1 UNIVERSIDADE DE CAXIAS DO SUL CENTRO DE CIÊNCIAS JURÍDICAS PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU EM DIREITO MESTRADO EM DIREITO FABIANO CAMOZZATO RAYMUNDI A PUBLICIDADE GARANTIDA PELO REGISTRO DE IMÓVEIS E A PROTEÇÃO AMBIENTAL CAXIAS DO SUL 2011 2 UNIVERSIDADE DE CAXIAS DO SUL CENTRO DE CIÊNCIAS JURÍDICAS PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU EM DIREITO MESTRADO EM DIREITO FABIANO CAMOZZATO RAYMUNDI A PUBLICIDADE GARANTIDA PELO REGISTRO DE IMÓVEIS E A PROTEÇÃO AMBIENTAL Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em Direito no Programa de Pós-Graduação em Direito da Faculdade de Direito da Universidade de Caxias do Sul. Orientador: Prof. Dr. Carlos Alberto Lunelli CAXIAS DO SUL 2011 Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Universidade de Caxias do Sul UCS - BICE - Processamento Técnico R273p Raymundi, Fabiano Camozzato, 1975- A publicidade garantida pelo registro de imóveis e a proteção ambiental / Fabiano Camozzato Raymundi. - 2011. 147 f. ; 30 cm. Dissertação (Mestrado) – Universidade de Caxias do Sul, Programa de Pós-Graduação em Direito, 2011. Orientador: Prof. Dr. Carlos Alberto Lunelli 1. Direito ambiental. 2. Direito imobiliário - Registro de imóveis. 3. Direito privado – publicização. 4. Direito público I. Título. CDU 2.ed.: 349.6 Índice para o catálogo sistemático: 1. Direito ambiental 349.6 2. Direito imobiliário – Registro de imóveis 347.235 3. Direito privado - publicização 347:342 4. Direito público 342 Catalogação na fonte elaborada pela bibliotecária Cleoni Cristina G. Machado CRB- 10/1355 4 Dedico este trabalho à minha esposa Ângela, pelo apoio, amor e compreensão despendidos nos momentos mais difíceis desta jornada. 5 AGRADECIMENTOS Agradeço a Deus, por mais esta conquista. Sem Ele nada seria possível. Aos meus pais, Lacy e Teresinha, que sempre investiram, apoiaram e acreditaram em mim. Ao Professor Dr. Carlos Alberto Lunelli, pela dedicação, incentivo e sinceridade em suas brilhantes orientações. À minha esposa Ângela, que sempre esteve ao meu lado, me apoiando e incentivando, com muito carinho, amor e compreensão. Ao meu cunhado Fernando, pelo apoio, incentivo e conselhos de quem já passou por esta experiência. 6 RESUMO No Direito Romano, a proteção da propriedade e a prova de sua titularidade era realizada através de ações, face à inexistência de um sistema de Registro de Imóveis. O direito de propriedade era extremamente individualista e patrimonialista. Com o feudalismo, a diferença entre o privado e o público começa a esmorecer. Surgem as codificações, na crença de que o Código seria um feixe infalível de hipóteses jurídicas que traria segurança jurídica. Com o tempo, o dogma da completude se tornou uma utopia. A descodificação é consequência direta. A Constituição Federal passa a regular os direitos inerentes à justiça, segurança, liberdade, igualdade, propriedade e herança, que antes estavam no Código Civil. A constitucionalização do direito privado surge com uma nova proposta de interpretações sistemáticas das leis, sempre à luz da Constituição. A propriedade sofre as influências de uma Constituição Federal mais voltada para o social, que impõe ao proprietário o atendimento à função social da propriedade. O atendimento à função social da propriedade também se dá pelo atendimento da legislação ambiental, naquilo que se denominou de função sócio-ambiental da propriedade. O Registro de Imóveis é instituído no Brasil e passa a gerar publicidade, autenticidade, segurança e eficácia dos atos jurídicos, transformando-se no sistema guardião da propriedade dos imóveis. O meio ambiente ecologicamente equilibrado e a sadia qualidade de vida passam a ser direitos fundamentais do cidadão e sua defesa e proteção cabe ao Poder Público e à coletividade. Após o Código de Defesa do Consumidor, o bem ambiental passou a ter natureza difusa, transindividual e pertencente à coletividade, fazendo do Poder Público seu mero gestor. Hodiernamente, na pós-modernidade, a informação é sinônimo de poder. A publicização de direitos é uma tendência da pós-modernidade. O direito ambiental tem, no Registro de Imóveis, um aliado na prevenção de litígios e na proteção ambiental. Os institutos de direito ambiental, que visam proteger o meio ambiente, tais como as unidades de conservação, necessitam da publicidade que o Registro de Imóveis oportuniza, através da averbação das restrições ambientais na matrícula do imóvel, para obter a publicidade e a segurança jurídica necessárias e prevenir o uso nocivo da propriedade. O Registro de Imóveis assume uma nova dimensão, como um instrumento de proteção ambiental. Palavras-chaves: Proteção Ambiental. Registro de Imóveis. Publicidade. 7 ABSTRACT In Roman law the protection of property and evidence of its ownership was achieved through actions in the absence of a system of Property Registry. The right of ownership was highly individualistic and patrimonial. In feudalism the difference between private and public begins to falter. Encodings arise in the belief that the Code would be a beam infallible legal assumptions that would bring legal certainty. Over time the doctrine of completeness has become a utopia. The decoding is a direct consequence. The Federal Constitution is to regulate the rights inherent in justice, security, freedom, equality, property and inheritance that were previously in the Civil Code. The constitutionalization of private law emerges with a new proposal for a systematic interpretation of the law where the light of the Constitution. The property suffers the effects of a Federal Constitution more focused on the social, which requires the owner to attendance the social function of property. The attendance to the social function of property is also given for the care of environmental legislation, in what was termed the socio-environmental function of property. The Property Registry is hereby established in Brazil and comes to generating publicity, authenticity, safety and efficacy of legal acts, becoming the guardian system of ownership of property. The ecologically balanced and healthy quality of life become the rights of the citizen and his defense and protection rests with the Government and the community. After the Code of Consumer Protection, the environmental goods started to have diffuse nature, transindividual belonging to the community, making the Government its mere manager. In our times, in postmodernity, the information is synonymous with power. The publicity of rights is a tendency of post- modernity. Environmental law has, in the Property Registry, an ally in preventing disputes and environmental protection. The institutes of environmental law meant to protect the environment, such as conservation areas, they need the publicity the Property Registry provides an opportunity through the registration of environmental restrictions on registration of property, to get publicity and legal certainty and prevent harmful use of property. The Property Registry assumes a new dimension, as an instrument of environmental protection. Keywords: Environmental Protection. Property Registry. Publicity. 8 SUMÁRIO 1INTRODUÇÃO.......................................................................................................................9 2 O INSTITUTO DA PROPRIEDADE PRIVADA: DO DIREITO ROMANO AO CONTEMPORÂNEO..........................................................................................................12 2.1 Ideia de proteção da propriedade privada no direito romano.............................................13 2.2 Propriedade como instituto de direito privado...................................................................25 2.3 Registro de imóveis: proteção da propriedade e segurança jurídica..................................42 3 PROTEÇÃO AMBIENTAL E PROPRIEDADE.............................................................60 3.1 A natureza do bem ambiental.............................................................................................61 3.2 A compreensão atual do instituto da propriedade..............................................................72 3.3 A função social da propriedade e o meio ambiente...........................................................87 4 PUBLICIZAÇÃO DO DIREITO, PROTEÇÃO AMBIENTAL E UMA NOVA DIMENSÃO DO REGISTRO DE IMÓVEIS................................................................101 4.1 Da concepção privatista à publicização do direito: uma marca da pós-modernidade.......102 4.2 Unidades de conservação e registro de imóveis................................................................114 4.3 Averbação das restrições ambientais no registro de imóveis............................................125 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS............................................................................................141 REFERÊNCIAS....................................................................................................................147 9 1 INTRODUÇÃO Ao longo de sua história, a propriedade tem sofrido inúmeras transformações provenientes das mudanças sócio-culturais pelas quais passa a civilização, sempre com reflexos nos sistemas de direito. Desde a civilização romana, uma das origens que fundamentam o sistema jurídico brasileiro, a propriedade sofre transformações em suas formas de aquisição, transmissão, proteção, garantia e segurança. No Direito Romano, a propriedade, principalmente a de bens imóveis, era sempre transmitida por sistemas que buscavam dar garantia e segurança ao proprietário, através de atos solenes, cuja característica principal era a publicidade do ato de transmissão. Os romanos buscavam um sistema capaz de garantir, com segurança, a propriedade imóvel ao cidadão. A proteção à propriedade, na época dos romanos, dava-se de forma precária. A proteção ao direito de propriedade somente era possível através de ações, inexistindo um sistema que assegurasse tal direito ao seu proprietário, sem que esse tivesse que lançar mão de uma ação para provar seu domínio sobre o imóvel. Com o avançar do tempo, naturalmente, o incremento do comércio gera a busca incessante de crédito perante as instituições da época, que utilizavam como garantia o instituto da hipoteca de bens imóveis. A necessidade de se identificar os imóveis que restavam hipotecados cria uma nova necessidade, a de se registrar a hipoteca, a fim de ofertar segurança nos negócios imobiliários, tanto para o proprietário quanto para a instituição concedente do crédito. No Brasil, inicialmente, os registros das hipotecas eram realizados nas paróquias das localidades em que se encontravam os imóveis. Os vigários das freguesias do Império realizavam o registro das posses, dando origem ao denominado “registro do vigário” que, com o tempo, originou o sistema de Registro de Imóveis. O Registro de Imóveis evolui, não só no Brasil, mas em vários países, como na Alemanha e na França e se revela um sistema eficiente na sua função de proteção ao direito de propriedade e de garantia de segurança jurídica ao cidadão. A sua grande contribuição se revela no efeito do registro de fornecer eficácia jurídica perante terceiros, através da publicidade dos atos, que lhe é inerente. As codificações, a partir do Código Civil da França, o Código Napoleão, de 1804, transformam o direito de propriedade em um direito absoluto, individualista e patrimonialista. Porém, as transformações sociais não são estanques e, a cada dia, geram outras necessidades, 10 exigindo do direito que se coadune com a nova realidade social. O direito de propriedade, que sempre fora visto como um direito absoluto, de um individualismo e um patrimonialismo exacerbado, começa a sofrer interferências de cunho social. A propriedade deixa de ser um direito estritamente individual e passa a considerar, em seu bojo, o interesse da sociedade. Com isso, nasce a função social da propriedade, que se consubstancia em uma interferência de interesse público, no âmbito privado da propriedade individual e tem por objetivo o exercício racional do direito de propriedade, em consonância com os interesses públicos, em detrimento do individualismo proprietário. Entretanto, as transformações sociais nunca cessam. Com a Revolução Industrial, surge a produção em massa, o consumismo exacerbado, o comércio sedento por lucro, novas necessidades, transformando os cidadãos em consumistas contumazes e, por consequência, ocasionando a escassez de recursos naturais, o que leva a sérios problemas ambientais. O direito ambiental está presente cada vez mais na vida dos cidadãos, interferindo, de forma positiva, nas relações do homem com o meio ambiente. O direito de propriedade utilizado de forma nociva ao meio ambiente pode acarretar desde desastres ecológicos, causados, geralmente, pela ocupação desordenada do solo, até o desaparecimento de espécimes animais e vegetais. Os institutos de direito ambiental que visam proteger o meio ambiente, tais como as unidades de conservação, poderão necessitar da publicidade que o Registro de Imóveis oportuniza para obter a segurança jurídica necessária aos institutos de direito ambiental, a fim de prevenir o uso nocivo da propriedade. O Registro de Imóveis poderá colaborar positivamente, não só na proteção da propriedade privada (função que bem desempenha atualmente), mas também na publicidade dos institutos de direito ambiental que visam modificar o comportamento do proprietário com relação ao meio ambiente. O desiderato da norma constante do artigo 225 da Constituição Federal, de conceder a todos o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, essencial à sadia qualidade de vida, com a colaboração do Poder Público e da coletividade, a fim de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações, poderá ser mais facilmente atingido com a colaboração do Registro de Imóveis, na publicização de direitos e restrições ambientais que possam recair sobre os bens imóveis. Não é de hoje que o Registro de Imóveis é um sistema eficiente, destinado à oferta de segurança jurídica, para a prevenção de futuros litígios envolvendo bens imóveis. A publicidade ofertada pelo Registro de Imóveis não apenas poderá garantir o direito de 11 propriedade ao cidadão, mas servirá também como um eficiente auxiliar na fiscalização do exercício racional do direito de propriedade, evitando abusos por parte do proprietário que possam gerar degradações ambientais. A publicização de direitos, aliás, é uma tendência da pós-modernidade, podendo passar a ser necessário e útil dar publicidade às restrições ambientais através do sistema de Registro de Imóveis, um sistema que poderá se utilizar da publicidade e da segurança jurídica, que são de sua essência, para prevenir degradações ambientais. Diante das modificações estruturais do direito privado, que passou de uma visão individualista e patrimonialista, que se constata do Código Civil de 1916, para uma visão moderna, de cunho social, trazida pela Constituição Federal e pela constitucionalização do direito privado, com imediatos reflexos no Código Civil de 2002, destaca-se não somente a função social, mas também a função sócio-ambiental da propriedade. Com efeito, o Registro de Imóveis, com sua principal característica de publicização de direitos, poderá estar apto a assumir uma nova dimensão, recebendo interferências de direito público em seu âmbito de tutela da propriedade privada, para abarcar dispositivos capazes de garantir o exercício sustentável do direito de propriedade. A aliança do Registro de Imóveis com o Direito Ambiental poderá resultar em benefícios para toda a coletividade, que contará com meios mais eficazes de controle do uso racional e sustentável da propriedade privada, bem como do atendimento da sua função social. 12 2 O INSTITUTO DA PROPRIEDADE PRIVADA: DO DIREITO ROMANO AO CONTEMPORÂNEO O homem sempre teve, em seus instintos mais primitivos, a vontade de possuir algo. Possuir bens, o “ter”, de alguma forma, sempre representou uma necessidade humana, seja para sobrevivência, seja para expressar algum tipo de poder. A noção de propriedade privada encontra-se presente na vida do homem, desde os tempos mais remotos. A família originou o Estado romano, de modo que, inicialmente, o território de Roma pertenceu ao povo e, somente tempos depois, por concessão do Estado, converteu-se em propriedade privada. No entanto, ao conceder as terras como propriedade particular aos cidadãos romanos, o Estado reservou-se o direito de intervir na propriedade privada quando tivesse interesse. A transmissão da propriedade, em Roma, ocorria através de determinados atos, alguns solenes, como a mancipatio, que exigia a presença de testemunhas, e como a in iure cessio, em que se pronunciavam palavras específicas diante de um magistrado. Há outros atos, não-solenes, como a traditio, em que simplesmente havia a entrega de um bem entre duas pessoas. A forma de transmissão variava, dependendo do tipo de bem objeto da transmissão. Essas formas primitivas de transmissão da propriedade, como se pode perceber, já traziam, em seu bojo, a ideia de que os bens mais valiosos dependiam de atos mais solenes para a sua transmissão, enquanto que bens menos valiosos, prescindiam de atos muito solenes. A solenidade dos atos buscava garantir alguma segurança para as pessoas envolvidas na transação, ora utilizando-se de testemunhas, ora utilizando-se de cerimônias solenes perante magistrados. A solenidade, portanto, sempre foi condição de segurança. Devido à inexistência, na época, de um sistema similar ao de registro das transmissões da propriedade em um Registro de Imóveis, muitas pendengas judiciais ocorriam na tentativa de se provar o direito de propriedade de alguém sobre uma área de terras. O sistema jurídico romano, deste modo, se viu na obrigação de oferecer formas de defesa da propriedade em juízo, através de ações, como a ação negatória e a ação reivindicatória. Após o surgimento das cidades, o regime de propriedade passa a ser o feudalismo, que durou até a Idade Média. Posteriormente à extinção do sistema feudal e a propriedade passa a um modelo liberal-individualista, propiciando o livre acesso e a livre circulação da propriedade. 13 A sociedade romana clamava por um sistema de direito acessível a todos e que garantisse a propriedade privada aos cidadãos. Eis que, no século XIX, surgem as codificações. Partindo do primeiro Código Civil, o Código Civil Francês de 1804, de Napoleão Bonaparte, que se preocupou inicialmente com dois assuntos principais, os contratos e a propriedade, propicia-se o acesso da sociedade à lei, de forma sistematizada, em um sistema capaz de enfeixar, em seu bojo, todas as regras necessárias para a convivência em sociedade. A codificação traduz a ânsia do povo por segurança jurídica. Os contratos inicialmente eram memorizados pelos chamados “sacerdotes memoristas”, passando pelos calígrafos, escribas e, finalmente, chegando aos tabeliães ou notários. As escrituras públicas eram redigidas pelos notários, com efeito inter partes. Com o passar do tempo, os negócios foram se aprimorando e ganhando espaço na vida em sociedade, surgindo a necessidade de realização de financiamentos, a fim de garantir os recursos necessários para a realização e manutenção dos contratos. Cria-se o direito hipotecário, como um direito de garantia aos financiadores do pagamento da dívida pelos financiados. A garantia utilizada na hipoteca é o bem imóvel. A necessidade de se controlar as hipotecas faz nascer o Registro de Imóveis que, com o tempo, de simples instrumento de controle de hipotecas, evolui e se torna o principal instrumento de segurança jurídica dos negócios imobiliários. O estudo desta evolução, desde a primeira noção de propriedade que o homem possuiu, passando pela propriedade no Direito Romano, até o surgimento e as finalidades do Registro de Imóveis no direito contemporâneo é o objeto do primeiro capítulo deste trabalho. 2.1 Ideia de proteção da propriedade privada no direito romano Desde os tempos mais priscos, o homem possui, em seus instintos mais primitivos, a noção de família e de apropriação de bens. O adensamento da população, a formação das tribos, das famílias, a ocupação do solo, a domesticação dos animais e o surgimento da agricultura iniciam a formação das primeiras noções de propriedade. Na pré-história da humanidade, a apropriação de produtos da natureza, mesmo que para a alimentação, marca a fase do estado selvagem, em que os homens viviam nas árvores e se alimentavam de frutos, nozes e raízes. Mais tarde, inicia o emprego dos peixes, crustáceos, 14 moluscos e outros animais aquáticos, na alimentação, além do uso do fogo. Segundo Engels1, “Seguindo o curso dos rios e as costas dos mares, o homem espalhou-se sobre a maior parte da superfície da Terra.” Na fase da barbárie, o homem inicia a domesticação de animais e o cultivo de plantas. A domesticação de animais oferece ao homem leite e carne, além da vida pastoril. Com o surgimento do arado de ferro e, com ele, da agricultura, inicia a derrubada de bosques e sua transformação em pastagens e terras cultiváveis, o que acarretou o aumento da produção de alimentos e, consequentemente, da população, que começou a se assentar, densamente, em pequenas áreas. A casa de um grego ou de um romano continha um altar. O chefe de família tinha a obrigação sagrada de conservar o fogo dia e noite. O fogo somente cessaria de brilhar sobre o altar quando toda a família tivesse perecido. Fogo extinto, família extinta. A família, por dever de religiosidade, permanece agrupada ao redor do altar. Segundo Coulanges2, “A família está ligada ao fogo doméstico, o fogo doméstico ao solo – assim, uma conexão estreita se estabelece entre o solo e a família”. Para o fiel cumprimento da regra religiosa, o fogo doméstico deveria ser protegido em um recinto cercado, a uma certa distância, por paliçada, sebe ou muro de pedra. Esta cerca delimita o domínio de um fogo doméstico de outro fogo doméstico, em um recinto sagrado. Este recinto, traçado pela religião, é o emblema mais certo do direito de propriedade. Os gregos costumavam dizer que foi o fogo sagrado que ensinou o homem a construir uma casa, isto porque a casa se situava sempre dentro do recinto sagrado, pois as paredes eram levantadas em torno do fogo doméstico para o isolar e proteger. A casa é consagrada pela presença perpétua dos deuses. Em Roma, pelo costume antigo, os mortos eram enterrados em túmulos, no campo de cada família. Para eles, os mortos eram deuses que pertenciam a uma família. Um túmulo, entre os antigos, jamais poderia ser destruído ou deslocado. A parte do solo que abrigava o túmulo se tornava, em nome da religião, um objeto de propriedade perpétua de cada família. Segundo Coulanges3, “A família se apropriava dessa terra colocando aí seus mortos, fixando- se aí para sempre. O descendente vivo dessa família pode dizer legitimamente: ‘Essa terra me pertence’”. 1 ENGELS, Friedrich. A origem da família, da propriedade privada e do Estado. 15. ed. Tradução de Leandro Konder. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000, p. 28. 2 COULANGES, Fustel de. A cidade Antiga: estudos sobre o culto, o direito e as instituições da Grécia e de Roma. Tradução de Edson Bini. Bauru: Edipro, 1998, p. 56. 3 Idem, p. 59. 