etges, 1995, p. 80). Para adquirir essas estruturas, os Parâmetros Curriculares Nacionais (2002) reforçam que cabe à Matemática e as Ciências Naturais do Ensino Médio, criar condições para que o aluno continue aprendendo após encerrar essa etapa, apresentando elementos que o auxiliem no desenvolvimento do raciocínio e das abstrações matemáticas, evitando a memorização indiscriminada de algoritmos e construindo uma aprendizagem significativa que possa servir- 65 lhe nas diferentes situações e contextos sociais. 2.4 A INTERDISCIPLINARIDADE NO ENSINO DE MATEMÁTICA E CIÊNCIAS NATURAIS. ...a interdisciplinaridade constitui condição para a melhoria da qualidade do ensino mediante a superação contínua da sua já clássica fragmentação, uma vez que orienta a formação global do homem. (Lück, 1994, p. 71) Pensando-se na matemática, uma possível afirmação é que ela é uma ciência em permanente construção, que surge a partir dos problemas do ser humano. Conforme Popper (1982, p. 96), “estudamos problemas, não matérias: problemas que podem ultrapassar as fronteiras de qualquer matéria ou disciplina”. Dessa forma a interdisciplinaridade surge como uma forma de integrar o conhecimento ao problema, de qualquer área, que se queira resolver, ou como afirma Floriani (2000, p. 34) “a interdisciplinaridade, a ausência de dogmatismo e o enfrentamento com problemas reais, representam vantagens para o estudioso, desde que temperadas com boas doses de prudência científica”, pois, se resumida apenas em conteúdos do cotidiano do aluno, acaba deixando de lado conhecimentos importantes que servem como base em outras disciplinas, ou que poderão de alguma forma auxiliar o estudante em contextos e situações diferentes. Floriani (2000, p. 44), afirma que a matemática muitas vezes é restrita por alguns professores em meros conteúdos de utilidade ordinária19, devendo-se isso ao fato que, na formação do professor faltam estudos interdisciplinares. 2.4.1 Interdisciplinaridade no processo de construção do conhecimento Segundo Pombo (2004, p.105) a “interdisciplinaridade surgiu na escola de forma quase espontânea” como uma necessidade, “uma aspiração emergente no seio dos próprios professores”. Nas escolas os professores, muitas vezes, sentem necessidade de integrar alguns saberes que não são da sua disciplina. Na maioria dos casos essas experiências 19 Para Floriani (2000, p. 43) a definição de “utilidade ordinária” está ligada a utilidade da matemática que atinge o homem comum, o homem do povo, e a utilidade não-ordinária estaria ligada a matemática utilizada pelo cientista como ferramenta para suas pesquisas. 66 interdisciplinares são realizadas, conforme a autora (2004, p. 106), “sem qualquer apoio ou retribuição”; os docentes tentam romper as barreiras das disciplinas a que “o ensino está institucionalmente confinado”. De acordo com Pombo (2004, p. 116) “a escola tem-se esforçado por encontrar uma saída, um intermédio de uma actuação mais frequente dos programas curriculares”, esses cada vez mais extensos e de menor duração. Cada vez que surge um novo conhecimento científico a escola precisa rever seu programa. Em função desse acelerado desenvolvimento do conhecimento os professores precisam estar em constante atualização, e mesmo assim, muitas vezes não conseguem acompanhar o processo. Como uma possível solução para auxiliar os professores Pombo (2004, p. 118) sugere uma articulação e um cruzamento dos saberes disciplinares, que promova uma convergência “de perspectiva para o estudo de problemas concretos”, evitando a repetição cansativa “à análise de dados, à utilização de instrumentos ou à recolha de informação proveniente de diversas disciplinas”. No processo de construção do conhecimento o educador deve “possibilitar o confronto entre o sujeito e objeto, onde o educando possa penetrar no objeto, apreendê-lo em suas relações internas e externas, captar-lhe a essência.” O estudante interage com o objeto estabelecendo relações, cabe ao professor auxiliar “na construção e representação mental do objeto em estudo”(VASCONCELLOS, 2004, p. 57) Para que o professor consiga colaborar com o educando nesse processo de “representação mental” o apoio de ideias interdisciplinares pode auxiliar no estabelecimento de relações mais abrangentes e complexas. Pombo (2004, p. 118) afirma que a interdisciplinaridade “permite restituir ao objecto de estudo o sentido da sua concretude, da sua riqueza e coerência, da sua autonomia enquanto objecto de experiência comum.” Ela é capaz de criar condições para ultrapassar o isolamento do objeto numa única área, compreendo-o em sua totalidade que abrange mais do que uma disciplina. Na construção do conhecimento, o professor é sujeito ativo na interação entre objeto, aluno e realidade. Para Vasconcellos o professor se assume enquanto partícipe da construção do conhecimento. 67 O professor passa a ser o mediador da relação educando-objeto de conhecimento- realidade, ajudando-o a construir a reflexão, pela organização de atividades, pela interação e problematização; os conceitos não devem ser dados prontos; podem ser construídos pelos alunos, propiciando para que caminhem para a autonomia20. Vasconcellos (2004, p. 86) Pombo (2004, p. 118) vai além, ao afirmar que os diversos meios de comunicação e informação, muitas vezes muito mais atrativos do que a escola, transmitem informação mediática, “mais dispersa, desconexa e desarticulada do que a veiculada pelo ensino formal”. Sendo ao extremo, “responsável pelos fenômenos de parcelização da cultura, de desestruturação e perda de referências estáveis que caracterizam a nossa contemporaneidade”. A escola e consequentemente o professor, segundo Pombo (2004, p. 119), precisa ser responsável por “fornecer ao aluno quadros globais de inteligibilidade, sistemas de enquadramento e referência” que auxiliem o aluno a “integrar a multiplicidade de informações que constantemente lhe chega pelos mais diversos meios de comunicação”. Pombo considera essa função da escola primordial e urgente. 2.4.2 Os Parâmetros Curriculares Nacionais e a interdisciplinaridade: um possível caminho para a resposta da questão pesquisada Esta pesquisa busca argumentos que ajudem a sustentar o encaminhamento de ações interdisciplinares no ensino de escalas e medidas no Ensino Médio. Para resolver problemas práticos, reais, do cotidiano de qualquer pessoa se faz, geralmente, necessário recurso a mais do que uma disciplina. Por exemplo, para resolver um problema de abastecimento de energia em determinada região é preciso o concurso da Geografia para conhecer o solo, o desenvolvimento da população; da Biologia para saber o quanto o ecossistema da região e de regiões vizinhas será afetado caso for necessário construir uma represa; da Física e da Matemática para construir represas, instalações elétricas; e ainda de outras disciplinas, se existir uma população habitando a região será necessário o concurso de sociólogos, entre outros, para verificar o quanto a população será afetada. A interdisciplinaridade surge dessa forma para auxiliar na solução de problemas desse tipo e de 20 O termo autonomia a que Vasconcellos se refere está relacionado à autonomia intelectual, à capacidade de governar-se. Kamii (1995, p. 95) cita Copérnico como exemplo de autonomia intelectual, segundo ela Copérnico ao postular a teoria heliocêntrica fora ridicularizado, porém “foi suficientemente autônomo para permanecer convencido de sua própria ideia. Uma pessoa heterônoma, ao contrário inquestionavelmente acredita no que lhe dizem, inclusive em conclusões, propagandas e chavões ilógicos”. 68 tantos outros, até mesmo mais simples, como a questão da construção do conceito de escala no estudante de Ensino Médio. Acredita-se que com uma disciplina apenas torna-se mais difícil de o conceito ser compreendido. Outros exemplos que apresentam a interdisciplinaridade como necessidade para entender fatos do cotidiano são citados pelos Parâmetros Curriculares Nacionais (2002, p. 8), como a questão da poluição ambiental e o princípio da conservação da energia. O princípio físico da conservação da energia, essencial na interpretação de fenômenos naturais e tecnológicos, pode ser verificado em processos de natureza biológica, como a fermentação, ou em processos químicos, como a combustão, contando em qualquer caso com o instrumental matemático para seu equacionamento e para sua quantificação. Incontáveis processos, como os de evaporação e condensação, dissolução, emissão e recepção de radiação térmica e luminosa, por exemplo, são objetos de sistematização na Biologia, na Física e na Química. Sua participação essencial nos ciclos da água e na fotossíntese, os situa como partícipes de processos naturais. Por outro lado, esses processos são essenciais para a compreensão da apropriação humana dos ciclos materiais e energéticos, como o uso da hidreletricidade e da biomassa. Portanto, evidencia-se também seu sentido tecnológico, associado à economia e à organização social. (BRASIL, 2002, p. 8) A interdisciplinaridade aparece naturalmente, por ocasião da tentativa de solução de um problema complexo. A questão ambiental pode evocar inúmeros desses problemas complexos. Na perspectiva deste trabalho o conceito de complexidade21 é visto, não como uma “dificuldade” pura e simples, e sim como algo que, para ser trabalhado, necessita ser olhado pelo viés de diversas disciplinas. Ou, dito de outra forma, um problema complexo é aquele que depende da análise de muitas variáveis, de campos essencialmente diferentes, é a raiz, a base de um conjunto de elementos que só não são díspares por conta de um “atrator” comum, que é justamente ele, o problema. Por exemplo, o problema do uso do automóvel envolve engenharia mecânica, economia, sociologia, relações trabalhistas de remuneração, empregabilidade, qualificação técnica, problemas ambientais, problemas de planejamento do espaço urbano, tanto para os deslocamentos quanto para o estacionamento, e assim por diante. Para os PCN (Brasil, 2002, p. 9) não é necessário cancelar a disciplinaridade do conhecimento científico, mas complementá-lo, estimulando a relação entre os fenômenos, promovendo uma visão articulada do ser humano e do meio onde vive, mostrando-o como agente construtor e transformador desse meio. Os Parâmetros Curriculares Nacionais afirmam que por esses motivos o aprendizado deve ser planejado sob uma perspectiva interdisciplinar, onde todos os assuntos sejam propostos e tratados desde uma compreensão global, articulando 21 Conforme Perrenoud (2001, p. 31) “complexidade está na base, constitui a natureza das coisas, do pensamento, da ação, da organização, [...] é feita de antagonismos no centro dos fenômenos organizados”, e para dominá-la é preciso pensar essas contradições de maneira conjunta. 69 as competências que serão desenvolvidas em cada disciplina e no conjunto das disciplinas, em cada área e no conjunto das áreas. Conforme os PCN (Brasil, 2002, p. 9) e consoante ao afirmado anteriormente, “mesmo dentro de cada disciplina, uma perspectiva mais abrangente pode transbordar os limites disciplinares”. 2.5 AS DISCIPLINAS E AS IDEIAS ESTRUTURADORAS Frequentemente certas disciplinas nascem e se formam a partir de elementos comuns. É o caso da ideia de medida na matemática e na física. Trata-se de uma ideia estruturadora. Pode-se afirmar então que as disciplinas assumem, de maneira gradual, suas identidades a partir de classes de problemas dos quais se possa retirar soluções que sejam consideradas válidas pela comunidade que as recebe. Por exemplo, na matemática, é possível pensar na aritmética que trata dos números inteiros e suas razões (frações). Já o cálculo diferencial “especializa-se” no emprego de elementos infinitesimais, nas ideias de limites, etc. Como a presença destas disciplinas (aritmética e cálculo diferencial) poderia “iluminar” o conceito de interdisciplinaridade? Poder-se-ia tentar responder através de um exemplo da Física, mais especificamente, da meteorologia. Pensando-se na energia potencial de uma gota de chuva. Essa pode ser definida com grande precisão em função de sua altura em relação a um referencial (o nível do mar, por exemplo) e sua massa. A aritmética daria conta, facilmente, dos cálculos envolvidos, uma vez que é possível supor que toda a massa de água da gota está concentrada em um ponto. Mas, qual é a altura de uma nuvem? É necessário estender a ideia, pensar numa soma de infinitas contribuições, tantas quantas gotículas de água há numa nuvem. Este problema exige a contribuição de uma (à época de Newton, nova) disciplina, o cálculo integral. Além disso como a gota se forma lá em cima? Às custas de quem ela adquire esta energia potencial? Há a exigência da contribuição de (pelo menos) mais uma disciplina, que vem da teoria cinética da matéria e da mecânica estatística. De fato, a “solução” - poderia-se dizer: o avanço do conhecimento a respeito - de qualquer problema razoavelmente complexo exige a contribuição de mais de uma disciplina. É possível conjecturar: porque as disciplinas surgem? O exemplo acima permite pressupor que os problemas complexos são subdivididos, e cada parte é tratada nas suas peculiaridades. Essas partes geram todo um conjunto de “subproblemas”, de certo modo artificiais (pois suas 70 origens, via de regra, se perdem), cujas soluções são em geral diretas e imediatas. Esses subproblemas podem ajudar a consolidar uma disciplina. A tal ponto que a destreza que advém do seu manuseio frequentemente permite novas formulações do problema, mais precisas. Niels Bohr afirmava que só é possível enunciar claramente um problema após tê-lo resolvido. Nesse sentido, as disciplinas podem promover um poderoso avanço do conhecimento. Entretanto, há um preço a pagar: a perda da perspectiva global, a que está via de regra na gênese do problema original. No primeiro capítulo buscou-se elementos da história da matemática e da física para compreender o processo de evolução do conhecimento, voltando-se, especialmente, para os conceitos de escala e de medida, e relacionando-os com o desenvolvimento das disciplinas e, consequentemente, da educação. No segundo capítulo analisou-se alguns conceitos, como os de disciplina e interdisciplinaridade, observando os pontos positivos e negativos da fragmentação das disciplinas, a posição dos Parâmetros Curriculares Nacionais a respeito do tema e as ideias que estruturam e sustentam as disciplinas. No terceiro capítulo procura-se então consolidar as ideias até então encontradas através de uma análise dos PCN de Ensino Médio de Matemática e Física, da análise de alguns livros didáticos dessas duas disciplinas e, finalmente, conhecendo o posicionamento dos professores a respeito do tema desta pesquisa. 71 3 ANÁLISE DAS ENTREVISTAS 3.1 SOBRE A METODOLOGIA Ainda que, conforme insistimos reiteradamente, o processo se inicie com a escrita tendo como foco expressar o conhecimento de partida do pesquisador, a interação com outras vozes é essencial para que as reconstruções possam se concretizar. (MORAES, 2007, p. 211) Tomando-se a escrita como um princípio de pesquisa é possível refletir que ao escrever está se comunicando algo a alguém, mas além do papel de comunicação que a escrita evidentemente apresenta, ela é um meio de aprendizado. Escreve-se para descrever, argumentar, fazer uma interpretação, e, consequentemente aumentar a compreensão dos fenômenos estudados. Segundo Moraes (2007, p. 163) quando o pesquisador reconhece que a escrita vai além de apenas comunicar, “o pesquisador sofre metamorfoses que o fazem compreender o processo do escrever como forma de criar novos mundos, novos conhecimentos”. Ao escrever dá-se voz a diferentes personagens, inclusive ao autor que escreve; há durante a escrita um processo de interação com as vozes, um diálogo, uma reconstrução. A escrita, na maioria dos casos, não pode ser considerada plenamente objetiva, já que contém construções e interpretações pessoais do autor, todavia, essas devem apresentar uma desejável e necessária fidelidade às informações obtidas, ao contexto histórico, às situações concretas. No contexto onde se interpreta e se constrói o pesquisador é o autor que dá voz a múltiplas vozes. Assim, a escrita é predominantemente um exercício de intersubjetividade. Dessa forma, pesquisar: ... é produzir um texto de rica intertextualidade no qual se conjuguem, em uma intersubjetividade sempre ativa e provocante desde suas bases culturais, as muitas vozes de uma comunidade argumentativa especialmente convocada para o debate em torno de determinada temática; sejam as experiências do pesquisador, sejam os testemunhos de um campo empírico, sejam os testemunhos do respectivo campo teórico. (MARQUES, 1997 229 apud MORAES, 2007, p. 98) No presente trabalho é dada voz a diferentes participantes do contexto escolar: autores dos livros didáticos (através dos seus discursos implícitos nos livros) utilizados pelos alunos de Ensino Médio nas disciplinas de Matemática e Física da escola escolhida como 72 amostra; especialistas dos órgãos governamentais através de suas vozes nos Parâmetros Curriculares Nacionais; autores de obras consultadas para a construção deste e dos capítulos anteriores; a autora desta dissertação, pela leitura peculiar que fez dessas obras; professores entrevistados; autores não explícitos (pela voz da autora desta dissertação) mas presentes a partir de notas de aula, relatos falados, sugestões de leituras, orientações. Estão presentes, portanto, diferentes linguagens – escrita, falada – resultantes das pesquisas bibliográficas e entrevistas. Segundo Bakhtin (apud Marques, 2003) a linguagem é uma criação coletiva, integrante do diálogo entre o “eu” e o “outro” ou entre muitos “eus” e muitos “outros”. Este trabalho é uma construção erigida a partir da diferentes vozes nele presentes. Então, além da compreensão do pesquisador, o texto buscará descrever explicações e compreensões dos participantes, ainda que reconstruídas pelo pesquisador. Nos capítulos anteriores descreveu-se e narrou-se. Agora, serão feitas interpretações e argumentações. Dessa forma o presente capítulo não foi construído apenas para narrar algo conhecido, ao ser construído propiciou um verdadeiro aprendizado. Um aprendizado mais intenso, certamente, para a autora, mas um aprendizado em graus diversos para muitos dos interlocutores envolvidos. A ideia central dessa construção é a seguinte: considera-se aqui os textos como mapas, que evoluem na medida em que os territórios são explorados. O mapa que permite explorar o território, o qual fornece novas condições para melhorar o mapa, que permite explorar novamente o território, e assim sucessivamente. É um processo cíclico, evolutivo de escrita que favorece a (auto) crítica. Para Moraes (2007, p. 106) “no mesmo movimento que se aprende se comunica” e essa é uma das intenções deste trabalho. Nessa escrita é possível perceber também uma impregnação dos temas com o quais foi trabalhado nos capítulos anteriores: escalas, medidas, educação. Escrever é um modo de organizar os fatos. E, além disso, a escrita produz novas realidades. 3.2 ANÁLISE DOS DADOS COLETADOS A seguir será feita a análise do tema “escalas e medidas”. Os dados foram coletados em livros textos, um de Matemática e em uma coleção de Física, ambos voltados ao Ensino Médio e utilizados como apoio didático por alunos e professores no ano de 200922. São livros 22 Os dados para esta pesquisa foram coletados em 2009. 73 recomendados para essa etapa de ensino pelo Programa Nacional do Livro Didático – PLEM. Serão explorados, durante a análise, alguns elementos ligados à interdisciplinaridade. E por fim será analisada a posição dos professores sobre o papel das ações interdisciplinares para a formação do conceito de escala no estudante. 3.2.1 Escalas, Medidas e os Parâmetros Curriculares Nacionais de Ensino Médio de Matemática e Física Os parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) salientam que a Física deve preparar o aluno para ter sua própria visão de mundo, fazendo com que ele possa elaborar, da forma mais autônoma possível, suas representações, conseguindo perceber algumas das regularidades do Universo, de modo a desenvolver plenamente a compreensão e a investigação na Física. Investigar tem, contudo, um sentido mais amplo e requer ir mais longe, delimitando os problemas a serem enfrentados, desenvolvendo habilidades para medir e quantificar, seja com réguas, balanças, multímetros ou com instrumentos próprios, aprendendo a identificar os parâmetros relevantes, reunindo e analisando dados, propondo conclusões. Como toda investigação envolve a identificação de parâmetros e grandezas, conceitos físicos e relações entre grandezas, a competência em Física passa necessariamente pela compreensão de suas leis e princípios, de seus âmbitos e limites. A compreensão de teorias físicas deve capacitar para uma leitura de mundo articulada, dotada do potencial de generalização que esses conhecimentos possuem.” (BRASIL, 2002, p. 24). Medir aparece como uma das habilidades23 que devem ser desenvolvidas pelos estudantes na disciplina de Física, de igual importância aparece a capacidade de quantificar essas medidas. Para os PCN (Brasil, 2002) a medida está relacionada ao cotidiano dos estudantes. É necessário saber medir para interpretar as tensões de aparelhos elétricos, as receitas de óculos, mapas e plantas, consumo energético especificado em embalagens de alimentos, gráficos. Reconhecer essas medidas requer, conforme os PCN (Brasil, 2002, p. 26) “uma competência24 específica para a leitura dos códigos e significados quase sempre muito próximos da Física”. Essa competência pode ser considerada, segundo Perrenoud (2001, p. 23 Conforme PCN (Brasil, 2002a, p. 15) os Parâmetros Curriculares Nacionais do Ensino Médio apresentam explicitamente três conjuntos de competências: comunicar e representar; investigar e compreender; contextualizar social e historicamente os conhecimentos. Essas competências estão relacionadas a um conjunto mais amplo de habilidades, podendo-se interpretar, então, uma habilidade como uma competência específica. Por analogia, é possível comparar as competências e habilidades com as mãos e dedos: as primeiras fazendo sentido apenas se associadas às últimas. 24 Perrenoud (2001, p. 20) associa a palavra competência ao “conjunto dos recursos que mobilizamos para agir”. 