15 A religião foi outro fator que teve grande influência para o direito de propriedade. O tipo de propriedade sem a qual a religião não podia passar era a propriedade privada. Esta religião prescrevia isolar o domicílio e isolar a sepultura. Isolar no sentido de que não se podia unir dois fogos domésticos em uma mesma casa e, muito menos, unir duas famílias em uma mesma sepultura. A religião, com isso, já demonstrava sinais de apropriação privada do solo. A religião, a família e o direito de propriedade sempre foram interrelacionados e parecem ser inseparáveis, principalmente nas sociedades gregas e itálicas. Segundo Petit4: A história das sociedades primitivas demonstra que a propriedade atravessa, em geral, três fases bem distintas: a comunidade agrária, quando o terreno pertence em coletividade a todos os membros de uma tribo ou de uma gens; depois, a propriedade familiar, quando cada família chega a ser única proprietária de certa extensão de terra que se transmite de varão a varão aos descendentes do chefe de família; e, por último, a propriedade individual, quando o terreno pertence não a uma tribo ou a uma família, mas a cada cidadão, que pode dispor ao seu desejo das terras das quais é proprietário exclusivo. Inicialmente, a propriedade das coisas era comum, era de apropriação comum pelo grupo social. Conforme Gilissen5, “[...] ao lado da apropriação comum pelo grupo social, surge a apropriação privada do solo em que as famílias construíram suas cabanas, bem como do solo que as rodeia e aquele onde estão enterrados os antepassados”. Esta apropriação das terras é propriedade privada da família. O chefe de família não podia dispor da propriedade a seu alvedrio. Antes de qualquer alienação, a concordância unânime dos membros da família se fazia necessária. Esta intervenção da família sobrevive nos séculos X-XII. A partir do século XII, as terras tornam-se alienáveis, sem a necessidade de concordância do grupo familiar. Para os povos germanos, a noção de propriedade individual mobiliária se manifesta através de objetos pessoais, como o vestuário, adereços e as armas que constituíam o patrimônio de uma pessoa. No que pertine à propriedade imobiliária, de modo geral, o solo não podia ser objeto de apropriação individual. O solo era de apropriação comunitária. Entre eles, ninguém possui uma superfície certa, nem limites próprios. Anualmente, a terra era repartida entre as famílias pelo chefe, entre os membros do clã e, mais tarde, entre os membros da aldeia. Os clãs e as aldeias utilizavam, em comum, outras terras, tais como as florestas, os pastos, as estevas e as lezírias. Esta forma de apropriação comum do solo, pelo grupo social, sobreviveu até o século XX. 4 PETIT, Eugène. Tratado elementar de direito romano. Tradução de Jorge Luís Custódio Porto. Campinas: Russel Editores, 2003, p. 305. 5 GILISSEN, John. Introdução histórica ao Direito. Tradução de A. M. Hespanha e L. M. Macaísta Malheiros. 4. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2003, p. 638. 16 A constituição antiga de Roma tem por base a reunião política das raças sob a unidade do Estado, de forma que a ideia de subordinação dos particulares sob um poder superior se origina na constituição militar. Segundo Jhering6: Com o decorrer do tempo, a família, baseada no princípio do Estado, se transforma em um Estado constituído sobre o princípio da família. Reunindo-se muitas famílias, a coletividade chega a ser uma raça, ou tronco, que se divide por sua vez, em muitos ramos, em raças e famílias. Assim é como nasce a união política das raças, acumulação de unidades compactas, pequenas ou grandes, que em sua origem tinham por base o parentesco. Embora a propriedade familiar tenha deixado traços incontestáveis no direito clássico, nas palavras de Petit7, “Parece, segundo documentos dos antigos autores, que a propriedade individual sobre imóveis logo foi constituída; que o território de Roma, o ager romanus, pertenceu primeiro ao povo, convertendo-se depois em propriedade privada por concessão do Estado”. Segundo Jhering8, “Para nós, o Estado é completamente diverso dos indivíduos; para o romano antigo, era a coletividade dos cidadãos. [...] o Estado antigo tem suas raízes na família.” A família foi a base para o surgimento do Estado romano e a propriedade do solo pertenceu primeiro ao povo. A propriedade sobre o território de Roma, que inicialmente pertencia ao povo, converte-se em propriedade privada por concessão do Estado. Todavia, o Estado reserva para si o direito de intervir nessa propriedade privada sempre que tiver interesse ou para defender o direito dos vizinhos. Essas são, portanto, as primeiras manifestações da interferência do poder público sobre a propriedade privada. Conforme Iglesias9: Hay en Roma una especie de opinión pública vigilante, por virtud de la cual nadie puede usar de los propios derechos sin sufrir ‘una inspección y un juicio’. Porque los derechos privados atienden directamente al bien del individuo, pero interesan, en última instancia, al bien común. Esta circunstância, que já ocorria em Roma, é um resquício do interesse que o poder público possui sobre a propriedade privada. O uso da propriedade privada começa a sofrer 6 JHERING, Rudolf Von. O espírito do direito romano. Tradução de Rafael Benaion. Rio de Janeiro: Alba, 1943, p. 135. 7 PETIT, Eugène. op. cit., p. 305. 8 JHERING, Rudolf Von. op. cit., p. 134. 9 IGLESIAS, Juan. Derecho romano: historia e instituciones. 11. ed. Barcelona: Ariel, 1997, p. 231. Tradução livre do autor: “Há, em Roma, uma espécie de opinião pública vigilante, pela qual ninguém pode usar de seus próprios direitos sem sofrer uma inspeção e um juízo. Isto porque os direitos privados atendem diretamente ao bem do indivíduo, mas interessam, em última instância, ao bem comum”. 17 fiscalizações. A propriedade privada, em Roma, era bastante individualista, mas já possuía traços da primazia da intervenção do poder público sobre ela. Neste sentido, percebe-se que, naquela época, já havia uma certa preocupação na utilização da propriedade por particulares, no entanto, visava-se o bem comum e os interesses da maioria. Seria quase que uma espécie de função social da propriedade. Gilissen10 nos ensina que: Na realidade, há uma multiplicidade de formas de propriedade, tais como a propriedade familiar, coletiva, comunitária, pública e estatal. No século XIX, a maior parte da propriedade é individualista e o Estado, muitas vezes, é o maior proprietário, possuindo tudo o que está no domínio público e mesmo no seu domínio privado (florestas dominiais, estradas, edifícios públicos, etc.). O conjunto de coisas que pertencem a uma pessoa constitui seus bens ou patrimônio. A propriedade é a mais plena relação de pertencialidade entre o homem e a coisa. De acordo com D’ors11, “Las cosas (res) son bienes en cuanto son susceptibles de una pertenencia personal; las cosas que no lo son quedan excluidas de la propiedad (res quarum commercium non est o <>); las que sólo transitoriamente se hallan sin propietario se llaman res nullius”. Em Direito Romano, “coisa (res)” é tudo o que existe na natureza. Todas as coisas que se encontram fora da propriedade privada são de todos, pertencem a todos, tal como o ar e o mar, os rios públicos, as vias e praças públicas. Tais coisas não podem ser apropriadas, pois apropriação implica a ideia de propriedade. O direito de propriedade é um direito real, isto é, uma vez constituída a propriedade privada a favor de alguém, gera-se uma obrigação a toda a coletividade, qual seja, a de respeitar o direito de propriedade constituído. O direito real implica em uma relação de uma pessoa e todas as outras relativamente a um bem, por isso, diz-se que o direito real é oponível erga omnes. As coisas são bens quando geram uma utilidade ao homem. Os romanos conhecem a propriedade quiritária, que era por eles considerada quase absoluta. Este tipo de propriedade era reservada aos cidadãos romanos. Quem detinha a propriedade quiritária, além de ser necessariamente um cidadão romano, tinha o direito de se utilizar da propriedade, de receber seus frutos, além do poder de disposição. Todavia, o poder que o cidadão romano possuía não era absoluto, sobretudo no que diz respeito aos bens imóveis, quer no interesse dos vizinhos, quer no interesse público. 10 GILISSEN, John. op. cit., p. 636. 11 D’ORS, Álvaro. Elementos de derecho privado romano. 2. ed. Pamplona: Ediciones Universidad de Navarra, 1975. Tradução livre do autor: “As coisas (res) são bens enquanto são suscetíveis de uma pertencialidade pessoal; as coisas que não o são acabam excluídas da propriedade (res quarum commercium non est o <>); as que somente transitoriamente se achem sem proprietário se chamam res nullius”. 18 No baixo império, desaparecem as distinções entre propriedade quiritária (dos cidadãos romanos), dos peregrinos (estrangeiros fixados no Império) ou provincial (sobre bens situados fora da Itália). A concepção individualista da propriedade quiritária passa a se estender a todo o Império Romano. No final desse período, a propriedade é muito individualista. Dentre as diversas classificações que se podem atribuir às “coisas”, estas podem ser móveis ou imóveis, privadas ou públicas. Segundo Gilissen12, “A divisão das coisas de acordo com sua natureza, a sua mobilidade, entre móveis e imóveis, existia no direito romano desde a época da Lei das XII Tábuas. Na época feudal e dominial, os imóveis eram divididos em bens feudais e não feudais, alódios, feudos e censos”. Consoante Bonfante13: El derecho o ius civile se distingue en público y privado. Esta distinción tiene para los romanos un doble significado, que se infiere del sentido ambíguo que tienen las palabras público y privado: público (de populus) es un concepto que oscila entre lo que atañe al Estado y lo que concierne a la sociedad... Para Iglesias14, “Publicus es termino expresivo de lo que pertenece al populus, a la comunidad ciudadana, a la civitas o Estado; Privatus, de lo que pertenece al privus, es decir, al particular. Se habla, v. gr., de res publicae y de rex privatae, de utilitas publica y de utilitas privata”. A expressão ius publicum pode ser entendida de duas formas. A primeira refere-se às normas estatais, ao direito que surge a partir dos órgãos estatais, consubstanciado em leis públicas, ainda que o conteúdo dessas normas seja considerado de direito privado. Isso ocorre, segundo Bonfante15, “[...] cuando con el interés individual concurre un interés social o general”. Refere-se, portanto, a um direito público pelo simples fato de suas normas emanarem de órgãos públicos. Ao ius publicum não pertencem, no entanto, as normas fixadas pela jurisprudência. Um segundo sentido que pode ser atribuído à expressão ius publicum é relativo à estrutura, à atividade, organização e funcionamento do status rei romanae. O direito público, 12 GILISSEN, John. op. cit., p. 633. 13 BONFANTE, Pietro. Instituciones de Derecho Romano. Traducción de la octava ecición italiana por Luis Bacci Y Andres Larrosa. Madrid: Instituto Editorial Reus, 1925, p. 13. Tradução livre do autor: “O direito ou ius civile se distingue em público e privado. Esta distinção tem para os romanos um duplo significado, que se infere do sentido ambíguo que tem as palavras público e privado: público (de populus) é um conceito que oscila entre o que diz respeito ao Estado e o que concerne à sociedade.” 14 IGLESIAS, Juan. Derecho romano: historia e instituciones. 11. ed. Barcelona: Ariel, 1997, p. 92. Tradução livre do autor: “Publicus é termo que expressa o que pertence ao populus, à comunidade cidadã, à civitas ou Estado. Privatus expressa o que pertence ao privus, ou seja, ao particular. Fala-se, por exemplo, de res publicae e de res privatae, de utilitas publica e de utilitas privata.” 15 BONFANTE, Pietro. op. cit., p. 14. Tradução livre do autor: “[...] quando com o interesse individual concorre um interesse social ou geral”. 19 dessa forma, é o que diz respeito ao governo da república, ou ainda, os que são próprios da cidade e do império. No final da República, a expressão ius publicum passa a ser utilizada no sentido de um direito que emana dos órgãos da civitas, entendida como a expressão da vontade do populus. Segundo Biondi16, “Publicus, equivalente a populicus, è tutto ciò che si riferisce al populus, il quale è quella organizzazione política che noi chiamiamo Stato”. O direito público é o que concerne ao governo da república, à religião, ao sacerdócio e às magistraturas; o direito privado é o que regula o interesse dos particulares e encontra-se abrigado em conceitos naturais de direito das gentes e civis. Os interesses privados não interessam somente ao indivíduo e a norma positiva visa uma atividade voltada para o bem comum. O direito privado regula as relações entre cidadãos privados. Ainda, de acordo com Biondi17, “Privatus o privus vuol dire singolo: pertanto ius privatum è il diritto che riguarda il singolo”. O direito público versa sobre o modo de ser do Estado romano, e, o direito privado, sobre o interesse dos particulares. De acordo com Petit18: Segundo Dionísio de Halicarnasso e Varrão, Rômulo dividiu o território de Roma entre as 30 cúrias, e depois, sob Numa, em virtude de uma nova distribuição, concedeu-se a cada chefe de família uma parte igual, de duas fanegas ou jugera (aproximadamente 50 ares), o suficiente para estabelecer uma moradia e um jardim. Esse lote se chamou heredium. Com o avanço das conquistas de Roma sobre a Itália, os territórios dos povos vencidos passavam à propriedade do Estado romano, ou ager publicus. Todavia, o emprego dado a essas terras eram diferentes de acordo com a natureza das mesmas, sejam elas terras cultivadas ou incultas. Uma parte foi destinada a aumentar a propriedade privada, o ager privatus. As terras cultivadas foram alienadas em benefício dos particulares. Esses terrenos, que passavam à propriedade de particulares, eram objeto de uma limitação especial. Desse modo, os limites dos terrenos eram traçados, seguindo linhas regulares pelos agrimensores. O cargo de agrimensor tinha um caráter, ao mesmo tempo, público e regilioso. Os campos medidos eram chamados de agri limitati. As frações ou parcelas, sucessivas, deixadas fora do traçado regular dos agri limitati, continuavam fazendo parte do ager publicus. Dito de outra 16 BIONDI, Biondo. Instituzioni di Diritto Romano. 2. ed. Milano: Giuffrè, 1972, p. 64. Tradução livre do autor: “Publicus, equivalente a populicus, é tudo que se refere à Populus, que é a organização política que chamamos de Estado.” 17 Idem, p. 64. Tradução livre do autor: “Privatus ou privus quer dizer individual: portanto ius privatum é o direito que resguarda o individual”. 18 PETIT, Eugène. op. cit., p. 305. 20 maneira, as terras cultivadas, portanto, passavam a pertencer aos particulares, que as mediam através dos agrimensores. Após a medição, as frações ou parcelas sucessivas de terra excluídas dos agri limitati pertenciam ao ager publicus. Quanto às terras incultas, o Estado permitiu aos cidadãos que as ocupassem tanto quanto fosse necessário para cultivá-las, desde que ao Estado fosse pago um censo, a fim de justificar seu direito de propriedade. Esses territórios ocupados pelos cidadãos, agri ocupatorii, continuavam a fazer parte do ager publicus. Na realidade, o ocupante não tinha a propriedade, mas sua posse, origem do nome possessionis. A posse era protegida pelo pretor, transmitindo-se hereditariamente, de forma que o possuidor do ager publicus pudesse desfrutar, de fato, de direito análogo ao do proprietário. A propriedade romana, no que diz respeito à função política do senhorio sobre a fazenda, apresenta algumas características importantes. Conforme Iglesias19, “El fundo romano tiene confines santos, como los muros de la ciudad”. A limitatio é o cerimonial solene e sagrado, utilizado pelos romanos para assinalar as confrontações da propriedade. Os terrenos não limitados pertencem ao ager publicus. No máximo, a falta de limitação pode significar que o terreno não é objeto de propriedade privada. Os patrícios possuíam apenas o direito de ocupação e suas riquezas lhes permitiam cultivar uma extensão maior de terras, despojando os mais pobres de suas posses. Desse modo, o ager publicus encontrava-se quase inteiro em suas mãos. Formavam-se grandes latifúndios, cultivados por escravos ou clientes dos patrícios, resultando em frequentes queixas da classe pobre, que não extraía nenhum benefício do ager publicus. Os tribunos, diante dessa situação, com base nas reivindicações da plebe, deram origem às leis agrárias. As primeiras leis agrárias visavam limitar o número de fanegas do ager publicus que cada cidadão poderia, a partir de então, possuir e proceder a uma redistribuição um pouco mais equitativa dessas terras. Mas essas leis encontraram resistência em sua aplicação, reconstituindo-se a grandes posses territoriais em benefício dos mais ricos. Segundo Petit20: Até metade do século VII entraram outras leis agrárias por uma via completamente nova. Transformaram as posses existentes em propriedades privadas mediante o pagamento ao Estado de um censo que devia ser distribuído entre os cidadãos pobres, mas que cessou muito rapidamente de ser exigido, e, por efeito dessas últimas medidas legislativas, acrescentaram-se as proscrições e confiscos que agitaram o fim da República e o começo do Império. Por isso, quando Domiciano sancionou as usurpações dos particulares sobre as subcesivas, desapareceram na Itália os últimos fragmentos do ager publicus (Suetônio, Dominiciano, 9), e então, 19 IGLESIAS, Juan. op. cit., p. 228. Tradução livre do autor: “A fazenda romana tem confrontações sagradas como os muros de uma cidade”. 20 PETIT, Eugène. op. cit., p. 307. 21 no terreno itálico, somente restou propriedades privadas classificadas entre as res mancipi. No Direito Romano, a classificação dos bens em móveis ou imóveis era muito variável, segundo as exigências sociais, sem consideração à mobilidade ou imobilidade de tais bens. A classificação existente no direito moderno dos bens em imóveis e móveis, no direito romano, correspondiam à distinção entre res mancipi e nec mancipi. Segundo Bonfante21: Eran res mancipi: los fundos, casas o terrenos de propiedad de los ciudadanos, y, por lo tanto, situados em el suelo itálico; los esclavos, los caballos, los bueyes, los mulos y los asnos, o sea todas las bestias de tiro e carga; y además de estas cosas corporales, las más antiguas y preciosas servidumbres rústicas, o sea las tres formas de la servidumbre de paso (iter, actus, via) y la servidumbre de acueducto (aquaeductus). Las demás cosas eran res nec mancipi. No direito clássico, havia diferenças jurídicas importantes decorrentes da classificação das coisas em res mancipi e res nec mancipi, principalmente quanto à forma de transferência. A transferência ou alienação das res nec mancipi era mais natural e simples e consistia na transmissão da posse ou traditio. No que pertine a res mancipi, a transmissão era solene e pública, através da mancipatio ou da in iure cessio, além da necessidade da auctoritas tutoris para as mulheres que alienavam. A traditio era a forma mais comum de adquirir a propriedade. Consiste em uma apropriação possessória, em que a coisa entregue fique sob o controle efetivo do adquirente. Pode ser definida como a entrega ou o ato, geralmente do proprietário da coisa, de colocar à disposição de outro o objeto da traditio, renunciando o proprietário à sua propriedade sobre a coisa e recebendo, o adquirente, o senhorio sobre a mesma, com base em uma relação que a lei reconhece apta para justificar a transferência do domínio. A traditio, portanto, não requer grandes solenidades para se realizar. A mancipatio, por sua vez, consiste, nas palavras de D’ors22: La mancipatio o mancipium es un acto privado solemne, que consiste en una declaración de un adquirente (mancipio accipiens) que se apodera formalmente de la cosa, en presencia del propietario de la misma (mancipio dans), y en el acto de 21 BONFANTE, Pietro. op. cit., p. 247. Tradução livre do autor: “Eram res mancipi: as fazendas, casas ou terrenos de propriedade dos cidadãos, e, portanto, situados em solo itálico; os escravos, os cavalos, os bois, as mulas e os asnos, ou seja todos os animais de tração e carga; e além destas coisas corpóreas, as mais antigas e preciosas servidões rústicas, ou seja as três formas de servidão de passagem (iter, actus, via) e a servidão de aqueduto (aquaeductus). As demais coisas eram res nec mancipi”. 22 D’ORS, Álvaro. op. cit., p. 101. Tradução livre do autor: “A mancipatio ou mancipium é um ato privado solene, que consiste em uma declaração de um adquirente (mancipio accipiens) que se apodera formalmente da coisa, em presença do proprietário da mesma (mancipio dans), e no ato de pesar um metal em uma balança de pratos; se realizava este negócio na presença de cinco testemunhas, mais outro encarregado de pesar o metal, chamado libiprens”. 22 pesar un metal en una balanza de platillos; se ralizaba este negocio en presencia de cinco testigos, más otro encargado de pesar el metal, llamado libiprens. A mancipatio, pela própria definição, é ato que possui uma complexa solenidade para sua realização. Nas palavras de Biondi23: In presenza di 5 testimoni, cittadini e puberi, nonchè di una persona che tiene uma bilancia (libiprens), l’acquirente (mancipio accipiens), tenendo in mano un pezzo di rame (raudusculum), fa al cospetto dell’alienante, ed in presenza della cosa, una solenne e categoria affermazione del diritto che intende acquistare; dice, ad es., hunc ego hominem ex iure Quiritium meum esse aio isque mihi emptus esto hoc aere aeneaque libra. Il libiprens o lo stesso alienante dice poi all’acquirente: raudusculo libram ferito; l’acquirente, aderendo all’invito, mette sulla bilancia il raudusculum, e quindi lo consegna all’alienante quase pretii loco. Con cio la formalità è compiuta e l’atto produce i suoi effetti in conformità alla dichiarazione fatta dall’acquirente. Ainda, segundo Biondi24, “Nel diritto clássico gli atti ritenuti idonei a far passare tra vivi il dominium ex iure Quiritium sono: mancipatio, in iure cessio, traditio. I primi due si applicano al trasferimento delle res mancipi; la traditio invece è esclusiva per le res nec mancipi”. A in iure cessio consiste em um processo do qual somente participam civis romanos e se aplica à constituição ou extinção de direitos de senhorio sobre pessoas ou coisas. Para transmitir a propriedade, o adquirente se apresenta ante o magistrado, reivindicando a coisa e pronuncia a fórmula da vindicatio: aio hanc rem (hunc fundun, hunc hominem) meam esse ex iure Quiritium (afirmo que esta coisa me pertence por direito quiritário); o alienante não contesta a afirmação do adquirente e, em vista disso, o magistrado adjudica a coisa àquele que a reclama como própria. Segundo Iglesias25: 23 BIONDI, Biondo. op. cit., p. 253. Tradução livre do autor: “na presença de cinco testemunhas, cidadãos e púberes, e do libiprens, o adquirente (mancipio accipiens), tendo em mãos um pedaço de cobre (raudusculum), faz na presença do alienante e da coisa, uma solene e categórica afirmação do direito que pretende adquirir; diz, por exemplo, hunc ego hominem ex iure Quiritium meum esse aio isque mihi emptus esto hoc aere aeneaque libra. O libiprens ou o próprio alienante diz então ao adquirente: raudusculo libram ferito; o adquirente, aceitando o convite, põe na balança o raudusculum, e então o entrega ao alienante quase pretii loco. Assim a formalidade é realizada e o ato produz seus efeitos de conformidade com a declaração feita pelo adquirente”. 24 Ibidem, p. 251. Tradução livre do autor: “No direito clássico, os atos considerados idôneos para fazer transmitir entre vivos o dominium ex iure Quiritum são: mancipatio, in iure cessio, traditio. As primeiras duas se aplicam à transferência de res mancipi. A traditio, ao invés, é exclusiva para a res nec mancipi”. 25 IGLESIAS, Juan. op. cit., p. 257. Tradução livre do autor: “A in iure cessio se aplica a todos os negócios que versam sobre direitos reais ou pessoais sancionados pela vindicatio: a) transmissão do domínio que tem por objeto res mancipi ou nec mancipi, importando pouco que se trate da plena propriedade ou da nua-propriedade, ou de quotas de condomínio; b) constituição de usufruto e direitos análogos; c) constituição de servidões rurais e urbanas; d) emancipação; e) adoção; f) transmissão da tutela legítima sobre as mulheres; g) transmissão dos direitos inerentes à legitima hereditas; h) manumissão – manumissio vindicta-.” 23 La in iure cessio se aplica a todos los negocios que versan sobre derechos reales o personales sancionados por la vindicatio: a) transmisión del dominio que tiene por objeto res mancipi o nec mancipi, importando poco que se trate de la propiedad íntegra, o de la nuda propietas, o de cuotas de condomínio; b) constitución de usufructo y derechos análogos; c) constitución de servindumbres rústicas y urbanas; d) emancipación; e) adopción; f) transmisión de la tutela legítima sobre las mujeres; g) transmisión de los derechos inherentes a la legitima hereditas; h) manumisión – manumissio vindicta. A traditio, a mancipatio e a in iure cessio, portanto, consistiam em diferentes formas de transmissão da propriedade dos bens, de modo que a mancipatio e a in iure cessio eram utilizadas para a transmissão da propriedade das res mancipi e a traditio, para a transmissão das res nec mancipi. Como já referido anteriormente, os bens como as fazendas, casas ou terrenos de propriedade dos cidadãos, situados em solo itálico; os escravos, os cavalos, os bois, as mulas e os asnos, ou seja, todos os animais de tração e carga; e além destas coisas corpóreas, as mais antigas e preciosas servidões rústicas, ou seja, as três formas de servidão de passagem (iter, actus, via) e a servidão de aqueduto (aquaeductus), considerados res mancipi, eram transmitidas pela mancipatio ou pela in iure cessio. As demais coisas, consideradas res nec mancipi, se transmitiam pela traditio. Com exceção da traditio, essas formas de transmissão da propriedade eram realizadas de forma solene, na presença de testemunhas e autoridades da época. Tais solenidades já eram exigidas como forma de tornar isento de dúvidas as transmissões realizadas. A necessidade de solenidades perante autoridades e testemunhas se justifica pela necessidade de publicidade dos atos realizados que, já naquela época, presumiam o conhecimento de todos, com efeitos erga omnes, devido à inexistência de registros públicos, capazes de registrar tais atos e publicizá-los. O direito de propriedade, na época, era muito precário, pois a aquisição desse direito era baseada em procedimentos solenes e testemunhas, sem registro algum dos atos realizados. Conforme Biondi26, “In origine la proprietá si afferma e si difende con la forza: la difesa privata, un tempo è l’unica difesa possibile”. Por este motivo, a única forma de promover a defesa da propriedade eram as ações judiciais. Ao proprietário competiam diversas ações, dentre elas, as ações típicas à defesa da propriedade, que são duas: a reivindicatio e a actio negatoria. Nas palavras de D’ors27, “Propietario de una cosa es el que puede reclamarla como suya de outra persona que la retiene”. Esta definição se refere à ação reivindicatória e somente será necessária ao 26 BIONDI, Biondo. op. cit., p. 276. Tradução livre do autor: “Na origem a propriedade se afirma e se defende com a força: a defesa privada, um tempo é a única defesa possível”. 27 D’ORS, Álvaro. op. cit., p. 94. Tradução livre do autor: “Proprietário de uma coisa é o que pode reclamá-la como sua de outra pessoa que a retém”. 24 proprietário que tenha perdido a posse do bem, caso contrário, poderá se defender através dos interditos. Dessa maneira, o não-possuidor que pretende ser o proprietário por direito civil, deverá se utilizar da ação reivindicatória, dirigindo-a contra o possuidor. A ação reivindicatória compete, segundo Bonfante28, “[...] al propietario, que no posee contra el tercer posesor, sea que este posea la cosa con intención de disponer de ella como dueño, es decir, como verdadero poseedor, sea, como se admitió más tarde, que la tenga en su poder como simple detentador”. A ação reivindicatória protege o proprietário civil contra o terceiro que possui ilicitamente e pretende que se reconheça sua propriedade, restituindo-lhe a coisa. A ação negatória, segundo Iglesias29, “[...] se concede al propietario para oponerse a quien se arroga un derecho de servidumbre o de usufructo sobre su cosa, en términos de lograr la declaración de inexistencia de semejantes gravámenes”. Trata-se de ação em que o proprietário busca a negativa do direito real de servidão ou de usufruto a um terceiro que pretende obtê-lo, sem que se questione o dominium. O autor da ação negatória, segundo Biondi30, “[...] tende a far disconoscere giudiziariamente l’esistenza del diritto accampato dal terzo. L’attore è tenuto a provare solo di essere proprietário e non la inesistenza de diritto altrui; è invece il convenuto que potrà provare Il suo diritto”. A prova da propriedade na ação negatória cabe ao proprietário, cabendo ao seu adversário demonstrar o seu direito que, por consequência lógica, é negado pelo proprietário. O vencido na ação negatória pode ser obrigado a prometer que não causará novas perturbações. O direito de propriedade, portanto, no Direito Romano, era adquirido pela traditio, mancipatio ou pela in iure cessio, com solenidades que garantiam sua publicidade, sem registros públicos para garantir a necessária segurança jurídica, de forma que a proteção do direito de propriedade cabia às ações judiciais, principalmente a ação reivindicatória e a ação negatória. 28 BONFANTE, Pietro. op. cit., p. 247. Tradução livre do autor: “[...] ao proprietário, que não possui contra o terceiro possuidor, seja que este possua a coisa com intenção de dispor dela como dono, ou seja, como verdadeiro possuidor, seja, como se admitiu mais tarde, que a tenha em seu poder como simples detentor.” 29 IGLESIAS, Juan. op. cit., p. 257. Tradução livre do autor: “[...] se concede ao proprietário para se opor a quem pretende um direito de servidão ou de usufruto sobre sua coisa, em termos de obter a declaração de inexistência de semelhantes gravames”. 30 BIONDI, Biondo. op. cit., p. 279. Tradução livre do autor: “[...] tende a fazer desconsiderar juridicamente a existência do direito do terceiro. O autor deve provar somente ser proprietário e não a existência do direito alheio; em vez disso o réu poderá provar o seu direito”. 25 2.2 Propriedade como instituto de direito privado A conceituação do direito de propriedade é tarefa árdua aos estudiosos do Direito. A propriedade reflete a realidade econômica, política e social de cada época, sofrendo contínuas adaptações ao reboque das transformações sociais. Segundo Pereira31, “Não existe um conceito inflexível do direito de propriedade”. O conceito de propriedade é sempre flexível, de forma que os delineamentos legais do instituto não representam a cristalização dos princípios de maneira permanente. O direito de propriedade passa por constantes mutações. Na cidade antiga, a propriedade se embasava na trilogia propriedade-família-religião. O direito de propriedade dos antigos era alicerçado em princípios diferentes aos atuais. Por este motivo, suas leis são sensivelmente diferentes das nossas. Algumas raças jamais estabeleceram, em seu seio, a propriedade privada. Cada família possuía seus deuses e cultuava suas divindades domésticas, excluindo de seus cultos indivíduos de outras famílias. A religião doméstica proibia que as famílias se misturassem e se fundissem, mas era possível que diversas famílias, sem sacrifício de sua religião particular, se unissem para a celebração de outros cultos que lhes fossem comuns. A união de algumas famílias para a realização destes cultos culminou na formação das fratrias (para os gregos), também chamadas de cúrias, em latim. Com o passar do tempo, várias cúrias ou fratrias se agruparam e formaram uma tribo. A tribo excluía os estranhos de seu culto especial. Duas tribos não podiam, por motivos religiosos, se fundir em uma única. Todavia, diversas tribos podiam associar-se, desde que o culto de cada uma delas fosse respeitado. Com a união das tribos, nasceu a cidade. Nas palavras de Coulanges32: A cidade era uma confederação, daí ter sido obrigada, pelo menos durante muitos séculos, a respeitar a independência religiosa e civil das tribos, das cúrias e das famílias, não tendo inicialmente o direito de intervir nos assuntos particulares de cada um desses pequenos corpos. [...] É por esta razão que o direito privado, que fora fixado na época do isolamento das famílias, pôde subsistir nas cidades, tendo sido modificado só muito posteriormente. 31 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil: direitos reais. Vol. IV. 18. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 8. 32 COULANGES, Fustel de. A cidade Antiga: estudos sobre o culto, o direito e as instituições da Grécia e de Roma. Tradução de Edson Bini. Bauru: Edipro, 1998, p. 110. 26 Nos primórdios, a terra era um direito natural de todos. Conforme Cogliolo33, “A ciência moderna averiguou que a forma primária da propriedade foi a comum e que, conseguintemente, a propriedade individual não foi sempre conhecida”. Nem ao menos era imaginável que um indivíduo pudesse estabelecer uma relação com uma porção de terra de forma tão intensa capaz de haver sua apropriação pelo homem. Nesse sentido, Coulanges34 afirma que: Constituía, com efeito, um problema crucial à origem das sociedades saber se o indivíduo podia se apropriar do solo e estabelecer um liame tão forte entre seu ser e uma porção de terra a ponto de poder afirmar: “Esta terra é minha, esta terra é como uma parte de mim”. Entre os antigos germanos, a terra não pertencia a ninguém. Anualmente, a tribo designava a cada um de seus membros um lote de terras para ser cultivado. Os germanos eram proprietários da colheita, mas não das terras. Segundo Chalhub35: Com efeito, a forma mais antiga de propriedade é a coletiva, em que os membros da comunidade tinham direito temporário de gozo, inalienável e intransmissível. A substituição dessa concepção coletivista pela noção individualista do direito de propriedade parece acompanhar o processo de transição dos povos antigos, da comunidade do tipo gentílico à comunidade do tipo territorial, em que o Estado tende a privilegiar juridicamente os indivíduos singulares, em desvantagem dos grupos gentílicos, que lhes são antagônicos, presumindo-se que entre o fim do século VII e o princípio do século VI a. C. tenham sido definidos os contornos da propriedade privada. Em Atenas, segundo Engels36, “O primeiro sintoma de formação do Estado consiste na destruição dos laços gentílicos, dividindo os membros de cada gens em privilegiados e não privilegiados.” A nobreza passa a dirigir o Estado. O comércio marítimo, misturado com ocasional pirataria, enriquecia e concentrava dinheiro nas mãos da nobreza. Com a produção de mercadorias, surgiu o cultivo individual da terra e, em seguida, a propriedade individual do solo. A antiga constituição gentílica tornara-se impotente contra o avanço triunfal do dinheiro. As populações da Grécia e da Itália, ao contrário de outros povos, desde a mais remota antiguidade, sempre conheceram e praticaram a propriedade privada. Para estes povos, a terra lhes pertencia mais do que a colheita. Se, originariamente, a utilização e a apropriação 33 COGLIOLO, Pietro. Lições de filosofia e de direito privado. Tradução de Henrique de Carvalho. Belo Horizonte: Líder, 2004, p. 131. 34 COULANGES, Fustel de. op. cit., p. 55. 35 CHALHUB, Melhim Namem. Propriedade imobiliária: função social e outros aspectos. Rio de Janeiro: Renovar, 2000, p. 2. 36 ENGELS, Friedrich. A origem da família, da propriedade privada e do estado. 15. ed. Tradução de Leandro Konder. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000, p. 122. 27 das coisas teve como protagonista a coletividade, a concepção de dominium do Direito Romano mudou esse conceito. Esta concepção já se consubstanciava em uma noção individualista do direito de propriedade. Para Biondi37: La denominazione più ântica, che si riscontra ancora in talune espresioni dell’epoca clássica, è mancupium o mancipium, da manu capere, che vuol dire apprensione con la forza e ci riporta ai tempi primitivi, in cui la forza era costitutiva di diritto (§ 20). Il termine técnico più diffuso è dominium, che scolpisce la essenza dell’istituto, concepito come potere o signoria. Il termine proprietas, che vuol dire apparentenenza, è più recente ed ha avuto fortuna, in guisa de diventare la denominazione più comune. D’altra parte i termini dominium e dominus sono intensi in senso ampio e non técnico, cioè per indicare la titolaritá di um diritto. Na concepção de Jhering38, “A ideia de autoridade é o prisma através do qual o direito antigo considerava a vida individual, sob todas as suas fases.” Até mesmo na família romana, através do poder do chefe de família sobre os entes que a compõem, a ideia de autoridade domina as instituições de direito privado antigo. Da mesma forma o poder do proprietário sobre a propriedade revela ser quase ilimitado. Nas palavras de Biondi39: Il romani poichè sentono istintivamente la esigenza de in capo con pienezza di poteri e ricollegano la subbiettività alla persona nella sua física concretezza piuttosto che alla moltitudine o ad entità astratte, quando si costituisce la civitas e si precisano i concetti giuridici, furono tratti a riconoscere la proprietà al capo del gruppo (paterfamilias), considerato come único titolare di rapporti giuridici patrimoniali nell’ambito della famiglia. No direito romano, o paterfamilias era considerado o chefe da família, que possuía poderes plenos para governar sua família e seus bens, bem como tratar das relações jurídicas de interesse dele e da família. Era o único membro da família que, por ter o poder de se relacionar diretamente e subjetivamente com as pessoas, poderia se envolver nas mais diversas relações jurídicas. Assim, com a formação da civitas e a necessidade de se especificar conceitos jurídicos para regulamentar a vida em sociedade daqueles que eram 37 BIONDI, Biondo. Instituzioni di Diritto Romano. 2. ed. Milano: Giuffrè, 1972, p. 227. Tradução livre do autor: “A denominação mais antiga, que se encontra agora em certa expressão da época clássica, é macupium ou mancipium, da manu capere, que quer dizer apreensão com força e se refere ao tempo primitivo, em que a força era constitutiva de direito (§ 20). O termo técnico mais genérico é dominium, que esculpe a essência do instituto, concebido como poder ou senhoria. O termo proprietas, que quer dizer pertença, é mais recente e tem tido sucesso, sob o pretexto de se tornar a denominação mais comum. De outra parte o termo dominium e dominus são entendidas em sentido amplo e não técnico, ou seja, para indicar a titularidade de um direito.” 38 JHERING, Rudolf Von. O espírito do direito romano. Tradução de Rafael Benaion. Rio de Janeiro: Alba. 1943, p. 95. 39 BIONDI, Biondo. op. cit., p. 227. Tradução livre do autor: “Os romanos, porque sentem instintivamente a necessidade de um líder com plenos poderes e de se relacionar com a pessoa na sua concreta subjetividade física ao invés do povo ou uma entidade abstrata, quando se forma a civitas e se especifica conceitos jurídicos, foram levados a reconhecer a propriedade ao chefe do grupo (paterfamilias), considerado como único titular das relações jurídicas patrimoniais no âmbito da família.” 28 considerados cidadãos romanos, o paterfamilias, pelos poderes que já detinha, foi escolhido pela lei como o único possível titular de relações patrimoniais no âmbito da família. Dessa forma, apenas o paterfamilias poderia ser titular do direito de propriedade, o que demonstrava, já naquela época, a sua autonomia. Segundo Jhering40: O antigo direito se baseia no princípio da vontade subjetiva. [...] De acordo com este princípio, o indivíduo é por si mesmo o fundamento e a fonte do direito: é o seu próprio legislador. [...] Para tudo o que concerne à casa e aos interesses privados, o chefe de família possui o mesmo poder legislativo e judicial que o povo, no que interessa à generalidade dos cidadãos. O autor, nesta passagem, faz uma comparação entre a gestão dos interesses privados no âmbito da família com a gestão dos interesses públicos, concernente ao Estado. Assim como o chefe de família usa de sua vontade subjetiva para gerir os interesses no âmbito de sua família, tem o Estado autonomia para gerir os interesses da coletividade. O chefe de família ou paterfamilias era soberano, ou seja, tinha um poder absoluto, completo, ilimitado e originário sobre sua família. Ninguém possuía poder maior no âmbito da família que o paterfamilias, já que seu poder não era derivado de um ente superior. A diferença existente entre autonomia e soberania é muito bem explicada nas palavras de Calasso: Autonomia, stando al significato etimológico della parola, designa il potere che un ente ha di porre norme a sè stesso. Se questo potere fosse assoluto, completo, illimitato, il concetto di autonomia coinciderebbe evidentemente con quello di < sovranità >. Al contrario, si sente discorrere di gradi d’autonomia, ovvero che l’autonomia è riconosciuta o negata, che si afferma o si sviluppa, che cresce o decresce o viene soppressa, e similmente. Ciò fa supporre l’esistenza di um ente superiore, di fronte al quale il potere dell’ente autônomo si afferma in misura maggiore o minore, subisce delle vicende, scompare, ecc. Si profila dunque uma differenza sostenziale fra il concetto di sovranità, che indica um potere assoluto, illimitato, originário, e il concetto di autonomia, che designa invece um potere derivato, graduato variamente, e quindi limitato. 41 O direito privado antigo era, portanto, baseado na ideia de autonomia. O princípio da autonomia ilimitada das relações privadas, segundo Jhering42, verifica-se sob três aplicações: 40 JHERING, Rudolf Von. op. cit., p. 100. 41 CALASSO, Francesco. Médio evo del diritto. Milano: Giuffrè, 1954, p. 377. Tradução livre do autor: “Autonomia, de acordo com o significado etimológico da palavra, designa o poder que um ente possui de impor normas a si mesmo. Se este poder fosse absoluto, completo, ilimitado, o conceito de autonomia coincidiria evidentemente com o de soberania. Ao contrário, se ouve falar de graus de autonomia, ou que a autonomia é reconhecida ou negada, que se afirma ou se desenvolve, que cresce ou decresce ou é suprimida, e similarmente.Isso sugere a existência de um ente superior, diante do qual o poder do ente autônomo se afirma em maior ou menor medida, desaparece, etc. Então, se perfila uma diferença substancial entre o conceito de soberania, que indica um poder absoluto, ilimitado, originário, e o conceito de autonomia, que designa, ao invés, um poder derivado, formado diversamente, e portanto limitado.” 42 JHERING, Rudolf Von. op. cit., p. 102. 29 a) no direito absoluto de alienar a propriedade: de modo que ninguém poderia impugnar uma alienação feita pelo proprietário, proibi-la ou dificultá-la, nem mesmo os credores, os herdeiros mais próximos ou a própria autoridade, sendo considerado monstruoso declarar nulo o ato praticado pelo proprietário, nessa qualidade; b) a divisibilidade ilimitada de bens de raiz: a liberdade absoluta de alienar bens imóveis, que nunca foi limitada pelas leis de Roma; e c) ao direito absoluto de alienar corresponde a faculdade limitada de adquirir, não havendo em Roma limites à capacidade pessoal neste sentido. Cada um exercia o ofício para o qual se sentia capaz, conforme sua vontade. A única limitação existente era a proibição do comércio para os senadores. A autonomia do direito privado antigo era visível nas ações do paterfamilias, que podia alienar ou adquirir bens imóveis livremente, porque a lei romana não impunha limites à sua capacidade. As ações do paterfamilias eram autônomas, livres, ilimitadas e não podiam ser declaradas nulas. No entanto, conforme Jhering43: [...] a lex publica impunha restrições à legislação privada só quando o interesse de todos os reclamava imperiosamente. Mas comparadas essas limitações com as do direito posterior, são de pouca importância; foram precisos séculos para destruir o antigo conceito e dissipar o temor que existia de restringir a liberdade privada. A restrição à liberdade privada somente era possível quando a coletividade assim o exigia. Mesmo assim, tais interferências eram mínimas se comparadas as do direito posterior. O poder do cidadão sobre a propriedade privada era quase ilimitado. O proprietário possuía poder absoluto sobre sua propriedade. Como já referia Jhering44, “Não existe, absolutamente, matéria, na qual a ideia do poder absoluto sobre a cousa seja traduzida e interpretada com tanto rigor, como na propriedade romana”. Anteriormente à Revolução Francesa, o regime de propriedade vigente era o feudalismo, um sistema social e econômico em que um indivíduo, chamado de vassalo, oferece ao senhor ou suserano fidelidade e trabalho em troca de proteção e um lugar no sistema de produção. Segundo Miaille45, “A sociedade feudal não conhece fronteiras entre o privado e o público: o senhor é simultaneamente o proprietário da terra (e portanto, sujeito de direito privado) e a autoridade no seio da comunidade que vive nas suas terras (portanto, nisso, autoridade ).” 43 Idem, p. 100. 44 Ibidem, p. 101. 45 MIAILLE, Michel. Introdução crítica do direito. 3. ed. Lisboa: Estampa, 2005, p. 158. 30 Percebe-se que a distinção direito público/direito privado não é apenas uma separação didática, para fins de melhor estudo do direito, mas é a forma da sociedade em que vivemos que produziu, em nossa consciência, a separação entre o direito público e o direito privado. Com a Revolução Francesa, o feudalismo deixa de existir e a propriedade passa a um modelo liberal-individualista, propiciando o livre acesso e a livre circulação da propriedade. Segundo Cortiano Junior46: A Revolução Francesa decretou a destruição do feudalismo e a supressão da propriedade parcelada, criando um modelo proprietário de feição liberal- individualista que tem um significado histórico de destruição dos institutos feudais que a imobilizavam e de construção de um sentido de livre acesso e livre circulação da propriedade. Ainda, de conformidade com Gilissen47: Com a Revolução Francesa, na noite de 04 de agosto de 1789, a Assembléia Constituinte, sob a influência de Jacqueries de Julho e por proposta de dois deputados da nobreza, decretou a destruição do feudalismo, restabelecendo a propriedade plena, livre e individual que o direito romano tinha concedido. A Revolução determina a partilha dos bens comuns e permite a sua transmissão hereditária. Após a Revolução Francesa surgem as codificações, no século XIX. Acreditava-se que era na literalidade dos textos codificados que estariam as soluções para todos os fatos que o direito se propunha a regular. Percebe-se esta concepção de plenitude e suficiência das codificações para a solução dos conflitos de interesses da sociedade, nos dizeres de Duguit48: Los hombres de 1789 y los autores del Código de Napoleón, y también, preciso es decirlo, la gran mayoría de los jurisconsultos franceses y extranjeros de la primera mitad del siglo XIX, salvo la escuela de Savigny, estimaban que había allí un sistema de Derecho definitivo, que se imponía con el rigor y la evidencia de un sistema de geometria, y así como la geometría moderna descansa todavía sobre los principios formulados por Euclides, del mismo modo en todos los tiempos, en todos los países, el Derecho de todos los pueblos civilizados no podría ser más que el 46 CORTIANO JUNIOR, Eroulths. O discurso jurídico da propriedade e suas rupturas: uma análise do ensino do direito de propriedade. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 92. 47 GILISSEN, John. op. cit., p. 645. 48 DUGUIT, Léon. Las transformaciones del derecho público y privado. Tradução de Adolfo G. Posada e Ramón Jaén. Buenos Aires: Heliasta, 2001, p. 172. Tradução livre do autor: “Os homens de 1789 e os autores do Código de Napoleão, e também, é preciso dizer, a grande maioria dos jurisconsultos franceses e estrangeiros da primeira metade do século XIX, salvo a escola de Savigny, estimavam que havia ali um sistema de Direito definitivo, que se impunha com o rigor e a evidência de um sistema de geometria, e assim como a geometria moderna descansa sobre os princípios formulados por Euclides, do mesmo modo em todos os tempos, em todos os países, o Direito de todos os povos civilizados não poderia ser mais que o desenvolvimento normal e racional dos princípios imortais e definitivos formulados nesses textos.” 