74 21), “a capacidade de um sujeito de mobilizar o todo ou parte de seus recursos cognitivos e afetivos para enfrentar uma família de situações complexas”. O sujeito, nesse caso, organiza seus recursos cognitivos e afetivos para interpretar os códigos e significados presentes na Física. Os Parâmetros Curriculares Nacionais afirmam que a Física tem uma maneira particular de utilizar medidas e dados, através do uso de tabelas, da interpretação de gráficos, das relações matemáticas. Conforme PCN (Brasil, 2002, p. 27) “A Física expressa relações entre grandezas através de fórmulas, cujo significado pode também ser apresentado em gráficos”, utilizando uma linguagem própria que possui alguns pré-requisitos. Assim, para dominar a linguagem da Física é necessário ser capaz de ler e traduzir uma forma de expressão em outra, discursiva, através de um gráfico ou de uma expressão matemática, aprendendo a escolher a linguagem mais adequada a cada caso [...] Expressar-se corretamente na linguagem física requer identificar as grandezas físicas que correspondem às situações dadas, sendo capaz de distinguir, por exemplo, calor de temperatura, massa de peso, ou aceleração de velocidade. (BRASIL, 2002, p. 27) Os alunos precisam ter condições para desenvolver essas capacidades de investigar, dominar a linguagem da Física. Além disso os PCN (Brasil, 2002, p. 29) salientam que é necessário que o aluno consiga “classificar, organizar, sistematizar. Identificar regularidades. Observar, estimar ordens de grandeza, compreender o conceito de medir, fazer hipóteses, testar”. Assim como a Física, a Matemática possui uma linguagem particular. As divisões da disciplina possuem definições que merecem ser estudadas, mesmo que rapidamente, para auxiliar o aluno compreender o que será estudado. A palavra trigonometria, por exemplo, segundo Boyer (1996, p. 108) significa “a medida das partes de um triângulo”, sabendo disso talvez o aluno sinta-se mais familiarizado com o assunto já que, de acordo com os Parâmetros Curriculares Nacionais (Brasil, 2002, p. 44), a Trigonometria está relacionada ao desenvolvimento de habilidades e competências “desde que seu estudo esteja ligado às aplicações, [...] na resolução de problemas que envolvem medições, em especial no cálculo de distâncias inacessíveis, e na construção de modelos que correspondem a fenômenos periódicos”. Além da Trigonometria os PCN (Brasil, 2002, p. 44) recomendam que se trabalhe com números, pois é importante para desenvolver no aluno a “capacidade de estimativa, para que possam ter controle sobre a ordem de grandeza de resultados de cálculo ou medições”. Os Parâmetros Curriculares Nacionais salientam ainda que tanto em matemática 75 quanto em Física os alunos devem ter condições apropriadas para aprender a ler, interpretar, fazer uso correto das representações matemáticas e de instrumentos de medição. O trabalho com medidas, representações de grandezas e noções de escala auxiliam o aluno a compreender relações espaciais que, por sua vez auxiliam o estudante a construir suas representações de mundo. De fato, perceber as relações entre as representações planas nos desenhos, mapas e na tela do computador com os objetos que lhes deram origem, conceber novas formas planas ou espaciais e suas propriedades a partir dessas representações são essenciais para a leitura do mundo através dos olhos das outras ciências, em especial a Física. (BRASIL, 2002, p.44) Nessa perspectiva é que o Ministério da Educação recomenda que sejam elaborados os livros didáticos utilizados nas escolas. Um dos objetivos da próxima sessão é o de confirmar se nos livros-textos utilizados pelos alunos de Ensino Médio estão presentes os elementos que os Parâmetros Curriculares Nacionais abordam. Para isso foi feita uma análise nos livros de Física e de Matemática utilizados pelos estudantes da escola que serviu como amostra para esta pesquisa. 3.2.2 Livro texto de Física Os livros analisados a seguir são exemplares dos livros utilizados pelos professores de Física de Ensino Médio da escola escolhida como amostra para a realização desta pesquisa. São livros recomendados pelo Programa Nacional do Livro Didático e selecionados pelos professores entrevistados. Ao analisar os livros da coleção Universo da Física volumes 1, 2 e 3 escritos por José Luiz Sampaio e Caio Sérgio Calçada, a partir do tema desta dissertação, escalas e medidas, foi possível verificar a presença (e uso intenso) de unidades de medida, em praticamente todos os capítulos. No início do primeiro volume os autores dedicam todo um capítulo para as unidades das diversas grandezas, fazendo uma retomada histórica dos principais acontecimentos desde o Sistema Métrico Decimal instituído na França logo após a Revolução Francesa (1789-1799) e expandindo-se gradualmente pelo mundo inteiro até o Sistema Internacional de Unidades (SI). Essa revisão histórica integra a proposta feita pelos Parâmetros Curriculares Nacionais (Brasil, 2002, p. 22) que afirmam que uma abordagem da 76 história é necessária para que o aluno perceba que a Física é um processo em contínua transformação. Para abordar conceitos da Mecânica25 os autores definem o que é uma grandeza escalar afirmando que para defini-la é preciso apenas um número e uma unidade, por exemplo um número que representa uma massa utilizando a unidade quilograma; um número que representa um tempo fazendo uso da unidade segundos; um número que representa uma temperatura, em graus Celsius. Já as grandezas vetoriais, como a força, por exemplo, precisam, além do número – o módulo – com sua respectiva unidade, de uma direção e um sentido, constituindo então um vetor que indique a direção dessa força. Após definir o que é necessário para se ter uma grandeza escalar os autores mostram como medir, experimentalmente, a velocidade escalar e como medir a aceleração escalar. A análise de gráficos está presente em quase todos os capítulos desse volume - conforme sugerem os PCN (Brasil, 2002, p.26) – utilizando a análise das variáveis, tempo distância, velocidade, aceleração em função do tempo. Ao trabalhar o conteúdo de termologia, Sampaio e Calçada também resgatam um determinado percurso histórico, apontando para as primeiras formas de comparar temperaturas e o desenvolvimento dos instrumentos de medição. Para comparar temperaturas utilizava-se o termoscópio, instrumento de vidro com um balão de água na extremidade e um tubo também de vidro pelo qual a água subia. Colocava-se o balão em contato com um objeto, media a altura que a água atingia dentro do tubo e depois em contato com o objeto que se queria comparar medindo novamente a altura da água. Com o passar do tempo começou-se a implantar uma escala numérica no tubo de vidro auxiliando a comparação das temperaturas, o termoscópio com escala passou a se chamar termômetro. Galileu adotou o zero para definir a temperatura da água do balão quando colocada na neve e dez quando o balão estivesse em contato com a chama de uma vela. Os autores constroem o percurso até chegar nas escalas utilizadas atualmente: a escala Celsius, Fahrenheit, e Kelvin considerada a escala oficial do SI. Conforme os PCN (Brasil, 2002a, p.59) “a Física deve vir a ser reconhecida como um processo cuja construção ocorreu ao longo da história da humanidade, impregnado de contribuições culturais, econômicas e sociais, que vem resultando no desenvolvimento de diferentes tecnologias e, por sua vez, por elas sendo impulsionado”. Entretanto alguns professores deixam de privilegiar abordagens históricas, alegando falta de tempo. A medida está presente até mesmo na óptica, estudo do comportamento da luz, nas diversas tentativas de estipular sua velocidade, na propagação, na forma de medir os raios de 25 De acordo com Sampaio e Calçada (2005, p. 42) a Mecânica é o ramo da Física que estuda o movimento. 77 incidência e reflexão e assim por diante. Resistência e resistividade são, respectivamente, a medida da dificuldade à passagem de corrente em um condutor e a medida da dificuldade oferecida pelo material à passagem de corrente elétrica. Nesse capítulo Sampaio e Calçada (2005, p. 48) fazem comentários sobre o amperímetro, instrumento utilizado “para medir a intensidade de uma corrente elétrica” e sobre a aplicação de regras de proporção para verificar a resistência de um fio, que é proporcional ao seu comprimento e inversamente proporcional à área de sua seção reta. De acordo com os PCN (Brasil, 2002, p. 66) é importante que o aluno desenvolva as competências de conseguir “selecionar e utilizar instrumentos de medição e de cálculo, representar dados e utilizar escalas, fazer estimativas, elaborar hipóteses e interpretar resultados”. A maior parte dos conteúdos dos livros analisados até agora possuem aplicações práticas conforme buscam os Parâmetros Curriculares Nacionais. A ideia de medida aparece como elemento necessário em praticamente toda a obra reforçando o pensamento de Eddington (1959 apud CATELLI, 1999, p. 105) que afirma que “a física é a ciência não dos objetos, mas das medidas”. Um exemplo que afirma o pensamento de que a medida é comparação de grandezas de mesma espécie é citado por Sampaio e Calçada (2005, p. 37) quando afirmam que uma forma prática para descobrir a massa de um corpo, desde que não seja nem muito grande, nem muito pequeno, “pode ser obtida por meio da comparação desse corpo com corpos padrão26, utilizando-se uma balança de braços iguais”. 26 Chamados também de pesos-padrão esses protótipos são pequenos corpos de massas determinadas (1 Kg, 0,5 Kg, ...) geralmente utilizados para calibrar, verificar e ajustar balanças. (INMETRO, 2009) 78 Ilustração 5: Em balanças desse tipo, pode-se saber a massa de um corpo colocando corpos padrão até atingir o equilíbrio dos pratos da balança. Fonte: o autor 3.2.3 Livro texto de Matemática É inegável a importância do livro texto de Matemática na educação brasileira, tanto pelo aspecto histórico no processo ensino-aprendizagem dessa disciplina quanto pelo que ele representa nas aulas [...]