31 desenvolvimiento normal y racional de los principios immortales y definitivos formulados en esos textos. As codificações, no século XIX, foram exitosas para a sociedade da época. Para Canaris49, “O século XIX presenciara profundas e promissoras alterações no modo de entender e de realizar o Direito: retenham-se, no domínio exemplar do Direito privado, o êxito das grandes codificações.” Segundo Lorenzetti50, “Antes do advento dos Códigos decimonónicos, regia-se a sociedade mediante consolidações. Estas pretendiam reproduzir o Direito sem modificá-lo, visavam apenas continuá-lo, melhorá-lo, em um continuum histórico.” O processo de codificação não se confunde com a consolidação, com a compilação. Esta é apenas a reunião de diversas fontes normativas que são, por assim dizer, jogadas dentro de um livro, sem modificações. O código é considerado uma lei unitária, não uma compilação de leis. Nas palavras de Canaris51: A codificação corresponde a uma estruturação juscientífica de certas fontes. Pode dar-se um passo: a codificação implica a sujeição das fontes ao pensamento sistemático; joga-se, nela, uma consciência mais ou menos assumida do relevo da linguagem e da dimensão estruturante do todo, na cultura. A codificação torna-se possível apenas com a obtenção de um certo estádio de desenvolvimento da Ciência do Direito. O Código Civil Francês, de 1804, o famoso Código Napoleão, foi a primeira codificação. O Código Napoleão regulava basicamente as relações concernentes à propriedade e ao contrato, proibindo o uso da propriedade quando em confronto com a lei, e oportunizando que os particulares formassem suas próprias leis, através de convenções, contratos, com validade de lei entre as partes. Ainda, segundo Canaris52: Os grandes pilares de fundo do Código Napoleão residiriam nos seus artigos 544 e 1134/1, assim concebidos: e . No entanto, a codificação, que era o meio pelo qual se acreditava ser possível arrolar em um único código toda a gama de suportes fáticos e preceitos necessários para regular as relações jurídicas entre as pessoas na sociedade, buscando a tão necessária segurança jurídica, 49 CANARIS, Claus-Wilhelm. Pensamento sistemático e conceito de sistema na ciência do direito. 3. ed. Tradução: António Manuel da Rocha e Menezes Cordeiro.Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2002, p. IX. 50 LORENZETTI, Ricardo Luis. Fundamentos do direito privado. São Paulo: RT, 1998, p. 42. 51 CANARIS, Claus-Wilhelm. op. cit., p. LXXXV. 52 Idem, p. XC. 32 tornou-se, com o passar do tempo, uma utopia. Para o dogma da completude da ordem jurídica, segundo Ascensão53: O sistema conteria tudo: nenhum caso que devesse ser juridicamente regulado deixaria de ter solução normativa. Mesmo nas hipóteses em que a interpretação não detectasse uma regra expressa que resolvesse aquele caso a lacuna continuaria a ser só aparente, pois a regra estaria implícita no sistema. Por processos essencialmente lógicos, como dissemos, poderia atingir-se sempre o princípio do qual derivaria a solução. Logo, o próprio ordenamento conteria potencialmente a previsão de todos os casos. Hoje, a plenitude da ordem jurídica pode considerar-se afastada. Reconhece-se que não há plenitude e o sistema não contém todas as soluções. As lacunas do ordenamento jurídico permanecem, pois a integração das normas jurídicas feitas por analogia resolve o problema do caso concreto em análise. Solucionado este, a lacuna permanece no ordenamento jurídico, devendo-se reinterpretar e reintegrar as normas para se alcançar a solução para um segundo caso concreto. No século XX, aparecem elementos de uma nova construção jurídica que, certamente, não será definitiva. O direito é dinâmico e tem, como uma de suas fontes, fatos ocorridos na sociedade que interessam ao direito e são transformados em suportes fáticos de normas, em fatos jurídicos que, um dia, poderão vir a ser juridicizadas. Neste sentido, segundo Pontes de Miranda54, “Os fatos do mundo ou interessam ao direito, ou não interessam. Se interessam, entram no subconjunto do mundo a que se chama mundo jurídico e se tornam fatos jurídicos, pela incidência de regras jurídicas, que assim os assinalam”. Além disso, afirma, ainda, Pontes de Miranda55: “Para que os fatos sejam jurídicos, é preciso que regras jurídicas – isto é, normas abstratas – incidam sobre eles, desçam e encontrem os fatos, colorindo-os, fazendo-os ‘jurídicos’”. Nestas palavras encontram-se a dinâmica da vida, do mundo dos fatos, influenciando diretamente a dinâmica do direito, do mundo jurídico, que dos fatos sociais se serve como fonte infindável de mudanças e criações legislativas. Dentre os fatos sociais, o direito pinça aquilo que lhe é interessante, de acordo com a vontade do povo, criando suportes fáticos e preceitos através da lei, que poderão ser juridicizados ou não. Por este motivo o direito não é estático, é dinâmico e se encontra a reboque das necessidades sociais. Nas palavras de 53 ASCENSÃO, José de Oliveira. O direito: introdução e teoria geral. 13. ed. Coimbra: Almedina, 2005, p. 464. 54 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti de. Tratado de direito privado. Atualizado por Vilson Rodrigues Alves. Campinas: Bookseller, 2000, p. 52. 55 Idem, p. 52. 33 Duguit56, “Nada hay definitivo en el mundo: todo pasa, todo cambia; y el sistema jurídico, que está en vias de elaborarse actualmente, dejará lugar un dia a outro que los juristas sociólogos del porvenir habrán de determinar”. A dinâmica da vida em sociedade é capaz de criar as mais diversas relações jurídicas. Desde as mais remotas disposições legais ainda em vigor, até as disposições legais mais atuais, se consubstanciam em previsões legais de fatos sociais e estão sujeitas a inúmeras modificações, desde alterações em seus textos legais, até revogações parciais ou totais, devido às influências e mudanças provocadas na sociedade pelos tempos modernos. A modernidade é fluída e capaz de dissolver conceitos e previsões legais seculares. Nesse sentido, afirma Bauman57: Os tempos modernos encontraram os sólidos pré-modernos em estado avançado de desintegração; e um dos motivos mais fortes por trás da urgência em derretê-los era o desejo de, por uma vez, descobrir ou inventar sólidos de solidez duradoura, solidez em que se pudesse confiar e que tornaria o mundo previsível e, portanto, administrável. A desintegração dos sólidos pré-modernos, referido por Bauman, pode ser associado às mudanças impostas à sociedade pela modernidade, de forma que venham a refletir no estilo de vida e, consequentemente, no ordenamento jurídico. Os Códigos, desde Napoleão, são uma eterna tentativa de tornar a dinâmica da sociedade previsível e administrável. Entretanto, a dinâmica da sociedade moderna é mais rica do que as previsões legais. Descobrir ou inventar sólidos duradouros através da Codificação é uma tarefa cada vez mais difícil. A codificação passa a ser vista como um sistema em declínio, porém ainda utilizada, devido à falta de um sistema que atenda às necessidades modernas. Conforme afirma Bauman58, “São esses padrões, códigos e regras a que podíamos nos conformar, que podíamos selecionar como pontos estáveis de orientação e pelos quais podíamos nos deixar depois guiar, que estão cada vez mais em falta.” A modernidade é capaz de tornar as disposições legais obsoletas. A desejada segurança jurídica das relações sociais começa a ser atingida. A sociedade passa por um estágio de mudanças radicais. As 56 DUGUIT, Léon. op. cit., p. 173. Tradução livre do autor: “Nada há definitivo no mundo: tudo passa, tudo muda; e o sistema jurídico, que está em vias de elaboração atualmente, deixará lugar um dia a outro que os juristas sociólogos do porvir haverão de determinar”. 57 BAUMAN, Zigmunt. Modernidade Líquida. Tradução de Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001, p. 10. 58 Idem, p.14. 34 disposições positivadas nos Códigos não são mais suficientes para a gama de relações jurídicas novas que a modernidade nos oferece. Conforme Albuquerque59: A própria insuficiência do mito da lei como fonte do direito por excelência acarretou, na prática, a degeneração da falsa noção de um modelo absoluto, capaz de enfeixar e unificar por completo o arcabouço jurídico necessário para a solução dos conflitos existentes no seio da sociedade. O fenômeno da descodificação faz com que o código deixe de ser aquele rol infalível de hipóteses jurídicas. Segundo Finger60, “os valores desta sociedade não são mais aqueles pregados pelo direito civil do Estado Liberal”. Estes valores, outrora encontrados no Direito Civil, agora estão nas Constituições. A Constituição Federal é que positiva os direitos concernentes à justiça, segurança, liberdade, igualdade, propriedade, herança, que antes estavam no Código Civil. A crescente intromissão do Estado na autonomia individual faz surgir correntes socializadoras do direito de propriedade. A concepção romana de propriedade, de caráter individualista, entra em declínio. Pereira61, ao comentar o instituto da propriedade, afirma que: Ella assenta hoje sob a mesma base individualista em que a assentaram os romanos, mas em torno dessa concepção se coordena um movimento que tende, não a quebrar-lhe as linhas fundamentais da estrutura, mas a torná-las menos ásperas e mais permeáveis às correntes socializadoras. A propriedade, hoje, se assenta sobre a mesma base estrutural romanista, contudo, menos individualista, mais flexível frente aos direitos da coletividade. A propriedade privada deixa de ser assunto pertinente apenas ao seu proprietário (ao paterfamilias da família romana) e passa a ser de interesse da coletividade. Novas regras e novos princípios vincularam o exercício do direito de propriedade ao atendimento de preceitos de ordem constitucional. Para Nery62: As constituições mais recentes são sensíveis a aspectos específicos da convivência humana, e por isso, a partir dos anos sessenta, os cultores do direito privado incluem 59 ALBUQUERQUE, Ronaldo Gatti de. Constituição e codificação: a dinâmica atual do binômio. In: MARTINS-COSTA, Judith (Org.). A Reconstrução do Direito Privado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 73. 60 FINGER, Julio Cesar. Constituição e direito privado: algumas notas sobre a chamada constitucionalização do direito civil. In: SARLET, Ingo Wolfgang (Org.). A constituição concretizada: construindo pontes como público e o privado. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2000, p. 93. 61 PEREIRA, Virgilio de Sá. Manual do Código Civil Brasileiro: direito das coisas - da propriedade. 2. ed. Histórica atual. Coordenador: Paulo Lacerda. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 5. v. 8. 62 NERY, Rosa Maria de Andrade. Introdução ao pensamento jurídico e à teoria geral do direito privado. São Paulo: RT, 2008, p. 58. 35 a Constituição entre as fontes de direito privado, desprezando, por assim dizer, uma antiga divisão entre “sociedade civil” e “sociedade política” e possibilitando o diálogo entre a terminologia e os conceitos originários da Constituição e os institutos de direito privado. Trata-se da constitucionalização do direito privado. Fenômeno pelo qual as normas de direito privado devem ser interpretadas sempre em consonância com os ditames constitucionais, de modo a considerar a Constituição Federal, não mais uma Carta restrita a direitos políticos, mas a fonte de onde deve emanar todo o ordenamento jurídico. Segundo Canotilho63: Note-se, porém, que a partir de meados do século a função dos códigos civis passou a ser outra: deixaram de ser a refração no plano civil das ideias individualisticas da constituição para passarem a dimensão central do direito positivo do Estado. Erguidos a núcleo central de um direito certo e estável, aplicável de modo seguro pelos juízes e garantidores de posições jurídico-subjectivas formadas na lei, os códigos civis converteram-se na principal fonte de direito. São eles e não as constituições que fixam os princípios gerais do direito remetendo o texto constitucional para a categoria de simples “lei orgânica dos poderes políticos”. A constitucionalização do direito privado significa justamente refutar esta concepção de que o direito tenha, como sua principal fonte, as codificações. A Constituição Federal não pode ser considerada mera lei orgânica de poderes políticos, mas fonte principiológica de irradiação de direitos. Pela constitucionalização do direito privado, o Código Civil passa a ser interpretado à luz da Constituição Federal, que volta a ser a fonte principal do direito, em uma visão sistêmica do ordenamento jurídico brasileiro. De conformidade com Bolzan de Morais64: De uma feição eminentemente liberal-individualística, baseada na apreensão exclusiva/egoísta de bens e direitos, caminha-se para a sistematização e normatização dos nomeados interesses transindividuais, onde o núcleo não mais está no indivíduo, como mônada isolada, mas no “coletivo” e sua titularidade encontra-se dispersa nele. As novas situações conflituosas definem, então, uma nova conformação para o Direito, que tem na legislação social seu referencial primário. Com o advento da Constituição Federal, de 1988, o instituto da propriedade assume uma função social. Embora garantida pelo artigo 5°, XXII da Carta Magna, a propriedade fica relacionada ao atendimento de sua função social, conforme o artigo 5°, XXIII, da Constituição Federal de 1988. A mudança no tratamento dado ao instituto da propriedade traduz a vontade do constituinte em relativizar o seu caráter individualista. A introdução da 63 CANOTILHO, Joaquim José Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 5. ed. Coimbra: Almedina, 2001, p. 121. 64 BOLZAN DE MORAIS, Jose Luis. Do direito social aos interesses transindividuais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1996, p. 19. 36 função social da propriedade no ordenamento jurídico brasileiro, através de sua lei maior, representa um marco histórico que revoluciona a concepção individualista de propriedade existente até então. O Código Civil de 2002 surge embasado em novos princípios. Uma de suas características marcantes é deixar de lado o individualismo e a patrimonialidade, que são características marcantes do anterior Código Civil de 1916, provenientes do Código Napoleão de 1804. Ao dedicar um capítulo inteiro sobre os chamados Direitos da Personalidade (artigos 11 a 21), o Código Civil de 2002 privilegia a pessoa em detrimento do patrimônio. Os princípios que embasam o atual Código Civil são: o princípio da Eticidade, o princípio da Operabilidade e o princípio da Socialidade ou Solidariedade. O princípio da Eticidade pode ser melhor vislumbrado no artigo 422, do Código Civil, de 2002, conforme segue: “Art. 422. Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé”. O Código Civil recomenda que, nos contratos em geral, inclusive na compra e venda de bens imóveis, as partes ajam com dignidade, com probidade, respeito e ética, durante toda a contratação, desde a conclusão do contrato até sua execução. São valores que visam a prevenção de conflitos e que tem por escopo acentuar a importância do princípio da boa-fé objetiva. Reale65, referindo-se ao projeto de Código Civil, afirma o seguinte: “Frequente é no Projeto a referência à probidade e a boa-fé, assim como à correção (corretezza) ao contrário do que ocorre no Código vigente, demasiado parcimonioso nessa matéria, como se tudo pudesse ser regido por determinações de caráter estritamente jurídicas.” A Operabilidade é outro princípio que regula o espírito do Código Civil. Por ele, as disposições do Código Civil devem ser as mais claras e objetivas possíveis, fechando lacunas deixadas pelo Código Civil de 1916, que pareciam intransponíveis. De acordo com Reale66, “Exemplo disso é o relativo à distinção entre prescrição e decadência, tendo sido baldados os esforços no sentido de verificar-se quais eram os casos de uma ou de outra, com graves consequências de ordem prática”. Este princípio pode ser encontrado nos artigos 205 e 206 do Código Civil de 2002, que colocam uma pá de cal sobre a discussão acerca dos prazos prescricionais e decadenciais existentes no Código Civil de 1916, tornando sua classificação mais clara e objetiva. 65 REALE, Miguel. Novo Código Civil Brasileiro – Lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002. 4. ed. São Paulo: RT, 2004, p. 13. 66 Idem, p. 15. 37 O princípio da Socialidade ou Solidariedade, por sua vez, encontra-se inserido no Código Civil de 2002, através de dois dispositivos principais. Na área dos contratos, o artigo 421, pelo qual, “Art. 421. A liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato”. E, na área da regulamentação do direito de propriedade, no artigo 1.228, que dispõe: “Art. 1.228. O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha”. Ainda, nas palavras de Reale67: É constante o objetivo do novo Código no sentido de superar o manifesto caráter individualista da Lei vigente, feita para um País ainda eminentemente agrícola, com cerca de 80% da população no campo. Hoje em dia, vive o povo brasileiro nas cidades, na mesma proporção de 80%, o que representa uma alteração de 180 graus na mentalidade reinante, inclusive em razão dos meios de comunicação, como o rádio e a televisão. Daí o predomínio do social sobre o individual. Estes princípios demonstram o novo perfil do Código Civil de 2002. Todas as suas disposições encontram-se neles embasadas. Com um Código Civil mais solidário, operacional e ético, acredita-se na mudança de perfil da sociedade brasileira, para uma sociedade mais justa e solidária, de acordo com os ditames sociais. O direito de propriedade também sofre significativas modificações, atenuando seu caráter individualista, de forma a se tornar um direito não mais absoluto, mas vinculado ao cumprimento de sua função social. O titular do direito de propriedade pode utilizar a coisa, destruí-la, aliená-la, gravá-la ou praticar outros atos de disposição. Está autorizado, também, a defender sua propriedade através de ações possessórias ou da ação reivindicatória. Nesse sentido, o direito de propriedade se constitui em instituto de direito privado. No entanto, há disposições legais, de ordem pública, portanto, limitativas ao exercício do direito de propriedade. Assim, “o proprietário, em sentido largo, pode excluir as outras pessoas de qualquer intromissão, salvo onde a lei a permita.”68 Tais normas, visam a proteção de valores maiores, como a desapropriação, o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, os direitos difusos e coletivos que podem vir a ser desrespeitados pelo proprietário69. 67 Ibidem, p. 13-14. 68 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti de. op. cit. p. 39. tomo 11. 69 Ibidem, p. 44: “Os direitos reais, a começar-se pelo domínio, são direitos subjetivos, cujo conteúdo são poderes de senhoria do objeto, com as limitações que derivam da situação no espaço terrestre e de regras jurídicas, de direito público ou de direito privado, e que lhe dão certo contorno. São limitações as que atribuem fim coletivo à propriedade, se tais limitações não chegam a ponto de tornar sujeito do direito subjetivo a coletividade mesma, o povo, “todas as pessoas”, ou o Estado.” 38 O direito de propriedade, portanto, é instituto de direito privado, porém, vinculado aos ditames da Constituição Federal, da função social, do poder público, da lei, bem como ao respeito aos direitos da coletividade e ao meio ambiente. A garantia dos direitos do cidadão, inclusive o direito de propriedade, passa, necessariamente, pela busca de segurança jurídica nas relações sociais e jurídicas. O homem precisa de segurança para conduzir responsavelmente sua vida. A codificação representa uma tentativa de dar segurança jurídica aos sistemas jurídicos. Isso somente é possível quando o próprio direito é seguro. Nesse sentido, a segurança jurídica está diretamente ligada à confiabilidade e estabilidade do sistema jurídico, na medida em que exigem, não somente confiança e transparência dos atos do poder, mas também a garantia ao cidadão dos efeitos jurídicos de seus próprios atos70. A segurança jurídica, além de ser um valor, é princípio fundamental do direito e também seu objetivo71. O princípio geral da segurança jurídica garante ao indivíduo o direito de confiar nas disposições jurídicas a ponto de ter certeza dos efeitos jurídicos que serão emanados dos atos por ele praticados, ou das decisões públicas incidentes sobre os seus direitos72. Para que o direito seja seguro, é preciso que seja positivado de forma que os pressupostos legais sejam cumpridos da maneira mais exata possível, sem arbitrariedades73. A segurança jurídica é forma de proteção do cidadão contra o abuso de poder, concedendo ao cidadão o direito de conhecer o sistema jurídico de seu país e os efeitos que poderão emanar dos atos das autoridades públicas. No sentido objetivo, a segurança jurídica pressupõe a confiabilidade e estabilidade das disposições legais do ordenamento jurídico, da ordem jurídica. Sem segurança não há ordem jurídica e, por isso, para que se atinja a desejada segurança, é necessário que o direito 70 CANOTILHO, Joaquim José Gomes. op. cit., p. 257: “A segurança e a proteção da confiança exigem, no fundo: (1) fiabilidade, clareza, racionalidade e transparência dos atos do poder; (2) de forma que em relação a eles o cidadão veja garantida a segurança nas suas disposições pessoais e nos efeitos jurídicos dos seus próprios atos.” 71 ASCENSÃO, José de Oliveira. op. cit., p. 199: “Também a segurança é um valor, e também ela nos aparece como objetivo do direito.” 72 CANOTILHO, Joaquim José Gomes. op. cit., p. 257: “O princípio geral da segurança jurídica em sentido amplo (abrangendo, pois, a ideia de proteção da confiança) pode formular-se do seguinte modo: o indivíduo têm do direito poder confiar em que aos seus atos ou às decisões públicas incidentes sobre os seus direitos, posições ou relações jurídicas alicerçados em normas jurídicas vigentes e válidas por esses atos jurídicos deixado pelas autoridades com base nessas normas se ligam os efeitos jurídicos previstos e prescritos no ordenamento jurídico.” 73 KAUFMANN, Arthur. Filosofia do direito. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2004, p. 282: “Para que o direito seja seguro, é necessário positividade. Positividade não significa, aqui, apenas e tão simplesmente a circunstância de o direito ser “posto” (o direito consuetudinário não é “posto” e é, contudo, por força duma prática reiterada duradoura, positivo); o que é decisivo é que os pressupostos da lei sejam estabelecidos de forma tão exata quanto possível e possam por isso ser determinados sem arbitrariedade (imperativo de precisão!).” 39 possua exequibilidade prática. A estabilidade do sistema jurídico é essencial para sua melhor compreensão74. Utilizando-se da melhor compreensão do ordenamento jurídico, o aplicador do direito possui garantia de segurança em suas reflexões para aplicá-las na prática. O conhecimento do direito deve ser isento de erros, o que significa a possibilidade de haver clareza interpretativa das normas jurídicas. Todavia, a interpretação jurídica, vista sob o prisma hermenêutico, não se esgota somente na interpretação das leis. Ela passa a ser concebida como ato de realização do direito75. Assim como o direito deixou de identificar-se com a lei, a realização do direito deixou de ser mera aplicação das normas legais. Ao interprete de textos jurídicos, é imprescindível a compreensão e consciência histórica, considerando a época em que o texto foi escrito, a fim de realizar nexos históricos cada vez mais amplos, até alcançar a posição exata do texto no contexto da história universal e seu real significado, na busca de segurança jurídica76. A realização concreta do direito exige interpretação. O sentido das palavras de um texto jurídico varia de acordo com a práxis, o contexto e o uso da linguagem77. Os vários contextos possíveis garantem a polissemia da linguagem, o que mantém o significante aberto a diferentes possibilidades significativas. A compreensão de um termo ou expressão linguística é claro ou não claro, sempre para alguém, em uma determinada situação, a um certo objetivo de compreensão. O intérprete de textos jurídicos deve despir-se de seus pré-conceitos para, somente desta forma, conhecer o significado das frases, sem influência alguma, a fim de aceitar novas ideias e, com isso, alcançar a plena compreensão da ideia do texto78. Todavia, a ideia do texto 74 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método – Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 5. Ed. Tradução de Flávio Paulo Meurer. 5. Ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2003. V. 1, p. 318: “Segundo Dilthey, tanto na direção da contemplação como na da reflexão prática surge a mesma tendência da vida: “aspiração à estabilidade””. 75 CASTANHEIRA NEVES, António. O actual problema metodológico da interpretação jurídica. Coimbra: Coimbra Editora, 2003, v. 1, p. 11: “O problema da interpretação jurídica está, com efeito, a sofrer uma radical mudança de perspectiva no atual contexto metodológico. Deixou de conceber-se tão-só e estritamente como interpretação da lei, para se pensar como actus da realização de direito. E isto significa, por um lado, que a realização do direito não se identifica já com a interpretação da lei, nem nela se esgota [...].” 76 GADAMER, Hans-Georg. Op. Cit., p. 312: “De acordo com Dilthey, seguindo esse esquema seria possível pensar-se o conhecimento de nexos históricos cada vez mais amplos e estendê-lo até um conhecimento histórico universal, do mesmo modo que uma palavra só pode ser compreendida plenamente a partir da frase inteira e esta somente a partir do contexto do texto inteiro e até da totalidade da literatura transmitida.” 77 CASTANHEIRA NEVES, António. Op. cit., p. 17: “[...] o sentido das palavras é função do seu , da sua função num determinado () -, isto é, numa determinada práxis, num determinado contexto ou sistema significante e segundo constitutivas e implicadas por esse contexto ou sistema: e [...].” 78 GADAMER, Hans-Georg. Op. cit., p. 250: “E aqui pouco importa se o sentido visado corresponde à nossa perspectiva; pois queremos conhecer unicamente o sentido das frases (o sensus orationum), não sua verdade (veritas). Para isso precisamos eliminar toda e qualquer pressuposição, inclusive a da nossa razão (e tanto mais a de nossos preconceitos).” 40 compreendida por seu leitor nem sempre espelha a ideia do seu autor, pois este poderá conter diferentes significados na medida em que, no processo de compreensão do texto, o leitor poderá pensar em coisas que ao autor não ocorreria. Diante disso, cada vez mais se afirma a necessidade e a importância da hermenêutica, para se atingir a melhor interpretação possível das disposições legais e, com isso, uma maior segurança jurídica, na aplicação do direito. Através de uma lei obscura ou contraditória, pode não ser possível a obtenção de uma interpretação inequívoca das disposições legais, a fim de encontrar uma solução jurídica para o problema concreto. Todavia, “isso leva frequentemente a um aumento e a uma formalização das hipóteses normativas, que pode, no caso concreto, implicar a contradição com a justiça material.”79 As disposições legais devem ser interpretadas de forma global, através de uma visão sistêmica, que torne inseparável a interpretação como averiguação do sentido da disposição legal, da realização prática do direito. E isso significa que o direito deve ser interpretado de acordo com as necessidades práticas de sua aplicação, de modo a atingir a concreção do direito com fundamento em normas, princípios e valores, ou seja, com fundamento em uma certa ordem normativa de direito80. Ainda em sentido objetivo, para que se observe o princípio da segurança jurídica, os atos normativos e legislativos não podem gerar eficácia enquanto não estiverem plenamente em vigor e legalmente prescritos81. A prática de atos não previstos na lei ou ainda não vigentes não se coaduna com o desiderato do direito, a segurança jurídica e a justiça. A justiça e a segurança jurídica nem sempre andam juntas. O conflito entre os valores de justiça e segurança somente pode ser resolvido diante do caso concreto, de forma política. “Com frequência será necessário sacrificar a justiça por amor da segurança, ou sacrificar a segurança por amor da justiça, ou sacrificar ambas parcialmente.”82 79 KAUFMANN, Arthur. op. cit., p. 283. 80 CASTANHEIRA NEVES. Op. Cit.,, p. 42: “Compreende-se assim que se fale ainda de interpretação global para dar expressão conceitual à totalidade da mediação normativa exigida pela realização do direito e ao seu continuum constitutivo. E então haverá decerto de concluir-se que, neste sentido, , mas a de , ou seja, a interpretação jurídica significa a obtenção do direito com fundamento numa certa ordem normativa de direito – com fundamento nas normas, princípios e valores que refira e em que se objetive essa ordem, e na normativa unidade intencional que a constitua.” 81 CANOTILHO, Joaquim José Gomes. op. cit., p. 259: “[...] os atos legislativos e outros atos normativos não podem produzir quaisquer efeitos jurídicos (pretensão de eficácia) quando não estejam ainda em vigor nos termos constitucional e legalmente prescritos [...]” 82 ASCENSÃO, José de Oliveira. op. cit., p. 200. 41 Alterações legislativas em demasia causam instabilidade da ordem jurídica e, consequentemente, insegurança jurídica. O direito não pode ser alterado constantemente, sob pena da falta de uniformidade na aplicação do direito e, em consequência, teremos insegurança, gerando injustiça83. Somente um direito previsível é seguro. Na concepção de Canotilho84, há três refrações importantes do princípio da segurança jurídica, que são os seguintes: (1) relativamente a atos normativos – proibição de normas retroactivas restritivas de direitos ou interesses juridicamente protegidos; (2) relativamente a atos jurisdicionais – inalterabilidade do caso julgado; (3) em relação a atos da administração – tendencial estabilidade dos casos decididos através de atos administrativos constitutivos de direitos. Nesse sentido, no Brasil, a Constituição Federal de 1988 demonstra o acolhimento do princípio da segurança jurídica, no inciso XXXVI de seu artigo 5°, segundo o qual “a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada”. Assim, de modo geral, a lei não poderá excluir um direito adquirido pelo cidadão de forma lícita, ou lei posterior negar um direito ao cidadão já consumado segundo a lei vigente ao tempo em que se efetuou, nem mesmo a lei prejudicar uma decisão judicial da qual já não caiba mais recurso. Em seu sentido subjetivo, a segurança jurídica, segundo Pontes de Miranda85, “[...] é a segurança, que têm as pessoas, quanto à aquisição, modificação, eficácia e extinção dos direitos, principalmente no trato com as outras pessoas [...]”. Dessa forma, quando alguém adquire um imóvel, quer ter certeza de que sua condição de proprietário será duradoura de acordo com sua vontade, com eficácia erga omnes, somente podendo ser modificado quando assim desejar, ou quando, em situações excepcionais, o poder público ou o poder judiciário, através de medidas previstas em lei, impuser alguma alteração ou a extinção de seu direito. Com o desiderato de alcançar segurança jurídica e proteção para sua propriedade, o cidadão procurará registrar seu direito de propriedade no Registro de Imóveis. 2.3 Registro de imóveis: proteção da propriedade e segurança jurídica 83 KAUFMANN, Arthur. op. cit., p. 284: “Mas a justiça também não pode tolerar uma constante alteração da legislação, pois ela terá como efeito a falta de uniformidade na aplicação do direito e, com isso, a injustiça.” 84 CANOTILHO, Joaquim José Gomes. op. cit., p. 257. 85 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti de. op. cit., p. 193, tomo I. 42 Os grupos sociais primitivos, baseados na família, possuíam necessidades rudimentares. Os poucos negócios que haviam eram realizados com base na boa-fé e mediante invocação a Deus, como lei natural, sem necessidade de sanções coercitivas para garantir os atos civis.86 Para a família, de caráter religioso, sujeita à total vontade do pai, só havia uma lei: total submissão e obediência e, por este motivo, dispensavam intermediação nos seus negócios. Os governos da época não tomavam medida alguma para garantir as contratações. As necessidades crescentes tornaram o relacionamento social mais exigente e, por conseguinte, o aumento das atividades do indivíduo gerou o aumento da necessidade de contratação civil. Deixando de invocar a Deus como meio solene de contratação, os homens começaram a celebrar contratos em determinados lugares, confiando suas memórias às coisas que se destacavam nesses lugares, bendizendo a contratação ao pé do lugar em que a firmaram, pronunciando palavras adequadas. Após esta fase, com o aumento da demanda por relações individuais, tornou-se necessário recorrer ao testemunho de pessoas que acompanhavam os negócios, que presenciavam a cerimônia jurídica, funcionando o testemunho como uma forma de evitar o esquecimento do teor contratado e a má-fé. A busca de alguém capaz de disciplinar os relacionamentos sociais, sobretudo no que se referia aos assuntos de trocas de mercado, representa o início da necessidade de alguma segurança jurídica nos negócios que eram realizados em sociedade. Inicialmente, os denominados sacerdotes memoristas foram investidos da função de memorização dos negócios realizados, numa tentativa de alcançar a desejada segurança jurídica.87 O sacerdote fazia o papel de mediador oral e se manteve nesta função até o advento da escrita. Com a evolução dos povos e o crescimento do comércio, surge a necessidade de formalização dos negócios, através de documentos escritos devido à complicação das transações e a insegurança proveniente das provas testemunhais ou das declarações verbais. 86 NERY, Argentino. Tratado teórico y práctico de derecho notarial. Buenos Aires: Depalma, 1980, p. 1. vol. 1: “La balbuciante vida jurídica de los primitivos pueblos, ejercida bajo el imperio de la buena fe y la invocación a Dios, como ley natural, determinó una comunidad prístinamente pura, por lo que la sociedad no necesitó en ningún momento echar mano a sanciones coercibles para garantizar la realización de los actos civiles.” Tradução livre do autor: “A balbuciante vida jurídica dos povos primitivos, exercida sob o império da boa-fé e a invocação a Deus, como lei natural, determinou uma comunidade pristinamente pura, motivo pelo qual a sociedade não necessitou em nenhum momento lançar mão a sanções coercíveis para garantir a realização dos atos civis.” 87 MARTINS, Cláudio. Teoria e prática dos atos notariais. Rio de Janeiro: Forense, 1979, p. 2: “Como ainda não existia escrita, os negócios eram igualmente memorizados pelo sacerdote memorista, cuja integridade se fazia, assim, a única garantia de cumprimento das relações negociais. O memorista foi, portanto, o primeiro indivíduo a exercitar, rudimentarmente, atividade assemelhada à função notarial, considerada sua atuação na área dos negócios.” 43 Surgem, então, os calígrafos, que passaram a documentar os interesses das partes.88 A partir da escrita, o documento passou a ser escrito na forma de um instrumento particular. Surge a escritura, com a finalidade de dar forma escrita à palavra humana. Surge daí a necessidade de um redator incumbido da função de dar forma aos negócios realizados pelos cidadãos, conferindo-lhes legitimidade e assegurando os efeitos jurídicos dos atos e documentos. Este redator, com o passar do tempo, foi denominado de notário público. Com relação aos povos egípcios, a classe dirigente sentiu a necessidade de homens preparados para escrever suas normas jurídicas e sociais, além dos atos e contratos civis. Tais homens foram os “escribas” 89. O povo hebreu também teve seus escribas. Segundo Silva90: Ali existiam o “escriba da lei”, ao qual se reconhecia capacidade para interpretar a lei, o “escriba do povo”, que era o redator de pactos e convênios, o “escriba do rei”, que autenticava os atos e resoluções monárquicas, e o “escriba do Estado”, que exercia as funções do Conselho de Estado e de colaborador dos Tribunais de Justiça. O escriba do povo era, dentre os escribas hebreus, o que possuía funções mais semelhantes com as do notário atual, como redator de contratos e por estar vinculado à atividade privada. Todavia, o notário público, nas antigas civilizações, embora possuísse a função de redação dos contratos, não possuía o poder de autenticação, a fé pública.91 88 MELO JUNIOR, Regnoberto Marques de. A instituição notarial: no direito comparado e no direito brasileiro. Fortaleza: Casa de José de Alencar/UFC, 1998, p. 15: “Atendendo a essa necessidade, cedo apareceram os calígrafos que, além de emprestarem os seus talentos para documentar, intermediavam, por outra parte, os interesses das partes na negociação.” 89 NERY, Argentino. op. cit., p. 3: “Lo verídico en la vida del pueblo egípcio es que la clase dirigente, y con ella los grandes funcionarios del estado, sintieron la necesidad de hombres de alta preparación, capaces de homologar a escrito todas sus normas jurídicas y sociales, y hasta necesarios para actuar en la redacción de los actos y contratos de la vida civil. Tales hombres, encumbrados en la administración y generalmente integrantes de la clase sacerdotal, fueron los “escribas”. Estimados como individuos de dotes superiores, merced al título adquirido, comenzaron su vida pública redactando primero la contratación solemne y luego la formularia, hasta llegar a encumbrarse en la propia corte faraônica como secretários del estado, algo así como escribanos de gobierno, con funciones precisas, limitadas a cosas formales, como la redacción de contratos de arriendo de tierras, la percepción de gabelas y otras contribuciones que gravaban a las tierras públicas, el control de las rentas del estado, de los gastos del ejército, etc.; en una palabra: se conceptuaban verdaderos custódios de los intereses del estado.” Tradução livre do autor: “A verdade na vida do povo egípcio é que a classe dirigente, e com ela os grandes funcionários do estado, sentiram a necessidade de homens de alta preparação, capazes de homologar a escrito todas suas normas jurídicas e sociais, e até necessários para atuar na redação dos atos e contratos da vida civil. Tais homens, enaltecidos na administração e geralmente integrantes da classe sacerdotal, foram os “escribas”. Estimados como indivíduos de dotes superiores, mercê ao título adquirido, começaram sua vida pública redigindo primeiro a contratação solene e logo a formularia, até chegar a se elevar à própria corte faraônica como secretários de estado, algo assim como escrivães do governo, com funções precisas, limitadas a coisas formais, como a redação de contratos de arrendamento de terras, a percepção de impostos e outras contribuições que gravavam as terras públicas, o controle das rendas do estado, dos gastos do exército, etc.; em uma palavra: se conceituavam verdadeiros tutores dos interesses do estado.” 90 SILVA, Antonio Augusto Firmo da. Compêndio de temas sobre direito notarial. São Paulo: Bushatsky, 1979, p. 14. 91 Idem, p. 15: “Entretanto, apesar de nessas antigas civilizações existirem funcionários encarregados de redigir contratos, não se pode dizer que as funções que desempenhavam se possam comparar com o conceito que atualmente temos da função notarial. Tinham esses funcionários somente a função de redatores, mas faltava-lhes o poder de autenticação, a Fé Pública.” 44 Entre os romanos, onde se situa a mais aceitável origem do notariado, havia escribas e oficiais de várias matizes, como o notário, o tabulário e o tabelião. O notário era o amanuense que escrevia por meio de notas e signos. O tabulário era uma espécie de contador público, encarregado de verificar contas e organizar a lista de impostos, podendo redigir convenções particulares. O tabelião era o oficial público, desvinculado do Estado e versado em direito92. Ao tabelião se exige ser versado em direito devido à sua função. A função notarial, simplificadamente, consiste em receber a vontade das partes e formalizá-las em um instrumento escrito. Para tanto, deverá estar preparado para o assessoramento às partes, interpretação de sua vontade, instrumentação do negócio jurídico desejado, bem como para autenticar e certificar os atos já assentados. Eis a função notarial, nas palavras de Segovia: Es la función profesional y documental autônoma, jurídica, privada y calificada, impuesta y organizada por la ley (caracteres), para procurar la seguridad, valor y permanência, de hecho y de derecho (fines), al interés jurídico de los individuos, patrimonial o extrapatrimonial, entre vivos o por causa de muerte, en relaciones jurídicas de voluntades concurrentes o convergentes y en hechos jurídicos, humanos o naturales (objeto material), mediante su interpretación y configuración, autenticación, autorización y resguardo (operaciones de ejercicio) confiada a un notario (médio subjetivo). 93 Há determinados negócios jurídicos em que é imprescindível a forma especial94. A lei tem a função de escolher, dentre os negócios jurídicos, aqueles em que a formalidade é indispensável. O notário, portanto, é o meio subjetivo para dar forma legal aos negócios jurídicos, formalizando-os de acordo com a lei, em um instrumento escrito, público, o documento notarial (elemento objetivo), a fim de conferir valor ao documento e, com isso, gerar segurança jurídica. 92 MARTINS, Cláudio. op. cit., p. 6: “Atuava na área privada negocial, assessorando as partes e reduzindo-lhes a vontade livremente manifestada a escritos e documentos, inclusivamente contratos e disposições testamentárias. Embora não possuísse, ainda, o poder de autenticar com base em fé pública pessoal, imposta pela lei, esse prístino assessor jurídico e redator de atos privados foi, no passado, o profissional que mais reuniu elementos característicos da função notarial do tipo latino. A ele, consequentemente, remonta a provável origem do moderno notariado. 93 SEGOVIA, Francisco Martinez. Función notarial.Buenos Aires: EJEA, 1961, p. 21. Tradução livre do autor: “É a função profissional e documental autônoma, jurídica, privada e qualificada, imposta e organizada pela lei (características), para procurar a segurança, valor e permanência, de fato e de direito (finalidade), ao interesse jurídico dos indivíduos, patrimonial ou extrapatrimonial, entre vivos ou mortis causa, em relações jurídicas de vontades concorrentes ou convergentes e em fatos jurídicos, humanos ou naturais (objeto material), mediante sua interpretação e configuração, autenticação, autorização e resguardo (operações de exercício) confiada a um notário (meio subjetivo).” 94 JÖRS, Paul; KUNKEL, Wolfgang. Tradução da segunda edição alemã por L. Pietro Castro. Derecho privado romano.Barcelona: Labor, 1965, p. 128: “En todos los regímenes jurídicos existen negocios jurídicos que exigen la observância de ciertos requisitos externos, es decir negócios cuya validez depende de que la declaración de voluntad se expresse en determinada forma. Los derechos modernos optan en general por la forma escrita, llevada a consecuencias más o menos rigurosas (escritura pública o escritura privada).” Tradução livre do autor: “Em todos os regimes jurídicos existem negócios jurídicos que exigem a observância de certos requisitos externos, a saber negócios cuja validade depende de que a declaração de vontade se expresse em determinada forma. Os direitos modernos optam em geral pela forma escrita, levada a consequências mais ou menos rigorosas (escritura pública ou escritura privada).” 45 O documento notarial é a escritura. Em Roma, a escritura como forma obrigatória dos negócios teve uma importância secundária. A maior parte dos negócios eram realizados pela oralidade ou não se exigia forma alguma, todavia, podia-se escolher entre a oralidade ou a escritura. Até a época clássica, o Direito Romano somente conhecia os documentos privados. Até mesmo os atos administrativos e as resoluções das autoridades não eram publicizados de forma documental, mas por exposição em lugar público. O interessado devia procurar uma cópia privada. De acordo com Jörs95: Solo a princípios del siglo tercero después de Cristo se inicia la documentación pública, en forma de declaraciónes apud acta en protocolos de funcionarios públicos. Algo más tarde, el derecho imperial de la última época instituye funcionarios especiales encargados de autorizar escrituras de particulares (ius actourm conficiendorum), y se establece como requisito de validez de algunos negócios... la observancia del requisito de la intervención del funcionario notarial (insinuatio). Pero la forma normal de documentación continuó siendo el documento privado, que ahora solía ser extendido por un escribano de profesión (tabellio), generalmente con intervención de testigos. As escrituras de particulares geravam efeitos somente entre as partes, como nos contratos. A escritura, atualmente, não deixa de ser um contrato, porém, celebrado por um agente público, delegado pelo Estado para a função. Todavia, mesmo sendo a escritura realizada por um agente público, sentia-se, desde as antigas civilizações, a necessidade de se exteriorizar o direito adquirido no contrato perante terceiros. Quando o homem primitivo se interessou por tomar posse sobre um pedaço de terra, para cultivá-la e dela viver, muitas vezes precisava exteriorizar seu direito perante terceiros, porém, a forma de exteriorização desse direito nem sempre era pacífica96. O senhorio da coisa 95 Idem, p. 142. Tradução livre do autor: “Somente no início do século terceiro depois de Cristo se inicia a documentação pública, em forma de declarações apud acta em protocolos de funcionários públicos. Pouco mais tarde, o direito imperial da última época institui funcionários especiais encarregados de autorizar escrituras de particulares (ius actorum conficiendorum), e se estabelece como requisito de validade de alguns negócios... a observância do requisito da intervenção do funcionário notarial (insinuatio). No entanto, a forma normal de documentação continuou sendo o documento privado, que agora costumava ser emitido por um notário de profissão (tabelio), geralmente com intervenção de testemunhas.” 96 GARCIA CONI, Raul Rodolfo; FRONTINI, Angel A. Derecho registral aplicado. 2. ed. Buenos Aires: Depalma, 1993, p. 12: “Cuando el hombre primitivo le interesó posesionarse de un pedazo de tierra para cultivarla, edificar su casa y criar sus animales, adquirió señorío sobre esa cosa inmueble. Muchas veces debió defenderla de la codicia ajena exteriorizando su “domínio” en forma no siempre pacifica.” Tradução livre do autor: “Quanto ao homem primitivo lhe interessou tomar posse de um pedaço de terra para cultivá-la, edificar sua casa e criar seus animais, adquiriu senhorio sobre essa coisa imóvel. Muitas vezes teve que defendê-la da ganância alheia exteriorizando seu “domínio” de forma nem sempre pacífica.” 