. (LOPES, 2005, p. 35) O livro “Matemática” (volume único), de Luiz Roberto Dante, apresenta os conteúdos a serem desenvolvidos nos três anos do Ensino Médio. Foi escolhido para essa análise porque, assim, como os livros de Física, também foi recomendado pelo Programa Nacional do Livro Didático e, após a seleção feita pelos professores, enviado para a escola para ser distribuído entre alunos e professores dessa etapa do ensino na disciplina de Matemática para ser utilizado como apoio didático. O primeiro capítulo (p. 9) “Conjuntos e conjuntos numéricos” inicia-se com um um exemplo prático de uma pesquisa de opinião e afirma aos alunos que para resolver aquela questão é necessário utilizar-se de conhecimento sobre conjuntos. Então o autor define o que é conjunto, suas propriedades, os conjuntos vazio, unitário e universo, as operações matemáticas, união, reunião, intersecção, os conjuntos numéricos, naturais (IN), inteiros (Z), racionais (Q), irracionais e reais (IR), intervalos e finalmente um sub-capítulo envolvendo situações-problema envolvendo números reais, grandezas e medidas. Cada item, quando possível traz a sua definição, exemplos e exercícios, traz também uma seção “para refletir”, 79 com informações a respeito do conhecimento matemático, algumas propriedades e questionamentos que fazem com que o aluno se questione, pense sobre o que o autor está trazendo, refletindo sobre sua aprendizagem. Nos exercícios propostos o autor aponta informações sobre as diferentes unidades presentes no cotidiano do aluno, as medidas do diâmetro da Terra e a distância dela à outros planetas, a construção e interpretação de diferentes tipos de gráficos, oscilações de temperatura, de moedas, preferência eleitoral. Esse tipo de problema contempla as competências e habilidades propostas por Brasil (2002, p. 46) que envolvem a compreensão de problemas e a aplicação de problemas matemáticos na interpretação de situações reais. Para contextualizar funções de segundo grau Dante traz exemplos cotidianos, como a relação entre o preço da gasolina e a quantidade de litros, a medida do lado de um quadrado e seu perímetro, o tempo gasto e a distância percorrida. Através dessas noções o autor vai definindo os conceitos presentes em cada problema, identificando as variáveis dependente e independente27 e propondo exercícios para que os alunos possam resolver. A forma como o conteúdo é exibido é indicada pelos PCN. ... o ensino pode ser iniciado diretamente pela noção de função para descrever situações de dependência entre duas grandezas, o que permite o estudo a partir de situações contextualizadas, descritas algébrica e graficamente. (BRASIL, 2002a, p. 121) No tema “Gráfico de uma função” o autor convida o aluno a analisar alguns gráficos encontrados frequentemente em livros e revistas e afirma que “o gráfico de uma função auxilia na análise da variação de duas grandezas quando uma depende da outra” (DANTE, 2005, p. 38). Para explorar o conceito de escala, o autor tomou exemplos da engenharia e da cartografia explicando que (2005, p. 69) “tanto em plantas como em mapas aparecem expressões como escala 1 : 100 ou escala 1 : 12 500, que devem ser lidas assim: escala 1 por 100 ou escala 1 por 12 500.” e complementa: 27 Anton (2000, p. 24) faz a seguinte distinção e definição sobre variáveis dependentes e independentes: Uma função f é uma lei que associa a uma única saída f(x) a cada entrada x. Esta saída é, às vezes, chamada de valor de f em x ou imagem de x sob f. Às vezes, vamos querer denotar a saída por uma única letra, digamos y e escrever y = f(x) Esta equação expressa y como uma função de x; a variável x é chamada de independente (ou argumento) de f, e a variável y é chamada de variável dependente de f. Esta terminologia tem o propósito de sugerir que x está livre para variar, mas uma vez especificado o valor de x, um correspondente valor de y está determinado. 80 Dizemos que um mapa foi feito na escala 1 : 12 500 quando 12 500 unidades de comprimento (que pode ser o milímetro, o centímetro, o metro, etc.) do real foram representadas, no mapa, por uma unidade (milímetro, centímetro, metro, etc.). Se escolhermos como unidade de comprimento o centímetro, então essa escala indica que cada comprimento de 12 500 cm foi representada por 1 cm. (DANTE, 2005, p. 70) Ao trabalhar logaritmos são citadas algumas escalas como a de Fechner que é aplicada em situações diferentes, por exemplo, o brilho das estrelas é medido através da equação “m = c – 2,5 • log10I, onde m é a medida do brilho, chamada de magnitude aparente, I é a energia luminosa recebida pelo olho e c é uma constante.” A escala Richter, que mede a intensidade de terremotos e a escala que mede ruídos, em decibéis, são também calculadas através da escala Fechner (DANTE, 2005, p. 70). Na geometria Dante (2005, p. 161) questiona o estudante se ele percebeu a possibilidade de chegar às propriedades geométricas sem a necessidade de usar medições, utilizando assim, o método de raciocínio e demonstração. Faz as demonstrações da soma das medida dos ângulos internos de um quadrilátero convexo, de um polígono convexo, figuras congruentes. Provavelmente, a ideia de medida está aqui associada ao ato de medir, o que é bastante comum entre os professores, e poderá ser percebido na análise das entrevistas. No entanto, o problema de encontrar a medida da diagonal de um quadrado por meio de seu lado é um problema de medida “por excelência”, mas não envolve (paradoxalmente) o ato de medir. A “solução” deste problema vem, não de uma sequência de atos de medição, mas de uma demonstração28. Ao tratar das relações métricas no triângulo retângulo, o autor introduz o tema com uma situação-problema na qual o aluno deverá calcular a distância entre dois veículos que 28 Para explicitar melhor a ideia: o padrão de unidade de medida de massa, o kg, consiste de um “objeto” (um cilindro de platina) protegido cuidadosamente de modo a não sofrer degradações. Todos os outros padrões de massa são secundários, isto é, foram confeccionados por referência (direta ou indireta) a esse padrão original. Quando alguém adquire um alimento pré embalado no mercado, “adquire” uma certa quantidade de massa daquele alimento que é proporcional, dentro de uma margem de erro, à massa padrão. Se admitíssemos uma margem de erro, sim, poderíamos realizar a medida da diagonal de um quadrado usando como unidade de medida o lado do quadrado,. Como pode ser visto na ilustração 1, pg. 22, o comprimento de 5 diagonais do quadrado equivale aproximadamente a 7 lados desse mesmo quadrado. Mas não exatamente. Podemos continuar a realizar operações de medida, cada vez mais cuidadosas, e poderemos encontrar dois comprimentos tais que o primeiro deles equivalha a um número “m”, inteiro, de vezes o lado do quadrado e o outro equivalha a um número n, inteiro, de vezes a diagonal do quadrado, de modo que a diferença entre o primeiro e o segundo comprimentos assim gerados seja menor. É sempre possível encontrar um par (m, n) que produza comprimentos cuja diferença seja ainda menor, e isso pode ser feito até certo ponto com instrumentos de desenho, régua, compasso, papel. Mas, e aí revela-se uma faceta fascinante da matemática, sempre haverá uma diferença, por mais que a medição seja exata. Pode-se demonstrar que não existe um par (m, n) de números inteiros que produza dois comprimentos exatamente iguais, nas condições descritas acima. Mas isso só pode ser feito por meio de uma demonstração matemática, e não por meio de medições que façam uso de instrumentos reais, tais como régua e compasso. Esse é o notável “paradoxo dos incomensuráveis”, tido por alguns historiadores como um dos marcos mais importantes da evolução das ideias matemáticas. 81 partiram de um ponto comum no mesmo instante e se deslocam perpendicularmente. Para resolver esse problema o autor utiliza o teorema de Pitágoras e mostra outras situações que o aluno pode utilizá-lo. Em seguida coloca alguns exercícios de aplicação do teorema e encerra com uma proposta de desafios, com duas questões sobre as relações métricas no triângulo retângulo, para ser resolvido em duplas. Para estudar áreas, ou medidas de superfícies, o autor inicia com a contextualização histórica destacando a importância da geometria na Matemática. De acordo com Dante (2005, p. 176) “desde os egípcios, que procuravam medir e demarcar suas terras (daí surgiu o nome Geometria = medida da terra), até hoje, quando topógrafos, geólogos e arquitetos fazem os seus mapeamentos e plantas, o cálculo de áreas tem sido uma preocupação constante na história da Matemática”. Dante apresenta algumas atividades a respeito de áreas de terras nas diferentes formas geométricas e um problema sobre escalas, o qual solicita que o aluno determine a área de um município, conhecendo o mapa do estado, de escala 1 cm para cada 200 km, onde está localizado o município, o problema traz também a informação que o município tem a forma de um losango de ângulo 120º e diagonal menor de 0,2 cm. Para resolver esse problema o aluno primeiramente deve calcular essa escala para ver as reais dimensões do município e a seguir prosseguir com a missão de descobrir a área. Dante (2005, p. 185) enuncia o princípio da proporcionalidade: “se duas figuras geométricas forem semelhantes com razão de semelhança k entre suas grandezas lineares, então suas áreas terão razão de semelhança k²”. O autor (2005, p. 187) ilustra muito bem as aplicações da trigonometria na introdução do capítulo 14, o qual começa pela definição do termo grego “tri = três, gonos = ângulos, metron = medir” e ilustra com seu significado “medida dos ângulos”. Segundo os PCN (Brasil, 2002a, p. 111) a dimensão histórica da ciência amplia e aprofunda o campo de conhecimentos não apenas da Matemática, “mas nas suas inter-relações com outras áreas do saber”. A trigonometria pode resolver problemas de medida nos diferentes contextos: altura de rampas, distância entre uma árvore e uma encosta a uma elevação de 60º, distância de um barco a uma plataforma de petróleo, sendo informada a altura da plataforma e o ângulo de depressão à proa do barco, e apresenta também problemas de agrimensura e topografia. A forma como Dante explicita esse conteúdo está de acordo com Brasil (2002a, p. 122) que recomenda que em trigonometria seja desenvolvido especialmente o trabalho de aplicações do conteúdo na resolução de problemas que envolvem medições, em especial o cálculo de distâncias inacessíveis, dando atenção ao aspecto histórico da disciplina e sua evolução. Em geometria espacial e métrica o livro texto analisado trabalha a ideia de volume 82 (medida da quantidade de espaço que um corpo ocupa) e traz uma leitura sobre a descoberta de Arquimedes para medir o volume de um objeto, mergulhando-o na água e medindo o nível da água que sobe no recipiente; faz também a demonstração da fórmula utilizada para calcular a área da superfície esférica. A geometria, segundo os PCN (Brasil, 2002, p. 124), deve ser estruturada de forma que o aluno aprenda a efetuar medições em casos reais, aplicando em situações-problema áreas e volumes. No decorrer do capítulo, Dante coloca problemas de medidas que envolvem essas situações, abordando, por exemplo, exercícios onde o aluno precisa descobrir a quantidade de papel para embalar uma mercadoria, quantidade de azulejo para revestir uma cozinha, a relação entre volume e área, litro e decímetro. Nos livros analisados encontrou-se o significado dos nomes de algumas ramificações da Matemática, e em muitas dessas nomenclaturas é possível encontrar a ideia de medida. É o caso, por exemplo, da geometria (medida da terra) e trigonometria (medida dos ângulos). Semelhante à matemática, na física a medida também é o elemento constitutivo dos conjuntos formados por “grandezas de mesma espécie”. Tanto que “a física é a ciência não das coisas, mas das medidas” (Eddington apud BACHELARD, 1981, p. 55). As unidades de medida “habitam” praticamente todos os capítulos desse manual de física do ensino médio aqui analisado. Através desta análise foi possível perceber que os conceitos de escala e medida estão presentes nos livros analisados, seja como ferramenta, seja como meio de reflexão e comunicação. A seguir serão analisadas as respostas das entrevistas com os docentes de matemática e física no que diz respeito ao tema investigado nesta dissertação. 3.2.4 Entrevistas com os professores Para a efetivação da entrevista foram convidados todos os professores de Matemática e de Física que estavam atuando naquele momento nessas disciplinas no Ensino Médio em uma escola pública de médio porte da região nordeste do Rio Grande do Sul, foram entrevistados, no total, 5 professores de matemática e 3 de física. Realizou-se uma entrevista semi-estruturada (apêndice B) composta por algumas perguntas norteadoras, que auxiliaram a pesquisadora no diálogo com os professores entrevistados. De acordo com Lüdke (1990, p. 34) “a entrevista semi-estruturada se desenrola a partir de um esquema básico porém não aplicado rigidamente, permitindo que o entrevistador faça as necessárias adaptações.” Lüdke 83 salienta ainda que “o tipo de entrevista mais adequado para o trabalho de pesquisa que se faz atualmente em educação aproxima-se mais dos esquemas mais livres, menos estruturados.” Sendo assim, a opção por uma entrevista semi-estruturada, na qual se pode flexibilizar as questões, pareceu ser a mais indicada para este trabalho. Para coletar os dados, a pesquisadora entrevistou pessoalmente os professores, buscando uma maior fidelidade as respostas. De acordo com Richardson (1999, p. 149) “no contato direto, o pesquisador pode explicar e discutir os objetivos da pesquisa [...], responder dúvidas que os entrevistados tenham em certas perguntas.” Nas entrevistas com os professores de Física e Matemática, foi constatado que alguns docentes acreditam que os alunos trazem as dificuldades na percepção de escalas e medidas porque essa deficiência vem desde o Ensino Fundamental, período que seria responsável por essa aprendizagem. É uma deficiência que eu acho que vem desde o Ensino Fundamental. O professor de 8ª série costuma dar uma tabelinha, com centímetros pra metro, de metro pra centímetros, divide por 100, multiplica por 100, eu acho que isso “poda” o raciocínio do aluno, pois ele acaba não vivendo mais sem a tabelinha, acho isso complicado e procuro não fazer. Agora o complicado é que a matemática do Ensino Fundamental é a base, e ali se perde bastante, ali se perde muito. (ENTREVISTA COM F1 PROFESSOR DE FÍSICA DO ENSINO MÉDIO) Para F1, a Matemática da forma como é ensinada no Ensino Fundamental acaba não construindo noções importantes para o desenvolvimento do raciocínio do aluno; ele, quando aprende, rapidamente esquece. A culpa disso seria, especialmente, da matemática. Já para o professor de Física (F2) o aluno não aprende, muitas vezes, por falta de interesse, “se formos considerar o que os alunos tem ânimo de aprender, o que eles tem vontade, isso é muito pouca coisa, os que se interessam pelas ciências exatas são muito poucos”. É possível conjecturar a respeito do baixo interesse pelas ciências: o ambiente em sala de aula, pelas falas dos professores, é aquele sugerido pelos livros? Pelos PCN? Parece que não, e foi possível extrair isso dos depoimentos dos professores. Por exemplo, onde estão as atividades que focam as unidades de medida como “meio de comunicação” (conforme elaboração do capítulo 1) e não como algo a ser mecanicamente aprendido? Há, ainda, pouquíssimas estratégias didáticas centradas no quotidiano dos alunos. Da mesma forma, os professores de matemática afirmam que o Ensino Fundamental não prepara o aluno para o desenvolvimento de alguns conceitos essenciais para o Ensino Médio. A medida pode ser considerada um desses conceitos, pois é a essência de muitas definições da Física e da Matemática. Para o professor de Matemática (M4) os alunos chegam 84 ao ensino Médio com medo da disciplina, isso faz com que não gostem dela e, consequentemente, tenham dificuldades de aprender. M4 vai mais além afirmando que, em alguns casos, a dificuldade vem desde o início do Ensino Fundamental, “talvez a falha esteja nas séries iniciais, que a professora de currículo não gosta muito de matemática e acaba ensinando mais português, interpretação de texto, esse tipo de coisa e deixa a matemática de lado”. Caberia aqui argumentar se a matemática não envolve também a interpretação de texto. Essa é uma acusação grave. Porque a professora do ensino fundamental não gosta de matemática? Será que as origens do baixo interesse dos alunos pelas ciências são as mesmas que desviaram a professora do ensino fundamental do caminho da Educação para a matemática? Será que não se está aqui “perpetuando” alguns equívocos? É natural que as pessoas gostem mais ou menos das coisas, isso compete ao livre arbítrio, às escolhas que elas podem e devem fazer. Mas quando, sistematicamente, pessoas que deveriam ter afinidade com a matemática, por escolha própria, como é o caso dos professores do ensino fundamental, não a tem, algo está profundamente errado. Não se pretende, nesta dissertação, nem mesmo apontar todos os elementos que intervém para a construção desse cenário. Mas pretende-se apontar alguns deles, e demonstrar que pode sim existir uma relação entre esses elementos e o desinteresse, eventualmente de alunos e professores, pelas ciências em geral. Um desses elementos é seguramente a interdisciplinaridade. No momento em que um depoimento aponta que, no ensino fundamental, a professora decide-se pela interpretação de texto em detrimento da matemática, parece que ambas, a interpretação de texto e a matemática, estão “em oposição”. Mas essa “oposição” não se manifestaria como resultado de uma atividade onde um problema matemático aflorasse naturalmente de uma situação do quotidiano. A interpretação de texto seria possivelmente um elemento integrante dessa emergência, e não algo antagônico. Entender o significado de “juro” é essencial para a interpretação de uma matéria de jornal que trate de economia doméstica e compras a prazo, por exemplo. Para que o aluno consiga aprender (ou retomar) conceitos que envolvem escalas e medidas é necessário, segundo os professores de Física entrevistados, retomar o que foi, ou deveria ter sido, ensinado no Ensino Fundamental, na medida que surge a necessidade do conceito. F1 afirma que “sempre que envolve transformações de unidade, de escalas, eu procuro retomar isso que já foi visto no ensino fundamental e na matemática, mas que na verdade não fica [...]. Ele até viu, mas já esqueceu, não foi suficiente, não gravou”. A retomada dos conceitos deve ser feita, segundo F1, de forma gradual, dependendo da necessidade, mas não fazendo uma revisão de todo o conteúdo como se o aluno nada tivesse aprendido. 85 Fica evidente aqui uma contradição entre duas visões de aprendizado, em grande parte antagônicas: 1- aprendizado por acumulação, a metáfora do balde, de Popper29, de relação linear e progressiva, de pré requisito; 2- de aprendizagem por retomadas sucessivas do mesmo tema, por (re) construção gradual do objeto de aprendizagem a partir da perspectiva do aluno. Uma forma de fazer essa retomada, talvez mais afinada com a segunda visão, enunciada acima, é sugerida pelo professor F2. [...] na conversão de escalas tu tenta envolver bem a matemática e, em cima disso, a gente tenta explicar bem pra eles, se tu for construir uma figura, pra gente usar como exemplo, se você é um engenheiro e vai construir uma casa, você não vai fazer a planta da casa em tamanho normal, então eles têm lá a escala que ele utiliza, por exemplo, um metro pra ele é equivalente a um centímetro na planta que ele faz, só que isso pra eles, eles tem uma percepção que é muito difícil eles entenderem, então a gente sempre visualiza. (ENTREVISTA COM F2, PROFESSOR DE FÍSICA DO ENSINO MÉDIO) Para ele mostrar como surgiram as unidades e a sua importância pode ser uma boa alternativa para que o aluno aprenda a trabalhar com medidas. Para todos os professores de Física entrevistados escala e medida aparecem como sinônimo de conversão de unidades, de combinação de unidades fundamentais. O que até faz sentido, pois são aspectos importantes das grandezas, são seus “nomes próprios”, suas “carteiras de identidade” (consoante, em especial ao que é elaborado na sessão 1.3). Para F2 os alunos sentem muitas dificuldades para trabalhar o conceito de escala, mas trabalhar com exemplos do cotidiano pode ser uma alternativa para sanar essa dificuldade. Na conversão de escalas é possível fazer uso de exemplos práticos que envolvam a matemática. Escalas e medidas podem ser utilizadas também como facilitadoras na comunicação dos seres humanos, seja entre cientistas, seja entre relações comerciais, como foi sugerido no primeiro capítulo, porém, não fica claro que essa percepção esteja presente nos depoimentos dos professores entrevistados. M4 acredita que os professores devam expressar a importância histórica dos conceitos, a partir de quais fundamentos foram formulados, quais necessidades fizeram com que ele surgisse para depois partir para as aplicações práticas: “Eu começo contando a história de como surgiram as medidas, depois disso trabalho com instrumentos de medidas, régua, trena, esse tipo de coisa”. Na perspectiva desse trabalho (em especial no capítulo 1) a historicidade dos conceitos ajuda a (re) estabelecer a dimensão humana do conhecimento. A 29 Conforme Silveira (1997, p. 9) a teoria do balde mental determinada por Popper afirma que a concepção de que “o conhecimento consiste de percepções acumuladas ou percepções assimiladas, separadas e classificadas”. Essa teoria já havia sido afirmada por Aristóteles que “afirmara que nada há no intelecto humano que antes não tenha estado nos órgãos dos sentidos”. 86 ciência é feita por seres humanos, para seres humanos. Essa visão de que a história dos conceitos é importante é abordada pelos Parâmetros Curriculares Nacionais, assim como pelos livros-texto analisados. Praticamente todos os professores de Física e Matemática salientam o caráter instrumental das disciplinas, como pode ser visto no depoimento de M4, que afirma que “quando a gente vai trabalhar área, perímetro, eu meço com eles a quadra, esse tipo de coisa e depois dou os problemas de aplicação”. O professor de Matemática M5, também acredita que aplicações práticas possam auxiliar no desenvolvimento dos conceitos. Para ele, uma forma que auxilia o aluno a aprender, é a visualização do objeto, “às vezes a gente trabalha assim, pega uma embalagem de um remédio, lá tem tantos ml, então vamos ver o volume, vamos calcular, vamos ter uma noção, vamos calcular a área dessa caixinha então”. Note-se que “saber” aqui pode ter o sentido de “ter uma noção” de um determinado volume, através de sua comparação com algo pré-conhecido: “cabe meio litro nesta caixa?”