46 exercia seu direito de propriedade de modo ostensivo e necessitava de uma forma pacífica de exteriorizar seu direito. O crescimento demográfico e o estabelecimento do homem em lugares privilegiados pela natureza fizeram com que, paulatinamente, desaparecessem os bens de raízes sem dono (res nullius). Inicialmente, a lei do primeiro a ocupar o imóvel foi substituída pela lei do mais forte, [...] pero la pacificación de las costumbres condujo a negociar el abandono de la cosa para que el interessado en adquirirla pudiera obtenerla por apropiación. El reemplazo del domine o señor debía ser hecho en forma pública, para que la noticia disuadiera a los eventuales contrincantes y éstos no pretendieran desconocer los derechos del accipiens.97 As disputas sobre a propriedade imóvel foram submetidas à autoridade dos magistrados, a fim de pacificar os conflitos e impedir que o ato de transmissão da propriedade pudesse ser impugnado pelo alienante ou por terceiros. O direito de propriedade passou a ser protegido por ações judiciais, principalmente pelas ações reivindicatórias e negatórias, já referidas e analisadas. Todavia, as formas de transmissão do direito de propriedade imóvel nas civilizações antigas, em especial, na civilização romana, como a mancipatio e, posteriormente, a in iure cessio, não proporcionavam, ainda, a segurança jurídica almejada. Enquanto a mancipatio era formalidade extrajudicial, a in iure cessio operava-se perante o magistrado, em processo fictício, com toda a publicidade que as formas processuais do período das legis actiones podiam proporcionar. Desse modo, era assegurada a publicidade dos atos, excluindo-se a ignorância de terceiros.98 Estes sistemas antigos de transmissão da propriedade foram relativamente eficientes durante algum tempo, até que outros direitos reais menos aparentes começaram a exigir do sistema um maior nível de segurança. Nas palavras de Garcia Coni99: 97 Idem, p. 13: Tradução livre do autor: “[...] porém, a pacificação dos costumes conduziu a negociar o abandono da casa para que o interessado em adquiri-la pudesse obtê-la por apropriação. A substituição do domine ou senhor devia ser feita de forma pública, para que a notícia convencesse aos eventuais rivais e estes não tivessem como desconhecer os direitos dos accipiens.” 98 BATALHA, Wilson de Souza Campos. Comentários à lei dos registros públicos. 4. ed.Rio de Janeiro: Forense, 1997, p. 5. v.1: “Portanto, os atos e os negócios jurídicos fundamentais para os cidadãos romanos eram revestidos de formalidades rigorosas, que asseguravam a sua publicidade e excluíam, nos limites restritos em que se desenvolvia a existência jurídica, a ignorância de terceiros.” 99 GARCIA CONI, Raul Rodolfo; FRONTINI, Angel A. op. cit., p. 15. Tradução livre do autor: “O problema surgiu pela primeira vez com a hipoteca, porque poderia coexistir em um mesmo intervalo de tempo, ou em um diferente, pluralidade de credores, e era natural que estes quisessem conhecer sua verdadeira localização e grau de privilégio. Era preciso proteger a esta categoria de credores não só por eles mesmos, mas para cuidar o crédito em abstrato, o qual, eventualmente, beneficiava ao devedor honesto para que conseguisse crédito em condições mais liberais.” 47 El primer problema se planteó con la hipoteca, por cuanto podían coexistir en un mismo rango, o en uno diferente, pluralidad de acreedores, y era natural que éstos quisieran conocer su verdadera colocación y grado de privilegio. Era preciso proteger a esta categoría de acreedores no sólo por ellos mismos, sino para cuidar al crédito en abstracto, lo cual, a la postre, beneficiaba al deudor honesto para que consiguiera préstamos en condiciones más liberales. Embora o direito de propriedade fosse o direito real de maior hierarquia, sua existência dependia, muitas vezes, da hipoteca, sem a qual nem todos tinham condições de adquirir a propriedade de um pedaço de terra, sem recorrer ao crédito com garantia hipotecária. Sem a hipoteca, portanto, muitas vezes, não haveria direito de propriedade. Tratava-se de um problema econômico. Diante das dificuldades existentes para aquisição da propriedade imóvel, a hipoteca, como direito real de garantia, foi o meio utilizado para a obtenção dos recursos econômicos necessários para a aquisição da propriedade imobiliária. Com a utilização da hipoteca, tornou- se necessário o controle dos credores e devedores das hipotecas e dos imóveis que estariam gravados com tal ônus. Foi de forma natural, portanto, que os processos inscritivo e publicístico dos direitos reais tiveram início através dos “ofícios de hipoteca”. O direito de propriedade interessa a toda coletividade, como forma de gerar segurança jurídica, não apenas ao proprietário, mas a todos os cidadãos e ao direito em geral. Por meio da publicidade do domínio “[...] dá-se firmeza às aquisições, o que facilita as transmissões; e a propriedade proporciona assim o máximo de utilidade ao seu dono, assegurando-lhe as vantagens econômicas, derivadas da certeza do domínio.”100 A publicidade encontra suas origens no sistema feudal existente na França, na Bélgica, na Holanda e nos países germânicos. Na França, às alienações de terras era indispensável o consentimento do senhor feudal, reconhecendo a supremacia do senhor. Esses atos estavam sujeitos ao registro público, acessível a todos. Com a Revolução Francesa, em 1789, Os legisladores dessa epoca pelos Decretos de 19 e 20 de Setembro de 1790, abolindo as fórmas feudaes para os actos relativos á propriedade immovel, substituíram-nas pela transcripção, apparecendo então pela primeira vez o termo, para designar a nova fórma de publicidade, aliás, só applicável nas províncias em que vigorava o nantissement101. Por duas leis de 9 de Messidor do anno III, 100 GARCIA, Lysippo. A transcripção. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1922, p. 29, vol. 1: “A propriedade é um direito, cujo conhecimento a todos interessa, não apenas para ser respeitada, mas em bem da ordem pública, interessada na segurança do direito geral. E para tal segurança é indispensável que todos conheçam ou possam conhecer a quem esse direito pertence.” 101 SERPA LOPES, Miguel Maria de. Tratado dos registros públicos. 5. ed. rev. e atual. pelo prof. José Serpa de Santa Maria.Brasília: Livraria e Editora Brasília Jurídica, 1995, p. 35, vol. 1: “O nantissement era composto de dois atos: o devest e o vest. No primeiro, o alienante entregava a propriedade imóvel ao juiz; no segundo, o juiz invetia o adquirente na dita propriedade. Exigia-se, porém, a apresentação de títulos, com a especificação do 48 decretadas pela Convenção Nacional, procurou-se constituir o registro de toda a propriedade immobiliaria; proibindo-se a alienação, hypotheca ou reinvidicação de immoveis, cujos proprietarios não tivessem apresentado ao registro conservador as declarações exigidas, com a menção do valôr do immovel e do titulo de acquisição; exigindo-se a inscripção para validade das hypothecas, embora o principio da especialidade não fosse attendido por haver hypothecas geraes sobre bens presentes e futuros.102 Posteriormente, estas duas leis foram suspensas por uma de 28 do Vendemiale do anno V e, finalmente revogadas pela de 11 do Brumario do anno VII, que estabeleceu a publicidade para todos os direitos reais de gozo e garantia, salvo algumas exceções para os privilégios. A transcrição só era exigida para efeitos perante terceiros, não entre as próprias partes. Com a promulgação do Código de Napoleão, foi abolida a transcrição, porém, restabelecida, mais tarde, pela lei de 23 de março de 1855. Nos países germânicos a publicidade também se originou do sistema feudal. As alienações se faziam perante a corte feudal, presidida por um juiz, que representava o senhor, através da tradição e da investidura. O processo era oral, mas, no século XII, surgiu o costume de se anotar os processos mais importantes em livros especiais, o que acabou se tornando a regra geral para os atos translativos da propriedade imóvel. Na Prússia, Frederico I, com o edito de 28 de setembro de 1693, ordenou que todos os bens da cidade de Colonia e de Berlim fossem inscritos, com seu número de ordem, no registro sucessório e cadastral, a cargo de um magistrado, sendo submetidas também à inscrição as hipotecas legais, judiciais e convencionais. Frederico Guilherme I, pela ordenança de 1722, de 19 de fevereiro de 1723, ordenou às cortes de justiça a criação de um registro territorial para inscreverem imóveis, que dependessem de sua jurisdição. Foi através de lei de 20 de dezembro de 1783, que entrou em vigor em 1° de junho de 1784, que Frederico II, por esta lei, organizou um novo modelo de livros fundiários, [...] em que cada folha era destinada a um immovel especificado, que a encabeçava, de onde devia constar tudo que affectasse a sua condição material e jurídica, sendo obrigatoria a matricula no livro do districto da situação do immovel, que não podia ser objecto de alienação, nem de direitos reaes, emquanto não fosse matriculado. Todos os actos de mutação de propriedade ou de constituição de direitos reaes, quer entre vivos, quer causa mortis, quer translativos, quer declarativos, ficavam sujeitos a registro. O Magistrado antes do registro, examinava as condições legaes para a perfeição do contracto: - si se achava revestido das formalidades exigidas, si o alienante podia dispor do immovel, assim como si o adquirente tinha capacidade para adquiril-o.103 imóvel e seus limites, com o registro do ato, precipuamente e sob pena de nulidade.” 102 GARCIA, Lysippo. op. cit., p. 31. 103 Ibidem, p. 41. 49 Todavia, a nova lei ainda não assegurava a força probante das inscrições. A inscrição não outorgava ao adquirente uma garantia contra os vícios do título do proprietário antecedente. Coube ao Código prussiano de 1794 a tarefa de deixar o adquirente a salvo de qualquer ação reivindicatória por parte do proprietário não inscrito, embora mantida a possibilidade de evicção por outros motivos. Quatro leis posteriores aperfeiçoaram o sistema, de modo que, pelo princípio da força probatória dos registros, como nas legislações de Hamburgo, Lubeck e Mecklembrugo, o adquirente se tornava proprietário pelo efeito puro e simples da inscrição, sem necessidade de um título válido e sem levar em consideração a boa ou má-fé do titular. No sistema francês, o registro é simples forma, que tem por efeito tornar o seu conteúdo apenas conhecido do público, sem força probante, a fim de conferir a preferência em favor de quem a tenha efetuado, quando em concorrência com outro adquirente, embora anterior, mas que não registrou seu contrato, ou que tenha registrado seu contrato posteriormente ao segundo adquirente. Já no sistema dos países germânicos, o registro não é apenas uma forma, é modo de aquisição do direito. O sistema alemão, também chamado de sistema publicista, se caracteriza pelo caráter absoluto do registro. Dessa forma, a presunção do registro imobiliário alemão é jure et de jure, não admitindo prova em contrário, não podendo ser contestado por terceiros. Tal presunção oferece ao proprietário a maior segurança jurídica possível, podendo este adquirir o imóvel da pessoa em cujo nome se tenha operado a transcrição, sem receio algum de futuras impugnações por parte de terceiros. O sistema registral imobiliário francês tem por característica principal o fato de o título ser decisivo para a transferência da propriedade imóvel. Basta o contrato para a transferência da propriedade imóvel, pois este possui efeito translativo. Por essa razão, é também denominado de sistema privatista, já que tem por base a consensualidade. A publicidade, nesse sistema, tem apenas o efeito informativo a terceiros, dando-lhes conhecimento das alienações de imóveis realizadas e seus respectivos ônus. A presunção de validade do registro é juris tantum, já que o registro não prova o direito do proprietário, não gerando efeitos perante terceiros. Tem por base a transferência da propriedade imóvel pelo simples contrato. O sistema eclético, adotado pelo Brasil, reúne características dos sistemas alemão e francês. Combina o título com o modo de adquirir, ou seja, substitui a tradição pela publicidade registral, que constitui o direito de propriedade e gera efeitos perante terceiros. 50 No Brasil, o Rei de Portugal, como descobridor, adquiriu, sobre o território, o título originário de posse. O descobridor, por meio de doações, através de cartas de sesmarias, começou a destacar do domínio público as terras que viriam a constituir o domínio privado.104 A Lei n° 601 de 1850, a chamada Lei de Terras, e seu Regulamento n° 1.318, de 1854, legitimaram a aquisição pela posse, retirando do domínio público as posses que fossem levadas ao livro da Paróquia Católica, o chamado registro do vigário. Os vigários das freguesias do Império realizavam o registro das posses, definindo-se a competência dos registradores pela situação do imóvel. Diante de um país essencialmente agrícola, tornava-se interessante a proteção do crédito, e, por isso, a Lei Orçamentária n° 317, de 21 de outubro de 1843, prescreveu em seu artigo 35 o seguinte: “Fica criado um Registro Geral de Hipotecas, nos lugares e pelo modo que o Governo estabelecer nos seus Regulamentos.”105 Para dar efetividade a este comando legal, o Decreto n° 482, de 14 de novembro de 1846, estabeleceu, em cada uma das comarcas do Império o Registro das Hipotecas, a cargo de um tabelião de cada cidade, ou na Corte e nas capitais das Províncias, a cargo do Tabelião das Hipotecas. Somente após o Decreto n° 482, de 1846, pode-se falar em um início de criação de um sistema registrário de imóveis. O registro das hipotecas não obteve o resultado esperado, por não possuir os requisitos de especialidade e publicidade. “Foi o registro de hipotecas a origem do atual Registro de Imóveis, pois, diante do seu escasso préstimo para o crédito, surgiu a ideia de estendê-lo à transmissão da propriedade”.106 Assim, em 1856, o Conselheiro Nabuco elaborou um projeto que, oito anos mais tarde, foi transformado na Lei n° 1.237, de 24 de setembro de 1864, a chamada Lei Hipotecária, que estabeleceu, em seu artigo 8° o seguinte: “A transmissão inter vivos, por título oneroso ou gratuito dos bens suscetíveis de hipotecas, assim como a instituição dos ônus reais, não operarão seus efeitos a respeito de terceiros, senão pela transcrição e desde a data dela.”107 E, o artigo 9° do mesmo diploma legal, dispõe: “As hipotecas legais especializadas, assim como as convencionais, somente valem contra terceiros desde a data da inscrição.”108 104 CARVALHO, Afrânio de. Registro de imóveis. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2001, p. 1: “Esse regime de sesmarias veio da descoberta até a independência do Brasil em 1822, quando se abriu um hiato na atividade legislativa sobre terras, que se prolongou até 1850, desenvolvendo-se no intervalo a progressiva ocupação do solo sem qualquer título, mediante a simples tomada da posse.” 105 VALLIM, João Rabello de Aguiar. Direito imobiliário brasileiro: doutrina e prática. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1980, p. 57. 106 CARVALHO, Afrânio de. op. cit., p. 4. 107 VALLIM, João Rabello de Aguiar. op. cit., p. 59. 108 Idem, p. 59. 51 Desse modo, fica estabelecida no Brasil a publicidade dos atos translativos da propriedade imóvel e dos atos constitutivos dos ônus reais, que principiavam a operar seus efeitos perante terceiros. A lei substituiu a tradição pela transcrição como modo de transferência do domínio, continuando o contrato, antes dela, a gerar apenas obrigações.109 No entanto, segundo o § 4° do artigo 8° da lei, a transcrição não induz prova de domínio, e, por este motivo, o autor precisava prová-lo na reivindicatória. A Lei n° 1.237, de 1864, foi substituída pelo Dec. 169-A e seu Regulamento, o Dec. n° 370, ambos de 1890, que, mantendo o nome de Registro Geral, consagraram a especialização das hipotecas legais, mas permaneceu o princípio segundo o qual o registro não induz prova do domínio. Este sistema perdurou até o advento do Código Civil de 1916. O Código Civil de 1916 incorporou o sistema do Registro Geral, mas mudou de nome para Registro de Imóveis, atraindo para ele as transmissões causa mortis e os atos judiciais. Além disso, o Código Civil de 1916 manteve a necessidade da transcrição para a transferência do domínio, acrescentando, finalmente, de conformidade com o artigo 859, que a transcrição gera uma presunção de domínio em favor do seu titular. Com isso, o titular do domínio não precisa mais prová-lo, como anteriormente. O seu adversário é que deverá provar que ele não é o titular do direito. Esta inversão do ônus probatório valoriza e reforça os efeitos da transcrição. Desse modo, à transcrição no Registro de Imóveis foi dado o caráter de prova da propriedade juris tantum, admitindo-se prova em contrário. A matéria é tratada nos artigos 856 e seguintes do Código Civil de 1916. O Código Civil de 1916 adotou os princípios básicos do sistema registral, como o da inscrição, o da prioridade, o da legalidade, o da especialidade, o da publicidade e o da presunção, deixando de adotar o da fé pública.110 Este Código tratava dos atos do registro ora pelo nome de transcrição, ora pelo nome de inscrição e ora pelo nome de averbação, distinguindo os dois primeiros do último, mas não entre si. Para o código, transcrição e inscrição são sinônimos. A transcrição abrange a constituição de direitos reais, com exceção da inscrição da hipoteca. O Dec. nº 18.542 de 1928 que regulamentou a Lei nº 4.827 de 1924 introduziu, no Registro de Imóveis, o denominado princípio da continuidade, estabelecendo a obrigatoriedade da transcrição anterior, para que se pudesse transcrever ou inscrever qualquer 109 CARVALHO, Afrânio de. op. cit., p. 4: “Ao inovar, criou o Registro Geral, de que o país tanto precisava, para recolher os títulos de transmissão de imóveis entre os vivos e os de constituição de ônus reais (art. 7°). A criação do registro permitiu pôr certa ordem em uma e outra categoria de atos, já exigindo como título de ambas a escritura pública, já impondo à segunda um limite indelével, pela enumeração taxativa dos gravames que a compõem.” 110 Idem, p. 6. 52 título. Segundo o princípio, exige-se, para qualquer transcrição ou inscrição, o registro do título anterior, formando, assim, uma cadeia de titularidades. Posteriormente, surge o Decreto-Lei nº 58/37 que, além de regular os loteamentos e seu registro, concedeu à promessa de venda imobiliária (relação de direito pessoal) a qualidade de direito real, admitindo a escritura pública como título hábil para a promessa, sendo registrada em um livro aparentado com o fólio real, exigindo a cadeia dominial dos títulos a serem loteados. O Decreto nº 4.857, de 9 de novembro de 1939, regulamentou a “execução dos serviços concernentes aos registros públicos estabelecidos pelo Código Civil” 111, tratando, no seu Título V, do Registro de Imóveis. Este Regulamento atribuiu o termo transcrição aos atos transmissivos da propriedade e o termo inscrição, aos constitutivos de ônus reais, como a hipoteca. Após, o Decreto-Lei nº 1000, de 21 de outubro de 1969, embora elaborado sigilosamente e não podendo ser corrigido oportunamente pela censura da opinião pública ou de órgãos jurídicos, foi decretado sob a forma de Lei. Entretanto, possuía tantas contradições quanto ao aspecto formal do registro, que se tornou inexequível, até ser revogado. A Lei nº 6.015, de 31 de dezembro de 1973, até hoje vigente, tomou o lugar do Decreto-Lei nº 1000, de 1969, tendo sua vigência adiada e sendo alterada pela Lei nº 6.216, de 30 de junho de 1975. A Lei n° 6.015/73 teve vigência somente a partir de 1º de janeiro de 1976 (art. 298 da Lei nº 6.015/73). Revogou a Lei nº 4.827 de 1924, os Decretos nºs 4.857 de 1939, 5.318 de 1940, 5.553 de 1940 e demais disposições em contrário (art. 299). A Lei nº 6.015/73, Lei dos Registros Públicos – LRP – criou o sistema de registros públicos no Brasil, disciplinando a matéria de forma exaustiva, englobando, conforme o seu artigo 1° os seguintes itens: o Registro Civil de Pessoas Naturais; o Registro Civil de Pessoas Jurídicas; o Registro de Títulos e Documentos; e, finalmente, o Registro de Imóveis. No que pertine ao Registro de Imóveis, a lei unificou os termos inscrição (mais aceita na doutrina) e transcrição em um terceiro: o registro, considerado mais amplo. Anteriormente à vigência da Lei dos Registros Públicos, havia muita imprecisão terminológica com relação aos atos praticados pelos Oficiais de Registro. O Código Civil de 1916 utilizava, com grande impropriedade técnica, basicamente três expressões para se referir a tais atos: “transcrição”, “inscrição” e “averbação”. Em 1924, a Lei 4.827 e o seu Regulamento Decreto 18.542, de 1928, determinou que “os atos constitutivos de direitos reais 111 VALLIM, João Rabello de Aguiar. op. cit., p. 62. 53 temporários não mais se denomina ‘transcrição’, mas apropriadamente, ‘inscrição’”112. A partir do Decreto 18.524, de 1928, as três espécies de registro poderiam ser definidas da seguinte forma: [...] transcrição é o registro dos atos translativos ou declaratórios da propriedade imóvel; inscrição é o registro dos atos constitutivos dos direitos reais temporários; averbação é o registro dos atos que alteram ou extinguem qualquer ato de registro, seja a matrícula, uma transcrição, uma inscrição ou uma própria averbação. Opera-se por meio de uma apostila ou anotação feita à margem de um registro, ou na matrícula113. Esta nova nomenclatura dos atos do Registro facilitou o seu entendimento, de forma que os atos que transmitem ou declaram a propriedade imóvel, tais como, no primeiro caso, a escritura de compra e venda, de doação, entre outros, e, no segundo caso, uma sentença declaratória da aquisição da propriedade imóvel por usucapião, passaram a ser tratados como atos de transcrição; os atos constitutivos de direitos reais temporários, tais como o usufruto, a hipoteca e todos os atos que constituem um ônus sobre o imóvel, passaram a ser tratados como atos de inscrição; e, por fim, os atos que alteram ou extinguem qualquer ato, como o cancelamento da transcrição da hipoteca por ter havido a quitação da dívida ou para fazer constar da margem da transcrição que a área “x” do imóvel foi transferida para outra transcrição, devido a um desmembramento ocorrido no imóvel, entre outros atos, passaram a ser tratados como atos de averbação. Todavia, após a vigência da Lei 6.015/73, houve a mudança definitiva na nomenclatura dos atos do registro, consoante o artigo 168, que assim dispõe: “Art. 168. Na designação genérica de registro, consideram-se englobadas a inscrição e a transcrição a que se referem as leis civis.” 114 Atualmente, portanto, o termo “registro” em sentido lato, engloba dois atos: o registro em sentido estrito e a averbação. A nomenclatura “registro”, em sentido estrito, é utilizada para os atos constitutivos, translativos ou declaratórios de direitos reais sobre imóveis, e a nomenclatura “averbação”, para os atos secundários, dependentes de um registro já efetuado, que será modificado ou extinto pela averbação. 112 Idem, p. 83. 113 Ibidem, p. 83. 114 MELO JÚNIOR, Regnoberto Marques de. Lei de registros públicos comentada. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2003, p. 430: “O artigo 168 da LRP nasceu do §2° do art. 168 do primeiro texto da LRP (de 1973). Neste, o inciso I arrolava os fatos jurídicos sujeitos à “inscrição”; o inciso II listava os sujeitos à “transcrição”; e o item III, as “averbações”. O ordenamento jurídico do Registro Público nunca primou pelo rigor terminológico. Da leitura desse ordenamento, depreendia-se que a “transcrição” era o lançamento usado para transferência do domínio de imóvel ou direito real. E “inscrição” era uma espécie de averbação, comumente aplicada às garantias reais. Mas, não havia qualquer critério para distinção ou aplicação dos termos. Com a Lei n° 6.216, de 1975, o então §2° do art. 168 da LRP passou ao artigo autônomo que hoje conhecemos, e que se mantém sem alteração até hoje.” 54 A averbação, pelo sistema anterior à Lei dos Registros Públicos, era realizada à margem do registro, demonstrando, assim, mais claramente, que a averbação é dependente da existência prévia de um ato de registro, que será objeto de modificação ou extinção. Todavia, a grande contribuição da Lei n° 6.015/73 – LRP – foi a centralização dos registros em uma matrícula, pelo sistema denominado de fólio real, substituindo, assim, a transcrição nos livros antigos, evitando diversos problemas que resultavam do sistema antigo. Pelo sistema das transcrições das transmissões, os atos (registros, inscrições ou averbações) eram lançados de forma manuscrita, no antigo Livro 3. Com o novo sistema de matrículas, no Livro 2 – RG (Registro Geral), os livros manuscritos foram substituídos por fichas e os atos passaram a ser lançados de forma mecanizada; inicialmente eram datilografados e, mais tarde, digitados e até mesmo digitalizados. O antigo sistema das transcrições das transmissões, no Livro 3, era problemático no sentido de, muitas vezes, não se encontrar todas as transcrições relativas a um imóvel no mesmo livro de transcrição das transmissões. O antigo Livro 3 era utilizado de forma corrida, lançando-se, por exemplo, o registro de uma compra e venda de um imóvel na página do livro que se encontrava em uso no serviço registral, no dia do registro. Para se encontrar os registros anteriores, o oficial devia averbar, à margem do registro efetuado, o número, livro e folhas do registro anterior, a fim de formar uma cadeia de continuidade de registros. Nesse sentido, o sistema de matrículas adotado pela Lei dos Registros Públicos, a partir de 1° de janeiro de 1976, facilitou enormemente a verificação da situação jurídica dos imóveis registrados. Por este sistema, cada imóvel recebe um número de matrícula e, na mesma ficha de matrícula, são lançados os atos pertinentes ao imóvel nela matriculado. A matrícula, de numeração única, contém, em suas fichas sucessivas, todos os atos jurídicos relativos a um determinado imóvel, de forma a simplificar o acesso a tais informações. Esta foi a grande inovação trazida pela Lei dos Registros Públicos, gerando maior segurança jurídica nos negócios imobiliários, devido a maior transparência dos atos atinentes a um determinado imóvel. A Lei dos Registros Públicos elenca, no seu artigo 167, no inciso I, o rol dos atos que poderão ser registrados e, no inciso II, o rol dos atos que poderão ser averbados no registro de imóveis. A doutrina diverge acerca da taxatividade do rol dos atos elencados nos incisos do artigo 167, referido. Serpa Lopes defende a taxatividade, o numerus clausus, do rol do artigo 167, da Lei 6.015/73 (correspondente ao artigo 178 do Decreto n° 4.857, de 1939, a antiga Lei 55 dos Registros Públicos)115, por associar a existência de direito real à previa previsão legal. Melo Júnior, entende ser meramente exemplificativo o referido rol de atos do artigo 167, da Lei dos Registros Públicos, por entender que o dispositivo legal deve ser lido e aplicado finalisticamente pelo registrador116. A Constituição Federal de 1988 reconhece a importância das atividades notariais e registrais ao dedicar a elas, nas suas disposições constitucionais gerais, um artigo com três parágrafos, regulamentando a sua natureza jurídica, a forma de investidura nas atividades, e determinando que a lei infraconstitucional regule as atividades, a responsabilidade civil dos notários, oficiais de registro e seus prepostos e normas gerais para a fixação de emolumentos pelos atos praticados pelos notários e registradores. De acordo com o artigo 236 da Constituição Federal, os serviços notariais e de registro são exercidos em caráter privado, por delegação do Poder Público. O Estado pode prestar serviços públicos por meio de concessionárias, permissionárias ou autorizatárias, havendo, assim, delegação do serviço, de forma que o Estado continua sendo titular do mesmo, porém, o seu exercício é transferido, por delegação, para pessoas estranhas ao Estado, até mesmo a particulares. É o caso dos serviços notariais e registrais, que são serviços exercidos em nome do Estado, por particulares, através de delegação. Mello117 classifica as atividades notariais e de registro como serviço público exercido por particulares em colaboração com a Administração e, ainda, na subclassificação de delegados de função ou ofício público. É no §1°, do artigo 236 que a Constituição Federal prevê a necessidade de lei que regule as atividades notarias e de registro no âmbito federal, a fim de disciplinar a responsabilidade civil e criminal dos notários, oficiais de registro e seus prepostos e definir a 115 SERPA LOPES, Miguel Maria de. op. cit., v. 2, p. 191: “O Registro de Imóveis compreende simplesmente os atos jurídicos referidos nas leis que com o mesmo se relacionam, ou é suscetível de elastérios. Em outras palavras: as disposições constantes do art. 856 do Código Civil e as do art. 178, são taxativas.” 116 MELO JÚNIOR, Regnoberto José Marques de. op. cit., p. 323: “As hipóteses fáticas sujeitas ao ônus de inscrição no SRI não se limitam ao princípio da estrita legalidade, numa afunilação da guarida no registro imobiliário apenas a atos e fatos jurídicos expressamente previstos na lei. A uma, os atos inscritíveis no SRI não se esgotam na LRP. Derivam de todo o ordenamento jurídico. A duas, a disposição esmiuçada e casuística dos dispositivos do art. 167 da LRP não autorizam interpretação restritiva, como insinua à primeira vista. Antes, amplia o respectivo espectro inscricional, em decorrência do entrelaçamento de seus enunciados, que albergaram normas abertas, com outros fora do sistema da LRP, e providos de todo o Direito Positivo. A três, do ponto de vista hermenêutico, a angustura redacional da LRP, quanto aos atos assentados no SRI, não consulta à sua finalidade, de firmar segurança e publicidade aos atos jurídicos. Deve, portanto, ser lida e aplicada finalisticamente pelo operador registral.” 117 MELLO, Celso Antonio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 26. ed. rev. e atual. até a Emenda Constitucional 57, de 18.12.2008. São Paulo: Malheiros, 2009, p. 250: “d) Concessionários e permissionários de serviços públicos, bem como os delegados de função ou ofício público, quais os titulares de serventias da Justiça não oficializadas, como é o caso dos notários, ex vi do art. 236 da Constituição, e bem assim outros sujeitos que praticam, com o reconhecimento do Poder Público, certos atos dotados de força jurídica oficial, como ocorre com os diretores de Faculdades particulares reconhecidas.” 56 fiscalização de seus atos pelo Poder Judiciário. A lei que atendeu ao comando constitucional e regulamentou as atividades notariais e registrais em nível federal foi a Lei n° 8.935/94. De acordo com o artigo 1º da Lei nº 8.935/94, os “Serviços notariais e de registro são os de organização técnica e administrativa destinados a garantir a publicidade, autenticidade, segurança e eficácia dos atos jurídicos.” A primeira observação que se faz ao texto da lei é no sentido da nomenclatura dada à atividade exercida pelos notários e registradores. A expressão “cartório”, muito utilizada popularmente, não condiz com a realidade após a vigência da lei. A fim de escapar do sentido pejorativo da palavra, a lei denominou as atividades como “serviços notariais e de registro”, todavia, não há como fugir do uso clássico, sendo que a maioria da população continua a se referir às atividades notariais e registrais através da expressão “cartório”. A função dos serviços notariais e registrais está expressa no mesmo dispositivo, porém, as expressões utilizadas pela lei para defini-la poderiam ser resumidas na expressão “segurança jurídica”. Um serviço que tem como função garantir a publicidade, autenticidade, segurança e eficácia dos atos jurídicos, claramente está buscando garantir a segurança jurídica necessária nos atos e negócios jurídicos que lhe são apresentados. Note-se que a lei fala em “atos jurídicos”, ou seja, aqueles provenientes da vontade humana. No Registro de Imóveis não se registram os fatos jurídicos stricto sensu e os atos- fatos jurídicos. Enquanto o fato é natural, o ato é proveniente da vontade humana e, por este motivo, a posse, quer como ato (documento que demonstra o direito da tomada da posse), quer como fato, não pode ser registrada no Registro de Imóveis. Todavia, há fatos juridicamente relevantes que podem ser registrados em registros públicos, como o nascimento, o óbito, entre outros, no Registro Civil das Pessoas Naturais. É função tanto do notário, quanto do registrador garantir a segurança jurídica dos referidos atos, devendo haver a consonância destes com o ordenamento jurídico pátrio. Sendo assim, há necessidade de que notários e registradores sejam considerados pela lei como profissionais do direito, exigindo-se concurso público de provas e títulos para o ingresso na atividade, conforme artigo 236, §3º da Constituição Federal e §2º da Lei nº 8.935/94, que define notários e registradores como profissionais do direito, dotados de fé pública, a quem é delegado o exercício da atividade notarial e de registro. Após a aprovação em concurso público e a nomeação pelo Presidente do Tribunal de Justiça do Estado, os notários e registradores gozam de independência relativa no exercício de 57 suas atribuições, pois passam a estar sujeitos à fiscalização do Poder Judiciário, através da Corregedoria Geral de Justiça118. Conforme já referido, a atividade notarial tem como função principal redigir, formalizar e autenticar, com fé pública, atos jurídicos extrajudiciais, conforme a vontade das partes interessadas. Na maioria das vezes, os atos praticados pelos tabeliães, consubstanciados em um instrumento público, visam gerar eficácia erga omnes através de seu registro, no serviço registral competente. A escritura pública, objeto do ato notarial, não possui o efeito de publicidade erga omnes, até que se realize o registro da mesma. Daí se conclui a função dos serviços registrais. Os registros públicos têm como função principal a publicidade119 dos atos jurídicos, a fim de que estes possam irradiar eficácia jurídica erga omnes, autorizando a oponibilidade a terceiros dos direitos constantes do registro público. Os serviços registrais, através da publicidade que lhes é inerente, garantem a segurança, a eficácia e a autenticidade dos atos da vida civil. A publicidade registral, portanto, está na raiz da segurança jurídica. É através da publicidade que se oferece segurança jurídica dos atos constantes dos registros públicos. Nas palavras de Pontes de Miranda120: O registro nada tem a ver com a posse, nem com a tradição. Serve, como um dos expedientes, ao princípio da publicidade, que é relevante em direito das coisas. O que se quer, com o registro, é que ele traduza, nos papéis ou livros do cartório, a verdade sobre as relações jurídicas, lá fora. A segurança jurídica também está presente na consonância daquilo que consta do registro com a realidade fática do imóvel. A matrícula deve ser o espelho jurídico do imóvel, contendo todos os atos jurídicos a ele pertinentes. Qualquer negócio jurídico realizado que porventura vier a influenciar na disponibilidade ou alterar as características de um imóvel deverá constar da matrícula para gerar efeitos perante terceiros. O que se espera do registro é que seus livros e papéis traduzam a verdade sobre as relações jurídicas realizadas na sociedade. 118 CENEVIVA, Walter. Lei dos notários e registradores comentada (Lei n. 8.935/94). 6. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 21: “O vocábulo serviço caracteriza, no título de abertura da Lei n. 8.935/94, o trabalho técnico desenvolvido sob as ordens de um delegado do Poder Público, para exclusivo cumprimento de funções ali indicadas, delegado esse atuando com independência, mas sujeito à fiscalização do Poder Judiciário.” 119 Ibidem, p. 26: “Publicar, enquanto serviço público, é ação de lançar, para fins de divulgação geral, ato ou fato juridicamente relevante em livro ou papel oficial, indicando o agente que neles interfira (ou os agentes que interfiram), com referência ao direito ou ao bem de vida mencionado.” 120 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti de. Tratado de direito privado. Campinas: Bookseller, 2000, tomo 11. 58 A autenticidade dos atos é um dos requisitos exigidos pelo registrador para dar curso ao registro. Dessa forma, somente ingressarão no Registro de Imóveis documentos que possam ser reputados como autênticos, por terem sido confirmados por ato de autoridade121. O Registro de Imóveis somente aceitará documentos com fé pública judicial, notarial ou administrativa, que preencham as formalidades estabelecidas na lei122. O Registro de Imóveis surgiu através da Lei das Hipotecas de 1864, para atender às necessidades do mercado financeiro com a finalidade de conferir publicidade às hipotecas. A tradição já não se mostrava suficiente para dar publicidade às transmissões de direitos reais. Na busca de segurança jurídica, na época, o registro das hipotecas já não tinha outro efeito senão a publicidade. Pouco tempo depois, de simples instrumento de publicidade passou a atuar no papel principal, gerando eficácia constitutiva de direitos reais e condicionando a transmissão da propriedade dos bens imóveis ao registro. O Registro de Imóveis, portanto, segundo Pontes de Miranda123, “é o ofício público, em que se dá publicidade a atos de transmissão dos bens imóveis e aos direitos reais sobre imóveis ou a negócios jurídicos que a eles interessem.” É através da publicidade dos atos jurídicos no Registro de Imóveis que se alcança a eficácia erga omnes, propiciando segurança jurídica, não apenas ao proprietário, que terá seu direito garantido, mas a toda a sociedade. Porém, no Brasil, o Registro de Imóveis não possui apenas a eficácia de gerar efeitos dos atos registrados contra terceiros. Há registros que são necessários para se constituir direitos reais. A constituição de um direito real somente ocorre com o registro, como nos casos do usufruto, da hipoteca convencional ou das servidões. O registro realizado no serviço de Registro de Imóveis pode ter eficácias diversas, podendo ser constitutivo, ao criar um direito e gerar a ficção de conhecimento perante terceiros (como no caso de registro de escritura pública de compra e venda ou no caso do registro de uma hipoteca); ou, declarativo, ao declarar um direito pré-existente (como na aquisição da propriedade por usucapião ou pelo direito hereditário)124. 121 CENEVIVA, op. cit., p. 28: “Autenticidade é qualidade do que é confirmado por ato de autoridade, de coisa, documento ou declaração verdadeiros.” 122 GARCIA CONI; FRONTINI, op. cit., p. 147: “Nuestros registros de la propiedad inmueble sólo aceptan documentos con fe pública judicial, notarial o administrativa que tengan las formalidades establecidas por las leyes.” Tradução livre do autor: “Nossos registros da propriedade imóvel somente aceitarão documentos com fé pública judicial, notarial ou administrativa que tenham as formalidades estabelecidas pelas leis.” 123 PONTES DE MIRANDA, op. cit., p. 249. tomo 11. 124 Na aquisição do direito de propriedade por usucapião, a própria posse do imóvel pelo tempo e condições exigidos pela lei, por si só, é capaz de consolidar a propriedade àquele que cumpriu as condições legais, sendo a sentença declaratória de usucapião o título hábil ao registro da propriedade em nome do adquirente. O registro da sentença de usucapião na matrícula do registro de imóveis terá o efeito declaratório da aquisição da propriedade, com a finalidade de gerar efeitos erga omnes e a disponibilidade dos bens adquiridos. Da mesma forma, o fato “morte”, pelo princípio da saisine, transfere, desde logo, uma universalidade de bens aos herdeiros do “de cujus”, tornando-se o registro da partilha imprescindível para identificar os bens que compõe o monte-mor, 59 A eficácia do registro, no Brasil, é relativa (juris tantum), por admitir prova em contrário. Dessa forma, também o é a segurança jurídica por ele gerada. Por este motivo, diz- se que o registro gera efeitos até que seja cancelado, nas hipóteses previstas em lei. Embora o registro possua eficácia relativa, sua finalidade precípua é gerar publicidade e segurança jurídica. declarando a aquisição da propriedade pelos herdeiros, bem como para dotar os bens da herança de disponibilidade e de eficácia erga omnes. 60 3 PROTEÇÃO AMBIENTAL E PROPRIEDADE É de fundamental importância o estudo da natureza jurídica do bem ambiental. O artigo 225, da Constituição Federal de 1988, ao referir que o meio ambiente ecologicamente equilibrado é bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida se refere a uma espécie de bem que, na realidade, não é bem exclusivamente público, nem ao menos um bem exclusivamente privado. Após a vigência do Código de Defesa do Consumidor, o bem ambiental passa a se caracterizar como um bem público, no entanto, com a natureza jurídica de um bem difuso, pertencente à coletividade. Nesse sentido, o meio ambiente não poderia integrar o patrimônio do Estado, que apenas pode administrá-lo, no sentido de preservá-lo para as presentes e futuras gerações. Nesta senda, importa a compreensão atual do instituto da propriedade que, embora de modo geral atribua a propriedade de um bem a um particular, numa relação de direito privado, sofre interferências de direito público, mormente no que diz respeito às restrições ambientais e ao cumprimento da função social da propriedade. O direito de propriedade, atualmente, deve ser exercido em consonância com as normas ambientais, evitando-se a degradação do meio ambiente, a fim de garantir sua defesa e proteção, sob pena de se descumprir o comando do artigo 5°, XXIII, da Constituição Federal, que obriga o atendimento à função social da propriedade. A propriedade que se encontra em desconformidade com as normas de direito público relativas ao meio ambiente sofrerá a fiscalização do Poder Público, podendo haver a aplicação de multas ambientais ao seu proprietário ou, até mesmo, sanções administrativas previstas no Estatuto da Cidade, como o IPTU progressivo no tempo. O proprietário de terreno que pretender utilizá-lo para a instalação de atividade potencialmente causadora de significativa degradação do meio ambiente, segundo o inciso IV do §1°, do artigo 225 da Constituição Federal, deverá atender à exigência do Poder Público de realização de Estudo Prévio de Impacto Ambiental, a que se dará publicidade. O atendimento a este comando constitucional proporcionará a proteção ao meio ambiente, atendendo o proprietário do imóvel a função social da propriedade. A publicidade relativa ao Estudo de Impacto Ambiental realizado sobre o imóvel onde se instalaria a atividade potencialmente causadora de dano ao meio ambiente poderia ser muito bem atendida através da publicidade inerente ao serviço do Registro de Imóveis. 61 3.1 A natureza do bem ambiental O direito, compreendido de forma genérica, até mesmo por motivos didáticos, sofre divisões e classificações de seus institutos em ramos de natureza e categorias diversas. Uma das principais divisões do direito, de forma geral, é a classificação que o divide em dois ramos principais: de um lado o público e, de outro, o privado. Há institutos de direito que dizem respeito à vida particular do cidadão e institutos que interessam a todos ou a um conjunto delimitado de cidadãos. De conformidade com a natureza do instituto podemos classificá-lo, ao menos de forma genérica, em direito público ou direito privado. A divisão do direito em público e privado representa a grande dicotomia do direito, a dicotomia público/privado, caracterizada pela divisão de um universo em duas esferas, de forma que um ente compreendido na primeira não pode ser contemporaneamente compreendido na segunda, estabelecendo uma divisão total e principal, no sentido de fazer com que todos os entes nela tenham lugar, tornando outras dicotomias secundárias.125 A origem da dicotomia público/privado remonta ao Direito Romano, com base em Ulpiano: “Publicum jus est quod ad statum rei romanae spectat, privatum, quod ad singulorum utilitatem.”126 O surgimento da cidade-Estado trouxe para o homem uma segunda vida, a vida política, a partir da qual percebe-se uma nítida diferença entre aquilo que lhe é próprio e aquilo que é comum.127 Na esfera privada de sua vida, onde reinava a necessidade, o homem buscava atender sua condição animal de alimentação e procriação. A necessidade obriga o homem a exercer uma atividade para sobreviver. Surge o labor como forma de produção de bens de consumo (alimentos) para a sobrevivência do homem. O lugar do labor 125 BOBBIO, Norberto. Estado, governo, sociedade: para uma teoria geral da política. 10. ed. Tradução de Marco Aurélio Nogueira. São Paulo: Paz e Terra, 2003, p. 13: “Podemos falar corretamente de uma grande dicotomia quando nos encontramos diante de uma distinção da qual se pode demonstrar a capacidade: a) de dividir um universo em duas esferas, conjuntamente exaustivas, no sentido de que todos os entes daquele universo nelas tenham lugar, sem nenhuma exclusão, e reciprocamente exaustivas, no sentido de que um ente compreendido na primeira não pode ser contemporaneamente compreendido na segunda; b) de estabelecer uma divisão que é ao mesmo tempo total, enquanto todos os entes aos quais atualmente e potencialmente a disciplina se refere devem nela ter lugar, e principal, enquanto tende a fazer convergir em sua direção outras dicotomias que se tornam, em relação a ela, secundárias.” 126 FERRAZ Jr., Tercio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. 6. ed. São Paulo: Atlas, 2008, p. 105. Tradução livre do autor: “Direito público diz respeito ao estado da coisa romana, o privado à utilidade dos particulares.” 127 ARENDT, Hannah. A condição humana. 11. ed. Tradução de Roberto Raposo. Revisão técnica e apresentação de Adriano Correia. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010, p. 29: “O surgimento da cidade-Estado significou que o homem recebera, “além de sua vida privada, uma espécie de segunda vida, o seu bios politikos. Agora cada cidadão pertence a duas ordens de existência; e há uma nítida diferença em sua vida entre aquilo que lhe é próprio (idion) e o que é comum (koinon)”. 62 era a casa, sede da família, onde havia uma relação de comando e obediência entre o pater famílias e sua mulher, filhos e escravos. Ao ingressar no domínio público, a sociedade passou a ser uma organização de proprietários, exigindo dele proteção para o acúmulo de mais riquezas. O governo pertencia aos reis e a propriedade aos súditos, e era dever do rei governar no interesse da propriedade de seus súditos. Somente quando a riqueza se transformou em capital, com a função de gerar mais capital, é que a propriedade privada igualou a permanência inerente ao mundo partilhado em comum. A riqueza comum permaneceu estritamente privada. Assim, a contradição entre o privado e o público, típica dos estágios iniciais da era moderna, trouxe a extinção da diferença entre os domínios privado e público, através da submersão de ambos na esfera do social.128 A dissolução desse domínio no social pode ser observada na transformação da propriedade imóvel em propriedade móvel, perdendo o sentido a distinção entre propriedade e riqueza, porque toda coisa fungível perde seu valor de uso privado e adquire um valor estritamente social determinado por sua permutabilidade por meio de uma conexão com o denominador comum do dinheiro. A partir daí, a propriedade tinha no próprio homem e na sua força de trabalho, a sua origem.129 Cada homem tem uma propriedade particular em sua própria pessoa, o trabalho de seus braços é de sua propriedade exclusiva. Embora Deus tenha dado a todos os homens a terra e todos os seus frutos, seja o que for que o homem retire da natureza no estado em que recebeu, ao aplicar-lhe seu trabalho, agrega-lhe um valor que o retira do direito comum dos outros homens. O trabalho que lhe foi agregado é propriedade exclusiva do trabalhador, excluindo-se os demais.130 128 Ibidem, p. 84-85: “A riqueza comum, portanto, jamais pode tornar-se comum no sentido que atribuímos a um mundo comum; permaneceu – ou, antes, destinava-se a permanecer – estritamente privada. Comum era somente o governo, nomeado para proteger uns dos outros proprietários privados na luta competitiva por mais riqueza. A contradição óbvia desse moderno conceito de governo, em que a única coisa que as pessoas têm em comum são os seus interesses privados, já não deve nos incomodar como ainda incomodava Marx, pois sabemos que a contradição entre o privado e o público, típica dos estágios iniciais da era moderna, foi um fenômeno temporário que trouxe a completa extinção da diferença entre os domínios privado e público, a submersão de ambos na esfera do social.” 