. Para trabalhar o sistema de medidas o professor afirma que procura explicar o motivo das conversões, retomando as dificuldades identificadas até o momento e fazendo com que os alunos operem sobre o objeto, sugerindo que construam um metro quadrado, um metro cúbico. Está presente aqui a noção de que, para aprender, precisa-se operar sobre o objeto de aprendizagem. Talvez esteja aí um dos problemas do aprendizado mecânico: os alunos não operam sobre os conceitos a aprender. A forma de trabalho desse professor vai ao encontro do pensamento de Carvalho (1994, p. 17) que afirma que “o trabalho nas aulas de matemática deve oferecer ao aluno oportunidades de operar sobre o material didático para que, assim, possa reconstruir seus conceitos de modo mais sistematizado e completo”. Para o professor entrevistado, implicitamente, parece existir a noção de que a matemática é uma ciência abstrata, mas tem a possibilidade de ser aprendida inicialmente por meios “concretos”, os quais poderiam ajudar a ressignificação dos conteúdos. De acordo com os PCN (Brasil, 2002, p. 12) “o conhecimento científico deve ser trabalhado numa perspectiva interdisciplinar”. Entretanto, os professores entrevistados de ambas as disciplinas chegam à conclusão de que ela, no sentido prático, não existe na escola. Os professores de Física F1 e F3 afirmam que a Física não é uma ciência isolada, pois estuda fenômenos da natureza, assim como a Química e a Biologia. Porém, em geral, é pouco associada a outras disciplinas por diferentes motivos. F1, por exemplo, afirma que procura relacionar conteúdos com o professor de Matemática M5, mas apenas no que diz respeito a construção de gráficos, e com a Biologia, quando trata de ondas sonoras, fazendo com o professor desta última a relação entre o funcionamento do ouvido e a propagação do som. Percebe-se aqui duas ideias interessantes: “tudo está envolvido” e também “a estrutura das 87 disciplinas não pode ser entendida como apresentando limites rígidos, intransponíveis.” Uma disciplina pode reunir conhecimentos a partir de um critério de “afinidade”. Mas a disciplina não pode delimitar um território por meio de barreiras invioláveis e intransponíveis. Essa pequena digressão serviria para colocar dentro de um contexto a expressão “ditadura do conteúdo”. Desenvolvendo um pouco mais, o que o entrevistado disse através de um exemplo foi que, o ouvido não é propriedade da biologia, nem da física, nem da música... As ideias interdisciplinares estão implícitas no depoimento desse professor. Pombo (2004, p. 20) complementa afirmando que a interdisciplinaridade acontece naturalmente, ela é “algo que nós queremos fazer, que temos vontade de fazer e, ao mesmo tempo, qualquer coisa que, independentemente da nossa vontade, se está inexoravelmente a fazer, quer queiramos quer não”. A falta de diálogo entre professores é comunicada nas entrevistas e se justifica por diferentes motivos. F1 acredita que o que falta são oportunidades para desenvolvê-la, já que os conteúdos geralmente estão envolvidos. Já para F2 o que falta é tempo para que se realizem essas discussões, mesmo que essas sejam importantes e necessárias, tanto para professores quanto para alunos, acabam, muitas vezes, sendo deixadas de lado, discutindo-se apenas quais conteúdos serão tratados em cada disciplina no decorrer do ano. De forma não muito diferente, os professores de Matemática afirmam que a matéria é essencial e está relacionada à outras disciplinas, porém, também há pouca discussão sobre a interdisciplinaridade. A maioria das discussões envolvem, apenas, o andamento dos conteúdos, entre os professores de matemática, mas a discussão com outras disciplinas raramente é feita. Segundo o professor de Matemática M1 em geral não há discussão entre colegas, o que há é a solicitação de professores de outras áreas para que se trabalhe determinado conteúdo. Acontece mais, de os professores de outras áreas me procurarem para trabalhar com os alunos a construção de gráficos, para interpretar dados, ou trabalhar com os professores mesmo. Agora mesmo a professora de português pediu que construísse para ela um gráfico de alguns dados que os alunos coletaram em um projeto, então nesse caso há interação com outra disciplina. (PROFESSOR M1, DE MATEMÁTICA) A ocasião citada poderia ser um excelente momento para retomar, na aula de português, a construção do significado de alguns termos, como escala, proporção, etc. Dessa forma, os alunos apropriar-se-iam de um “conteúdo” que é inerentemente matemático (gráfico) construindo seu significado no interior mesmo de um ambiente de aprendizagem que 88 não é necessariamente específico da matemática, no qual a ênfase é o significado das palavras, a construção das sentenças, a fabricação de um sentido, a expressão precisa de ideias. Essa seria um pouco a “mágica” da interdisciplinaridade. As trocas ocorrem também num sentido prático, andar juntos com a matéria, por exemplo. Essa organização é necessária, há um trabalho de organização do grupo de professores que, certamente, deve ser feito. Mas, conforme o depoimento do professor M1, e confirmado por M3, a matemática fica circunscrita à condição de ferramenta para as outras disciplinas, e dessa forma as ideias de interdisciplinaridade, expressas anteriormente nessa dissertação, não vingam. Uma questão levantada pelo professor M5 é que os alunos acabam questionando as diferentes formas com que um mesmo conteúdo é trabalhado, citando como exemplo a relação das figuras geométricas com a Química. A parte da geometria por exemplo, acontece quando a química está trabalhando as ligações. Então os alunos discutem a maneira como que a professora de Química desenha o tetraedro é diferente da minha, porque eu quero ver mais as faces e ela quer os vértices e mostrar as ligações do carbono. Então eles ficam questionando se é a mesma figura, gera toda uma polêmica. (PROFESSOR M5, DE MATEMÁTICA) Para os alunos, cria-se confusão; eles podem imaginar que são figuras diferentes, ou pelo menos, figuras que apresentam propriedades diferentes. Cabe aqui uma questão: não seria, talvez, trabalho dobrado o fato de os professores de disciplinas diferentes estarem simultaneamente trabalhando com um mesmo “objeto” (neste caso, uma figura matemática), sem que as propriedades de interesse para cada uma das disciplinas sofram pelo menos uma tentativa de articulação? Se houvesse maior comunicação, talvez “sobrasse tempo”, como reclama o professor de Matemática M3, para discutirem mais questões voltadas à construção sólida de um conhecimento que pudesse transitar pelas várias disciplinas. Os PCN (Brasil, 2002a, p. 119) sugerem que uma articulação lógica de ideias e conceitos diferentes garantem uma maior significação para a aprendizagem, possibilitando ao aluno o estabelecimento de relações e tornando mais eficaz a utilização do tempo disponível. O processo de aprendizagem poderia também, nesse caso, ser interpretado como um retorno ao ponto de partida, mas um retorno a cada vez mais aberto e esclarecido, a discussão sobre se o tetraedro da química é o mesmo da matemática é uma ocasião única de aprendizagem é um retorno necessário. Diante dos elementos aqui recolhidos é possível perceber que o conceito fundador ou 89 ideia base de medida não está presente na percepção dos envolvidos. A medida, uma das ideias geradoras da matemática, aparece nos entrevistados como ferramenta, apenas isso. O que não se pode estranhar: da mesma forma, nos livros de Física analisados, a noção de medida está predominantemente direcionada à conversão de unidades, o que contribui para esconder o caráter fundamental que a primeira possui conforme argumentado em especial nas sessões 1.2 e 1.3. A interdisciplinaridade é em geral mencionada pelos entrevistados a partir de uma motivação “extrínseca”, quer dizer, ela não aparece como uma necessidade, diga-se, natural. Ela aparece como uma “imposição”, do plano pedagógico da escola, por exemplo. Mas os professores detectam isso, e mencionam como um grande problema do exercício de ações interdisciplinares a ausência de diálogo entre os envolvidos. O professor de Matemática M2 concorda que deveria haver maior união entre os professores, porém a correria do cotidiano dos docentes impede que seja dedicado um tempo maior para as discussões sobre os conteúdos. Uma das noções mais preciosas de interdisciplinaridade, (conforme argumentado no capítulo 2) um processo que resulta do envolvimento fecundo de múltiplas disciplinas a partir de um problema complexo, não é mencionada. Um ponto a ser retomado aqui é o fato de a ênfase no ensino da matemática e da física estar frequentemente na repetição, e não na construção. As unidades de medida aparecem muitas vezes como tediosos e maçantes exercícios de conversão, e nunca (ou quase) na sua historicidade. Na entrevistas coletadas apenas dois professores de Matemática comentaram que apresentam a história de alguns conteúdos. M4 afirma que é uma forma de iniciar o conteúdo e M5 propõe que os alunos pesquisem sobre o assunto que está sendo tratado em aula. Porém a maioria dos entrevistados afirma que segue o programa e trabalha numa rotina de resumo de conteúdo, exemplos e exercícios. M1 conta que faz uma pesquisa em diferentes livros-texto, dando preferência para livros mais antigos, pois contém maior número e diversidade de exercícios. M3 diz “sempre dou um exemplo, o conteúdo, mais exemplos e parto pro exercício”. Da mesma forma M4 comenta: “eu costumo explicar a matéria através de resumos, fazendo exercícios”. A Física segue a mesma linha conforme afirma F2: “sempre trabalho com resumo, sempre dou resuminho de matéria, exemplos, exercícios que é uma coisa que eles tem que fazer bastante... então eles fazem exercícios, resumo de matéria, sempre mais ou menos isso”. Nesse ponto é interessante salientar que, além dessa forma de trabalhar, a quantidade de exercícios é considerada importante para alguns professores, conforme foi dito anteriormente, a repetição toma o lugar da construção. Essa repetição transportada do discurso dos professores é citada no primeiro capítulo do 90 presente trabalho, pela voz de Miorin (1998) que afirma que a intenção de treinar algoritmos persistente até os dias de hoje pode ter origens no processo de ensino do Egito por volta de 2000 à 1600 a.C., quando os problemas eram dados aos estudantes como forma de apenas exercitá-los, eram problemas com quase nenhum significado, do ponto de vista dos alunos daquela época (e de hoje também). Um ponto unânime nas entrevistas é a presença de elementos do cotidiano nos conteúdos de Matemática e Física. O cotidiano aparece seguidamente como fonte de inspiração para as estratégias didáticas, M1, M2, M3 e M5 afirmam que, sempre que possível, procuram trabalhar com exemplos do dia a dia dos alunos. Em M5 percebe-se que está implícito que a motivação para o estudo está associada à possibilidade de manipulação, construção de sentido em associação com o cotidiano. Da mesma forma, os professores de Física F130, F231 e F332 convergem que a Física é uma ciência que estuda fenômenos do cotidiano e dessa forma procuram trabalhar com exemplos encontrados no dia a dia dos alunos. Os PCN (Brasil, 2002, p. 15) afirmam que o desenvolvimento da “ciência e tecnologia se amplia, tornando-se mais presente no cotidiano e modificando cada vez mais o mundo e o próprio ser humano”. Esse motivo, entre outros, faz com que o cotidiano esteja presente no discurso dos professores entrevistados. Fica uma dúvida: qual cotidiano justificaria essa verdadeira “obsessão” por exercícios? Onde está o cotidiano na rotina de fazer resumos e explicar a solução de exemplos? Ao retomar as ideias elaboradas neste capítulo é possível inferir que medir é considerada, pelos PCN, uma das habilidades a serem desenvolvidas pelos alunos do Ensino Médio nas disciplinas de matemática e física. Como competência a legislação prescreve que o aluno deva ser preparado para ler e interpretar gráficos, escalas e medidas. É recomendado ainda que os livros didáticos utilizados nas escolas cumpram as orientações propostas pelos Parâmetros Curriculares Nacionais, o que é, pelo menos no âmbito dos conceitos tratados nessa investigação (escalas e medida), atendido (ver sessões 3.2.2 e 3.2.3). Através da análise dos livros didáticos de física e matemática pode-se perceber que ambos estão adequados às orientações dos PCN. Todos fazem abordagens dos aspectos históricos, trazem análise de gráficos, aplicações práticas. No de matemática há alguns pontos que levam o aluno a questionar o significado da medida; já no de física é o ato de medir propriamente dito que aparece mais explicitamente no decorrer do texto. A questão da interdisciplinaridade é apontada pelos Parâmetros Curriculares 30 F1 afirma que a Física “é uma ciência, uma ciência que estuda nosso dia a dia, os fenômenos, a natureza.” 31F2 define a Física como “a ciência do dia a dia, não só como uma matéria obrigatória da escola”. 32 F3 trabalha “com situações do dia a dia, com exemplos encontrados e citados no dia a dia”. 91 Nacionais como uma forma de preparar o aluno para resolver problemas reais. Há a intenção de ampliar e aprimorar o conhecimento científico através da promoção de uma visão articulada dos problemas. Nas entrevistas coletadas foram encontrados diversos elementos sobre a forma como estão sendo ensinados os conteúdos de matemática e física. Para alguns professores, os alunos não aprendem certos conceitos porque já trazem essa deficiência do Ensino Fundamental. A ideia de pré-requisito está implícita no discurso desses. O conceito de escala, por exemplo, está, em muitos casos, relacionado à conversões de unidades. A medida se reduz ao ato instrumental de medir. A interdisciplinaridade, uma alternativa para auxiliar os alunos na construção de conceitos é, de acordo com as respostas dos entrevistados, pouco trabalhada no contexto da escola. 92 CONSIDERAÇÕES FINAIS O caráter histórico dos conteúdos a serem trabalhados pelos professores no Ensino Médio é considerado indispensável pelos Parâmetros Curriculares Nacionais para o desenvolvimento social e cultural do estudante. Por meio das análises dos livros didáticos foi possível perceber que em praticamente todos os capítulos encontra-se ao menos uma passagem histórica sobre o que está sendo estudado. Por esse motivo, para a realização deste trabalho foi feita inicialmente a retomada de alguns eventos essenciais para a compreensão dos conceitos de escala e medida ao longo do processo histórico do desenvolvimento das ciências a fim de conhecer melhor o objeto de estudo e encontrar elementos que justifiquem a importância dada ao tema. Pode-se, assim, perceber que a medida, que acompanha o ser humano desde muito tempo atrás, é considerada por alguns pesquisadores uma das ideias fundamentais para o desenvolvimento das ciências. Esse aspecto é pouco explorado nos livros texto, o que de certa forma é aqui indicado porque, nas entrevistas coletadas, há apenas uma menção ao caráter histórico das disciplinas; somente um professor afirma que recorre à história das medidas ao iniciar o trabalho sobre o assunto. No que diz respeito a interdisciplinaridade a maioria dos professores afirma não desenvolvê-la. Conforme Pombo (2004) a interdisciplinaridade é algo que surge como necessidade, não como escolha ou imposição. Entretanto, a consciência dos professores a respeito das ações interdisciplinares existe explicitamente, é bem verdade que não sob a forma de ações, que eles afirmam não desenvolver. Pode ser percebido nos depoimentos dos entrevistados que tanto a Matemática quanto a Física não são vistas como ciências isoladas, elas pertencem naturalmente a um contexto interdisciplinar, mas não há discussão entre essas (e outras) áreas de conhecimento a respeito da concretização dessas ações interdisciplinares. Parece que existe uma certa resistência em compartilhar experiências. Problemas complexos, para os quais concorrem conhecimentos de muitas áreas, são invariavelmente tratados por equipes interdisciplinares. O diálogo, mais do que apenas uma ocasião para se encontrar, um momento social, é uma necessidade inescapável. A solução de problemas complexos envolve invariavelmente conversa, negociação, troca entre equipes com diferentes formações de origem, com diferentes visões. Acredita-se que esse é um dos papéis da escola do século XXI: propiciar um ambiente permanente de troca, de construção de ideias a partir de conceitos vindos das disciplinas as mais diversas. Várias razões são apontadas para essa ausência de trocas, entre elas estão a 93 indisponibilidade de tempo dos professores e a falta de espaço para discussões. Seria possível acrescentar pelo menos mais uma: a falta de motivação para o trabalho coletivo. Mas tratar essa questão com um mínimo de profundidade exigiria a abertura de uma nova frente de investigação, o que transpõe os limites pretendidos para esta dissertação. Foi constatado nesta pesquisa, que muitos professores consideram que os conceitos de escala e de medida devam ser trabalhados mais intensamente no Ensino Fundamental. Essa ideia de pré-requisito ou de “crescimento cumulativo” dos conhecimentos predomina nos depoimentos dos entrevistados, ainda que o ensino por retomadas sucessivas - revisando e ampliando, dessa forma, o conhecimento dos alunos - também tenha se apresentado de forma explícita, em pelo menos um dos depoimentos. Os professores apontam de forma generalizada as dificuldades dos alunos no que diz respeito à conversão de unidades. A razão para isso poderia ser a seguinte: a medida é vista pela maioria dos professores como uma ferramenta e, da mesma forma, muitos livros didáticos a apontam como tal. Não surpreende, portanto, que os professores reclamem tanto da inépcia dos alunos na conversão de unidades. Os próprios livros-texto dão esse destaque, talvez excessivo. Poderiam ser respeitados aqui outros princípios didáticos maiores como, por exemplo, a garantia inicial de significação por parte dos alunos para os objetos e atividades a eles oferecidos. Além da ideia de medida como elemento de comunicação, explorada nas sessões 1.3.1 e 1.3.2, a medida deveria ser vista na sua integralidade, a saber, como um dos elementos de base para a física e a matemática (e, evidentemente, outras ciências também, talvez todas elas). Essa concepção de medida transcende o simples rótulo de ferramenta. A medida é uma representação de grandezas de mesma espécie, umas pelas outras. As leis físicas, seriam as mesmas ainda que todas as unidades de medida fossem modificadas. A medida pode ser vista, também, como demonstração na matemática, na qual também está implícita essa ideia. O resgate da ideia de medida como representação das grandezas umas pelas outras precisaria ser retomado na sua integralidade. O aspecto de comunicação que a medida possui é essencial para as relações entre as pessoas. Trocas comerciais são facilitadas quando a linguagem é a mesma. A presença de ações interdisciplinares parece ser necessária nesse ambiente de relações. No contexto escolar essas ações não podem ser diferentes. Como “entregar” ao aluno o conhecimento esquartejado em partes? A medida como troca não pode ser dissociada da medida como elemento fundador das grandezas, como recurso que nos permite “falar” delas, “exprimi-las” de maneira intersubjetiva. Do ponto de vista dos problemas presentes no quotidiano dos alunos, torna-se 94 difícil encontrar situações-problema que permitam elaborações profícuas com o uso de apenas uma disciplina. À luz de todas essas considerações reunidas, acredita-se ser possível responder de maneira razoavelmente argumentada à questão inicial dessa pesquisa: “Que argumentos ajudam a sustentar o encaminhamento de ações interdisciplinares no ensino de escalas e medidas no Ensino Médio?” No decorrer desta pesquisa foi possível perceber que a presença de ações interdisciplinares é necessária, poderia-se dizer indispensável, para que o aluno se aproprie do conceito de escala na sua integralidade, a saber, tanto no seu aspecto de fundadora das relações entre grandezas, quanto no seu aspecto de vetor de comunicações, seja entre cientistas, seja entre a população em geral. Uma pergunta: é possível a apropriação desse caráter comunicativo da medida no dentro de uma única disciplina? É possível perceber o aspecto de representação intrínseca que a medida possui, no interior de praticamente todas as ciências, estando confinado no seio de apenas uma delas? A resposta é, evidentemente, não. O tema desta pesquisa, “escalas e medidas”, não pertence à Matemática ou a Física. A medida de forma direta ou indireta está presente em praticamente qualquer investigação científica. Disso pode-se afirmar que ela está presente no contexto de qualquer problema complexo. Como sugestão para pesquisas futuras, propõe-se (entre outras possibilidades) um estudo empírico mais aprofundado sobre a posição dos alunos no que diz respeito ao estudo de escalas e medidas e a influência da interdisciplinaridade na construção desses conceitos. Assim como uma investigação sobre a organização atual dos currículos de Matemática e Física, buscando encontrar outras respostas para compreender melhor a forma como são ensinados os conceitos de escala e medida e em que a interdisciplinaridade pode contribuir na aprendizagem dessas noções. 95 REFERÊNCIAS: ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. 5 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007. ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. 4 ed. 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Estuda-se hoje matemática como uma simples junção de fórmulas e teoremas acabados, sem uma formulação, uma dedução que faça com que o aluno perceba como se chega aos resultados. Recebendo dessa forma o aluno acaba por se desmotivar e deixa de dar importância ao que está aprendendo. Nas últimas décadas se produziram muitos novos conhecimentos nas ciências exatas, mas esses conhecimentos nada mais são do que os resultados da construção de toda a história da humanidade. Assim, conhecer o caminho histórico da matemática orienta o aluno na aprendizagem e no desenvolvimento da matemática atual. Acredita-se que o homem povoou a Terra a cerca de 100.000 anos atrás, tendo domínio do fogo e da linguagem. Antes mesmo dessa época o homem já vinha acumulando conhecimento sobre os objetivos que lhes eram importantes, tais como as sociedades, os aspectos culturais das comunidades, iniciando as primeiras civilizações há aproximadamente 10.000 anos. Os grandes avanços da matemática grega foram desenvolvidos por Talles de Mileto e Pitágoras de Samos. Segundo Boyer, o desenvolvimento teórico da matemática como a aproximação entre ciência em geral e, especialmente, a geometria e ética aparecem de forma ainda mais significativa no pitagorismo. De acordo com D'Ambrósio a maior parte das bases do conhecimento matemático atual “está na obra dos três maiores filósofos da Antiguidade Grega, Sócrates, Platão e Aristóteles, que viveram no século IV a.C.” (p. 36). Para Platão a matemática e a filosofia eram a base do conhecimento humano, porém estava divida em duas linhas utilitária e abstrata, a primeira voltada aos comerciantes e artesãos, a outra voltada aos intelectuais e dirigentes, a elite. 33 Mestranda do PPGEDU da Universidade de Caxias do Sul - marciahw@brturbo.com.br 102 PITAGORAS DE SAMOS O fato de negar-se, peremptoriamente, a historicidade de Pitágoras, (como alguns o fazem) por não se ter às mãos documentação bastante, não impede que seja o pitagorismo uma realidade empolgante na história da filosofia, cuja influência atravessa os séculos até nossos dias. (SANTOS, p. 15) Chamado de profeta místico por alguns autores, Pitágoras, segundo alguns registros, nasceu em Samos por volta de 590 a 560 a.C, existem poucos documentos sobre sua biografia, sabe-se que nessa época surgiram diversas novas religiões e seitas. O pitagorismo foi uma ordem comunitária no sul da Itália, a escola era um centro que se dedicava ao estudo da filosofia, da matemática e ciências naturais. As descobertas eram reconhecidas como sendo da comunidade pitagórica, não de um membro específico. Havia um código de conduta rígida, onde era imposto o vegetarianismo, devido à crença de que no animal que seria sacrificado pudesse ter a alma de algum familiar. A matemática e a filosofia eram as bases para a moral e a conduta. Figura1: Mapa da região onde Pitágoras provavelmente nasceu e viveu. Fonte: http://www.adorofisica.com.br/trabalhos/alkimia/mat2/TRAB1.htm Só poderia conhecer o pensamento pitagórico aquele que tivesse um conhecimento de elevado grau, para que não houvesse uma 'confusão' entre conhecimento e esoterismo. Assim só poderiam ser revelados certos conhecimentos, no momento oportuno, quando o aluno tivesse alcançado um grau tão elevado, que poderia conhecer sem causar nenhum prejuízo à comunidade. 103 O universo era matematicamente ordenado. Conforme Cambi (1999, p. 98), a escola pitagórica era uma espécie de seita cultural e religiosa, seu saber sagrado: a matemática. O número era o fundamento do cosmo, a harmonia do mundo. A música, baseada nas razões numéricas. Há registros de que havia rituais de purificação da alma dos pitagóricos. De acordo com Boyer (1991, p. 34) “as harmonias e mistérios da filosofia e da matemática” eram partes essenciais dos atos de purificação da alma. Encontra-se nos fragmentos de Filolau, conhecido por ser um possível traidor dos pitagóricos, por ter tornado esotéricos certos conhecimentos, que não deveriam ser revelados até o momento certo, uma frase que esclarece bem, o pensamento pitagórico: “E todas as coisas, as que pelo menos são conhecidas, têm número; pois não é possível que uma coisa qualquer seja, ou pensada ou conhecida sem o número.” (Santos, p. 32). Para o pitagorismo, a medida era feita especificamente através do número inteiro, da unidade, da medida. No quinto fragmento de Arquitas (Santos, p. 41) encontra-se uma comparação entre sensação e razão. A sensação seria “o princípio e a medida dos corpos” e a razão “o princípio e a medida dos seres inteligíveis”, associando a razão como princípio da alma e da ciência e a sensação como princípio do corpo, da opinião. Para os pitagóricos a razão seria “perfeitamente simples e indivisível, como a unidade e o ponto.” Percebe-se que de qualquer forma o número estava associado a todos os pensamentos, quaisquer que fossem. O número, para o pitagorismo era definido, não só pela medida do quantitativo pela unidade, mas também pela forma, pela proporcionalidade das coisas. O número seria a ordem, a relação que envolve as partes e o todo. Assim o número apontaria para além do quantitativo, para o qualitativo, o relacional, a modalidade, os valores. E nas relações entre as coisas haveria uma harmonia, não só entre os semelhantes, mas também entre os opostos. A música é um dos exemplos que Pitágoras destaca, ele cita todas as artes. Todos os fatos que tivessem uma relação, uma concordância constituindo algo novo, se harmonizariam. A harmonia era o ideal máximo dos pitagóricos. 104 INCOMENSURABILIDADE34 Para o pitagorismo a essência de tudo era explicada nas propriedades e razões entre os números inteiros, na geometria como nas questões práticas e teóricas da vida do homem, pode ser explicada em termos das propriedades dos números inteiros e suas razões. Com a descoberta de que inteiros e suas razões não eram suficientes para descrever algumas propriedades da geometria, houve uma reviravolta no conhecimento matemático, abalando a crença religiosa pitagórica. Os diálogos de Platão mostram, no entanto, que a comunidade matemática grega fora assombrada por uma descoberta que praticamente demolia a base da fé pitagórica nos inteiros. Tratava-se da descoberta que na própria geometria dos inteiros e suas razões eram insuficientes para descrever mesmo simples propriedades básicas. (Boyer, p. 50). Não se sabe ao certo como, nem quando fora feita essa descoberta. É provável que Pitágoras não tenha chegado a conhecer o problema da incomensurabilidade. De acordo com Boyer, (p. 50) acredita-se que a descoberta fora feita por pitagóricos antes de 410 A.C. “Alguns a atribuem especificamente a Hipasus de Metapontum durante a primeira parte do último quarto do quinto século a.C., enquanto que outros a colocam meio século mais tarde”. Os pitagóricos acreditavam que a partir de dois segmentos de reta AB e CD, seria sempre possível encontrar um terceiro segmento EF, contido certo número inteiro de vezes em AB e outro número inteiro de vezes em CD. O segmento EF é uma espécie de múltiplo comum de AB e CD, esta situação é plausível, visto que é possível dividir em partes iguais até encontrar esse segmento EF, mesmo que sejam partes extremamente pequenas. Existem, porém, segmentos nos quais não é possível encontrar múltiplos comuns que formem um segmento comensurável, por exemplo, se AB e CD não possuem um fator comum EF, esses segmentos são chamados incomensuráveis. Supõe-se que a descoberta desse problema se deu em função da aplicação do teorema de Pitágoras, o qual demonstra que a soma do quadrado dos catetos é igual ao quadrado da hipotenusa, no triângulo retângulo isósceles. Seja a figura 1, um retângulo de lado l e diagonal d: 34 Incomensurável: Que não tem medida comum à outra grandeza. 105 l d Figura 2: Retângulo de lado l e diagonal d. É possível provar a incomensurabilidade da diagonal desse quadrado supondo-se que tanto o lado l, quanto a diagonal d sejam comensuráveis, ou seja, a razão d/l é racional e igual a p/q, com p e q pertencentes ao conjunto dos números inteiros, e não possuem fator comum, ou seja, um não é divisível pelo outro. O Teorema de Pitágoras afirma que d²=l²+l² = 2l², então (d/l)² = p²/q² = 2, ou p² = 2q². Assim, p² é um número inteiro e par e, portanto q só pode ser ímpar, pois 2 divide qualquer número par. Supondo-se que p=2r, substituindo na equação p²=2q², tem-se (2r)² = 2q², que implica em 4r²=2q², que implica em q²=2r². Então q² também é par e, portanto q é par. Porém, provou-se que p é par e q ímpar ambos inteiros. Como um número não pode ser ao mesmo tempo par e ímpar, prova-se assim que d e l são incomensuráveis. Aristóteles se referiu a uma prova semelhante da incomensurabilidade, baseada na distinção entre pares e ímpares, pela diagonal e o lado do quadrado. Transcrevendo para um exemplo numérico. Para descobrir a diagonal d de um quadrado de lado l = 1 será necessário aplicar o Teorema de Pitágoras. Tem-se então: d² = l² + l², ou seja d² = 2l², como l = 1, d² = 2. Logo d = √2, e portanto d não é um número inteiro. A perfeição da concordância entre a geometria e a aritmética foi abalada, causando então o declínio do pitagorismo como filosofia natural. De acordo com Godefroy (1997, p. 50) “Aqueles que trazem más noticias são raramente bem recebidos, e parece que o autor do resultado apenas tenha sido mediocremente recompensado pelo seu trabalho.”. O autor cita ainda o comentário de Pappus que diz “... aquilo que não tem forma nem nome deve permanecer escondido, sob pena de ver a alma arrastada para o mar do futuro, afogada no incessante movimento das correntes”. A partir da escola pitagórica a matemática teve um avanço extraordinário, continuado pela escola de Platão e concluído por Arquimedes. A cultura ocidental é herdeira desse desenvolvimento grego da matemática. 106 CONCLUSÃO O Teorema de Pitágoras é considerado hoje um dos mais importantes teoremas utilizados em matemática, sobretudo em geometria. É um clássico exemplo de uma tábua de multiplicação35 e um estudo aprofundado de escalas e medidas. Na escola o Teorema de Pitágoras é construído a partir das séries iniciais mas é formalizado na sétima série em matemática e ampliado na oitava no ensino de física. Os pitagóricos revolucionaram a matemática, atribuindo sentido, deixando de ser uma disciplina puramente prática, mas também filosófica e passando a ser vista como uma ciência natural. O pensamento pitagórico estava certo em muitos pontos e trouxeram muitas contribuições para o conhecimento em todas as áreas. Pois ao se pensar em qualquer coisa, pensa-se em números, não apenas em números naturais como afirmavam os pitagóricos, mas numa expansão dos naturais, que compreende também os irracionais, os reais, os complexos. O problema da incomensurabilidade serviu para ampliar o conjunto numérico. Dando início a inovações na matemática e nas demais áreas do conhecimento. Tudo é explicado através de números, não é possível discordar dessa afirmação. E hoje se percebe claramente como tudo seria mais difícil sem os números irracionais. 35 Tábua de multiplicação: conhecida também por Tábua de Pitágoras, utilizada algumas vezes, no ensino de divisão e multiplicação para crianças de 1ª a 4ª séries do ensino fundamental. É uma tabela quadrada, possui linhas e colunas, a primeira linha e a primeira coluna possui os números de 0 (zero) à 10 (dez), as linhas e colunas do meio são os resultados das multiplicações dos números das extremidades esquerda e superior, seus resultados variam de 0 (zero) a 100 (cem). 107 RERERÊNCIAS: ÁVILA, Geraldo. Análise Matemática para licenciatura. São Paulo: Editora Edgard Blücher, 2001. BOYER, Carl B. História da Matemática. São Paulo: Editora Edgard Blücher, 1996. CAMBI, Franco. História da pedagogia. São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1999. D'AMBRÓSIO, Ubiratan. Educação matemática: da teoria à prática. 10ª ed. Campinas: Papirus, 1996. EVES, Howard. Introdução à história da matemática. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2004. GODEFROY, Gilles. A aventura dos números. Lisboa: Editions Odile Jacob,1997. SANTOS, Mário F. dos. Pitágoras e o tema do número. São Paulo: Logos, 1959. 108 APÊNDICE B: ESTRUTURA DAS ENTREVISTAS VOLTADAS AOS PROFESSORES Entrevista voltada aos professores de matemática: 1. Como você definiria “Matemática”? 2. Conte-me um pouco sobre como você (elabora e) ensina matemática? 3. Como você trabalha os conteúdos que envolvem escalas e medidas? 4. Você discute com seus colegas os conteúdos das disciplinas e a forma como os conteúdos são trabalhados? Por quê? (Caso a resposta seja positiva será feita a seguinte pergunta: Você discute só com os colegas de matemática? Há trocas de ideias com colegas de outras áreas?) Entrevista voltada aos professores de Física 1. Como você definiria “Física”? 2. Conte-me como você trabalha os conteúdos de Física com seus alunos? 3. Quais as ideias, temas, conteúdos que você acha mais importantes que sejam ensinados em Física? 4. Como você trabalha conteúdos que envolvem escalas e medidas? 5. Você discute com seus colegas questões voltadas à Física que estão presentes também nas outras disciplinas?