129 Ibidem, p. 85-86. 130 LOCKE, John. Segundo tratado sobre o governo. Tradução de Alex Marins. São Paulo: Martin Claret, 2009, p. 30: “Embora a terra e todos os seus frutos sejam propriedade comum a todos os homens, cada homem tem uma propriedade particular em sua própria pessoa; a esta ninguém tem qualquer direito senão ele mesmo. O trabalho de seus braços e a obra das suas mãos, pode-se afirmar, são propriamente dele. Seja o que for que ele retire da natureza no estado em que lho forneceu e no qual o deixou, mistura-se e superpõe-se ao próprio trabalho, acrescentando-lhe algo que pertence ao homem e, por isso mesmo, tornando-o propriedade dele. Retirando-o do estado comum em que a natureza o colocou, agregou-lhe com seu trabalho um valor que o exclui do direito comum de outros homens. Uma vez que esse trabalho é propriedade exclusiva do trabalhador, nenhum outro homem tem direito ao que foi agregado, pelo menos quando houver bastante e também boa qualidade em comum para os demais.” 63 É pela tomada de parte daquilo que é comum, alterando o estado original da natureza que dá início à propriedade. O trabalho de um homem é de sua propriedade. Ao aplicá-lo sobre algo retirado do estado comum em que se encontrava, transformando-o pelo seu trabalho, fixa-se a propriedade sobre ele. Nesta senda, “A extensão de terra que um homem lavra, planta, melhora, cultiva e de cujos produtos desfruta, constitui a sua propriedade. Pelo trabalho, digamos, destaca-a do que é comum.”131 Ao dar o mundo a todos os homens, Deus ordenou-lhes que trabalhassem. As necessidades obrigavam ao trabalho. Assim, a ordem de Deus para dominar concedeu autoridade para a apropriação; e a condição da vida humana, que exige trabalho e material com que trabalhar, necessariamente introduziu a propriedade privada. No início, o homem se contentava com aquilo que a natureza lhe proporcionava. Com o passar do tempo, o aumento da população e da riqueza trouxe novas necessidades, como a fixação de limites de territórios entre as diversas comunidades. As leis passaram a regulamentar a propriedade dos indivíduos dentro da sociedade, estabelecendo entre si a propriedade, em parcelas distintas de terras. A propriedade, para Locke, portanto, tem origem no trabalho, na condição da vida humana, que exige trabalho e material para trabalhar, nas necessidades humanas que somente são supridas através do trabalho. A partir do trabalho, o homem passa a ter propriedade privada, retirando do domínio público o que, através do trabalho, é transformado para satisfazer suas necessidades, tornando-se sua propriedade. Seja qual for a origem da dicotomia público/privado, esta é capaz de refletir a situação de um grupo social no qual já houve a divisão entre aquilo que pertence ao grupo, à coletividade, e aquilo que pertence aos membros singulares. A grande dicotomia público/privado tende, portanto, a abarcar em seu bojo, a totalidade dos direitos do cidadão, classificando-os conforme sua natureza e seus efeitos em direitos públicos e privados. No período medieval, o Estado foi se enfraquecendo diante do surgimento de novos focos de poder. Os feudos significaram a divisão do poder com a nobreza; as grandes corporações, que agrupavam comerciantes, mestres, artesãos e aprendizes, produziram confrontos entre o capital e o trabalho; a Igreja utilizava a Santa Inquisição como instrumento de poder político mediante a intimidação geral.132 131 Ibidem, p. 32. 132 MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Interesses difusos: conceito e legitimação para agir. 6. ed. São Paulo: RT, 2004, p. 37: “Sucede que, ao longo do período medieval, o Estado foi se enfraquecendo: por um lado, em virtude das guerras constantes e onerosas; por outro, em face do surgimento de novos focos de poder, chamados por Montesquieu os “corpos intermediários”. Estes manifestaram-se em diversas ordens: os feudos significaram para o soberano a necessidade de dividir o poder com a nobreza sempre numerosa e ávida de participar do centro de decisão; as grandes corporações, a seu turno, agrupavam comerciantes, artesãos, mestres e aprendizes, dando início, assim, às futuras confrontações entre o capital e o trabalho; a Igreja, por fim, revelou seu enorme poder 64 Na Idade Moderna esse quadro se modificou. A Igreja retornou às suas atividades de ordem espiritual; o feudalismo desapareceu; as grandes corporações desapareceram tragadas pelas revoluções comercial e industrial, substituídas pelos conglomerados econômicos e empresas multinacionais. Dessa evolução restou o corporativismo, através do anseio dos indivíduos de participar do processo político-econômico, acompanhado da consciência do coletivo, isto é, da percepção de que o indivíduo isolado nada pode, mas a reunião de indivíduos de mesma condição e mesmas pretensões possui força junto aos centros de decisão. Surge uma nova era coletiva como um terceiro gênero entre o indivíduo e o Estado, que passa a ser combatida pela Lei “Le Chapelier”, na França de 1791, que pretendia proibir a formação de grupos de mais de 20 pessoas. Todavia, o homem, por sua natureza, tende a associar-se, a formar grupos. Em 1884, emerge a liberdade sindical e, após, a lei de julho de 1901 proclama a liberdade de associação. A ordem coletiva triunfava. Desde o início do século até nossos dias, assiste-se ao crescimento do processo corporativo: sindicatos, associações, conglomerados financeiros, partidos políticos, entre outros.133 Todavia, a realidade é muito complexa, de modo que o público e o privado encontram-se constantemente em interação, tornado inútil tentar separá-los em compartimentos estanques. A própria divisão do direito positivo em público e privado é feita em termos de predominância. Assim, o Direito Penal integra o direito público, porque a maioria de suas normas é de natureza cogente, mas compreende também normas de natureza privada, como nos crimes contra a honra; o Direito Civil integra o direito privado, por causa da predominância de normas de natureza privada, mas compreende também normas de natureza pública, como as relativas ao Direito de Família e Sucessões. Este fenômeno fica mais evidente ainda ao se tratar de normas de Direito Ambiental. As normas ambientais interessam não apenas aos particulares, considerados individualmente, mas também à coletividade e ao poder público, principalmente após as transformações ocorridas nas últimas décadas, em relação à proteção e à preservação ambiental. Em nível mundial, a preocupação com o meio ambiente e a qualidade de vida iniciou a partir da Declaração do Meio Ambiente, adotada pela Conferência das Nações Unidas, em Estocolmo, em junho de 1972. A Conferência de Estocolmo produziu o despertar ecológico internacional, com o escopo de conscientizar os Estados de que a crise ambiental é global e temporal, com os Papas rivalizando com os soberanos e, por outro lado, manobrando habilmente a Santa Inquisição como instrumento de poder político mediante processo de intimidação geral.” 133 Ibidem, p. 39. 65 grave, a fim de propor políticas de gerenciamento do ambiente, como o desenvolvimento sustentável.134 De acordo com o princípio 1 da Declaração do Meio Ambiente da Conferência das Nações Unidas de Estocolmo, em 1972, “O homem tem o direito fundamental à liberdade, à igualdade e ao desfrute de condições de vida adequada em um meio, cuja qualidade lhe permita levar uma vida digna e gozar de bem-estar, e tem a solene obrigação de proteger e melhorar esse meio para as gerações presentes e futuras”135. Este princípio inspira a Constituição Federal Brasileira, de 1988, que rompe com a tradicional dicotomia público/privado, ao elevar o meio ambiente de qualidade ao nível de direito fundamental do ser humano, dedicando um capítulo inteiro ao meio ambiente, a partir da redação do seu artigo 225: Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações. A Constituição Federal de 1988, através do artigo supra, reconhece o direito do ser humano a um bem jurídico fundamental: o meio ambiente ecologicamente equilibrado e a sadia qualidade de vida. Além disso, trouxe diversas inovações ao ordenamento jurídico brasileiro, iniciando pela afirmação do catálogo de direitos fundamentais no seu Título II, substituindo a expressão “direitos e garantias individuais” pela expressão “direitos e garantias fundamentais”, que se ajusta à evolução recente no âmbito do direito constitucional e engloba, não apenas os direitos e garantias individuais, mas também os direitos sociais. Além disso, trouxe a aplicabilidade imediata aos direitos fundamentais catalogados ao longo da Constituição Federal, de 1988, ou seja, retirou-lhes o cunho de normas meramente programáticas e lhes deu maior efetividade, conforme se depreende de seu artigo 5°, §1°. Outra característica importante e inovadora trazida pela Constituição Federal de 1988 foi a possibilidade de existência de direitos fundamentais fora do catálogo do seu Título II, não excluindo outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados ou dos tratados 134 DILL, Michele Amaral. A educação ambiental crítica: a formação da consciência ecológica. Porto Alegre: Nuria Fabris, 2008, p. 45. 135 LEITE, José Rubens Morato; AYALA, Patryck de Araújo. Dano ambiental: do individual ao coletivo extrapatrimonial. Teoria e prática. 3. ed. São Paulo: RT, 2010, p. 86: “Podemos salientar que o patamar inicial desta transformação jurídica, relacionada com o meio ambiente e a qualidade de vida, surgiu, como interesse internacional e como preocupação de cada Estado, a partir da Declaração do Meio Ambiente, adotada pela Conferência das Nações Unidas, em Estocolmo, em junho de 1972. A evidência desta transformação pode ser demonstrada pelo Princípio 1 da referida Declaração, que elevou o meio ambiente de qualidade ao nível de direito fundamental do ser humano.” 66 internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte, conforme se verifica em seu artigo 5°, §2°. Desse modo, os direitos e garantias fundamentais não se resumem apenas aos catalogados no Título II da Constituição Federal, mas podem estar presentes em outros artigos da própria Constituição, ou até mesmo fora dela. Nas palavras de Benjamin136, “Formalmente, direitos fundamentais são aqueles que, reconhecidos na Constituição ou em tratados internacionais, atribuem ao indivíduo ou a grupos de indivíduos uma garantia subjetiva ou pessoal.” O meio ambiente ecologicamente equilibrado e essencial à sadia qualidade de vida é uma garantia a todo cidadão brasileiro, que possui o direito subjetivo para exigi-lo. Cada cidadão e, ao mesmo tempo, a coletividade, são os destinatários dessa garantia. A amplitude do catálogo dos direitos fundamentais permite a inclusão do já citado artigo 225 da Constituição Federal no rol dos direitos e garantias fundamentais do cidadão, como um direito fundamental de terceira dimensão137. O direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado é simultaneamente um direito social e individual, de modo que a fruição do meio ambiente ecologicamente equilibrado significa a fruição de um bem de uso comum do povo, por todos ou individualmente. No entanto, não é possível a apropriação individual de parcelas do meio ambiente para consumo privado138. Por se tratar o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado de direito fundamental, de aplicação imediata, inserta em norma constitucional não programática e, portanto, exigível e exercitável em face do próprio Estado, que também possui a missão de sua defesa e proteção, pode ser reconhecida a sua natureza de direito público subjetivo.139 O meio ambiente ecologicamente equilibrado é um patrimônio coletivo atribuído a todos. O povo detém a titularidade do bem ambiental, de forma difusa140. 136 BENJAMIN, Antônio Herman. Direito constitucional ambiental brasileiro. In: CANOTILHO, José Joaquim Gomes; LEITE, José Rubens Morato (org.). Direito constitucional ambiental brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 96. 137 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 6. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006, p. 80: “Certo é que o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado (art. 225 da CF) pode ser enquadrado nesta categoria (direito de terceira dimensão), em que pese sua localização no texto, fora do título dos direitos fundamentais.” 138 DERANI, Cristiane. Direito ambiental econômico. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 245: “A primeira parte do art. 225, mais genérica, descreve um direito constitucional de todos, o que, apesar de não estar ele localizado no capítulo dos direitos e deveres individuais e coletivos, não afasta o seu conteúdo de direito fundamental. Este direito é explicitado como sendo simultaneamente um direito social e individual, pois deste direito de fruição ao meio ambiente ecologicamente equilibrado não advém nenhuma prerrogativa privada. Não é possível, em nome deste direito, apropriar-se individualmente de parcelas do meio ambiente para consumo privado. O caráter jurídico do “meio ambiente ecologicamente equilibrado” é de um bem de uso comum do povo. Assim, a realização individual deste direito fundamental está intrinsecamente ligada à sua realização social.” 139 MILARÉ, Edis. Direito do ambiente: a gestão ambiental em foco. 6. ed. São Paulo: RT, 2009, p. 144. 140 D’ISEP, Clarissa Ferreira Macedo. Direito ambiental econômico e a ISO 14000: análise jurídica do modelo de gestão ambiental e certificação ISSO 14001. 2. ed. São Paulo: RT, 2009, p. 84. 67 A defesa e proteção ao meio ambiente ecologicamente equilibrado não foi dado apenas ao Poder Público, mas também à coletividade. Isso significa que não apenas o Poder Público tem o dever de sua defesa e proteção, mas também a coletividade, entendida como uma universalidade de pessoas e, ao mesmo tempo, a cada um individualmente, não havendo como se precisar a identidade de cada um dos responsáveis pela sua defesa e proteção. Por este motivo, há a quebra da clássica dicotomia público/privado, por se tratar o meio ambiente ecologicamente equilibrado de um bem ambiental de uso comum do povo, com natureza jurídica difusa.141 O dever de defesa e proteção do meio ambiente ecologicamente equilibrado possui duas concepções diversas, sendo a primeira a de não promover a degradação, e a segunda, a de promover a recuperação de áreas já degradadas. As duas concepções do dever de defesa e proteção do meio ambiente podem ser adotadas tanto pelo Poder Público, quanto pela coletividade. Não existe coletividade de pessoas sem que haja a união de diversos indivíduos, e, por este motivo, o dever de defesa e proteção do meio ambiente ecologicamente equilibrado deve se iniciar com a contribuição de cada pessoa, em particular.142 A priori, a expressão “interesse público” tem sido utilizada para expressar interesses de proveito social ou geral, da coletividade considerada em seu todo. No entanto, hodiernamente, a expressão “interesse público” torna-se equívoca diante dos chamados interesses sociais indisponíveis do indivíduo e da coletividade e diante de interesses coletivos e interesses difusos143. A Constituição Federal de 1988 traz inovação revolucionária ao admitir, em seu bojo, o meio ambiente ecologicamente equilibrado e à sadia qualidade de vida como bem de uso comum do povo, ultrapassando a clássica dicotomia público/privado. O bem ambiental é essencial à sadia qualidade de vida, e, portanto, interessa a toda a coletividade, a todas as pessoas, que são os destinatários da norma. Todavia, perceba-se que os destinatários da norma não são apenas as pessoas que formam a presente geração, mas também as futuras gerações, 141 ANTUNES, Paulo de Bessa. Direito ambiental. 6. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002, p. 57: “Não se olvide, contudo, que o conceito de uso comum de todos rompe com o tradicional enfoque de que os bens de uso comum só podem ser bens públicos. Não, a Constituição Federal estabeleceu que, mesmo no domínio privado, podem ser fixadas obrigações para que os proprietários assegurem a fruição, por todos, dos aspectos ambientais de bens de sua propriedade.” 142 Idem, p. 57: “Isto porque não estamos diante de um bem que possa ser incluído dentre aqueles pertencentes a uma ou outra pessoa jurídica de direito público, pelo contrário, o meio ambiente é integrado por bens pertencentes a diversas pessoas jurídicas, naturais ou não, públicas ou privadas. O que a Constituição fez foi criar uma categoria jurídica capaz de impor, a todos quantos se utilizem de recursos naturais, uma obrigação de zelo para com o meio ambiente.” 143 MAZZILLI, Hugo Nigro. A defesa dos interesses difusos em juízo: meio ambiente, consumidor, patrimônio cultural, patrimônio público e outros interesses. 21. ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 48: “O próprio legislador não raro abandona o conceito de interesse público como interesse do Estado e passa a identificá-lo com o bem geral, ou seja, o interesse geral da sociedade ou o interesse da coletividade como um todo.” 68 sendo dever do Poder Público e de toda a coletividade a defesa e proteção ao meio ambiente ecologicamente equilibrado. A essencial qualidade de vida não é apenas um direito nosso, mas também, das futuras gerações. Esses direitos, previstos no artigo 225 da Constituição Federal de 1988, que interessam a toda a coletividade, de forma difusa, como qualquer outro direito inserto no ordenamento jurídico, por vezes, é objeto de diversos problemas jurídicos, porém, agora, envolvendo uma coletividade de pessoas. O direito sempre encontrou dificuldades para a solução judicial de problemas de grupos, classes ou categorias de pessoas, o que sugere a necessidade de uma nova normatização capaz de abarcar tais questões e contribuir com a erradicação da necessidade de diversas ações individuais para pleitear um direito que, na realidade, poderia ser tratado de forma a atender aos anseios de toda uma coletividade de pessoas. No Brasil, a Lei da Ação Civil Pública (LACP – Lei n° 7.347/85) foi pioneira na defesa dos interesses de grupos, trazendo procedimentos processuais para os casos de lesão ou ameaça de lesão ao meio ambiente, ao consumidor, aos bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico, tendo como instrumento a ação civil pública. A LACP foi o primeiro diploma legal infraconstitucional a mencionar os interesses e direitos difusos e coletivos, no artigo 1°, IV do seu projeto de lei, preceituando ser a ação civil pública o instrumento apto à defesa desses interesses. No entanto, o artigo 1°, IV do projeto de lei foi vetado pelo Presidente da República por não haver definição legal de tais interesses ou direitos, tornando inviável sua defesa através da ação civil pública. O legislador constituinte, sensível a essas circunstâncias, passou a aceitar a tutela de direitos coletivos, porque se deparou com uma espécie de bem que não tinha natureza exclusiva de bem público, nem natureza exclusiva de bem particular, mas natureza jurídica de um bem de uso comum do povo: o bem ambiental. Após a previsão constitucional que concedeu ao meio ambiente ecologicamente equilibrado (art. 225, CF/88) a natureza jurídica de bem de uso comum do povo, foi publicada a Lei n° 8.078/90 (Código de Defesa do Consumidor - CDC), que distinguiu e classificou os direitos transindividuais em difusos, coletivos e individuais homogêneos144. O CDC acrescentou o inciso IV do art. 1° da Lei n° 7.347/85, que havia sido vetado, possibilitando a utilização da ação civil pública para a defesa de interesses difusos e coletivos. Conforme o CDC, os interesses ou direitos coletivos são os transindividuais, de natureza indivisível, de que seja titular grupo, categoria ou classe de pessoas ligadas entre si 144 Ibidem, p. 49. 69 ou com a parte contrária por uma relação jurídica base, como, por exemplo, a categoria dos engenheiros inscritos no CREA (art. 81, Parágrafo Único, II, CDC); os interesses ou direitos individuais homogêneos são aqueles decorrentes de uma origem comum, como os compradores de um produto produzido com o mesmo defeito de série (art. 81, Parágrafo Único, III, CDC); e, finalmente, os interesses ou direitos difusos são os transindividuais, de natureza indivisível, de que sejam titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato. Assim, o direito à reparação de um dano ambiental que atinge apenas os moradores da região atingida (não identificáveis), que se consubstancia no elo fático que caracteriza o interesse difuso do grupo, pode ser caracterizado como um direito difuso (art. 81, Parágrafo Único, I, CDC). Os direitos transindividuais são aqueles que ultrapassam a esfera da individualidade, que interessam a toda coletividade. A indivisibilidade diz respeito a se tratar de um direito que pertence a todos, mas ninguém em específico o possui. Não há como cindir o direito indivisível, de forma que a lesão a um só direito atinge a todos. A poluição da água de um rio poderá atingir e causar danos a diversas pessoas em diversos municípios que dela se utilizam, sem que se possa determinar cada um dos atingidos pela poluição. Por este motivo, diz-se que os direitos difusos possuem titularidade indeterminada, de modo que todos os atingidos se encontram, de alguma forma, interligados por circunstâncias de fato, ou seja, a poluição do rio. O direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado e à sadia qualidade de vida é um direito difuso, que perpassa os limites do indivíduo, mas não deixa de incluí-lo em um regime jurídico diferenciado que propicia a toda a coletividade a fruição do bem ambiental. A noção jurídica de bem, de forma genérica, corresponde a tudo o que pode ser sujeito de uma relação jurídica, excluindo-se o próprio homem. São coisas úteis e raras, suscetíveis de apropriação e que contêm valor econômico. A noção jurídica de bem é mais restrita que a noção física de coisa145. Há, também, coisas insuscetíveis de apropriação pelo homem, como o mar, as florestas, as estradas, praias, rios, ruas e praças, que não podem ser objeto de relação jurídica. Tais bens são classificados como espécie de bens públicos, mais especificamente, como bens de uso comum do povo146, conforme se depreende do teor do artigo 99, I, do Código Civil Brasileiro de 2002. Entretanto, esse artigo, ao classificar os bens de uso comum do povo 145 FRANCESCHELLI, Vincenzo. Diritto privato: persone, famiglia, successioni, diritti reali. 4. ed. Milano: Giuffré Editore, 2010, p. 396: “La nozione giuridica di bene è più ristretta della nozione física di cosa.” Tradução livre do autor: “A noção jurídica de bem é mais restrita que a noção física de coisa.” 146 GASPARINI, Diogenes. Direito administrativo. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 712. 70 como bens públicos, qualifica-os como bens de propriedade do Poder Público e não como bens pertencentes à toda a coletividade, conforme disposto na Constituição Federal de 1988. Os bens públicos, de forma genérica e simples, são aqueles que, em linhas gerais, vão para o Estado e para os órgãos públicos. Já os bens privados são aqueles que pertencem aos particulares147. No ordenamento jurídico brasileiro, são considerados bens públicos, os bens do domínio nacional pertencentes às pessoas jurídicas de direito público interno (União, os Estados, o Distrito Federal e os Territórios; os Municípios; as autarquias, inclusive as associações públicas; e, as demais entidades de caráter público criadas por lei, tais como as fundações públicas – art. 41, CCB) e privados ou particulares, todos os demais, seja qual for a pessoa a que pertencerem (art. 98, CCB). Todavia, as coisas que existem em abundância no universo, como o ar atmosférico e a luz solar não podem ser considerados bens públicos, por não ser possível sua apropriação. São bens de todos, do domínio comum, bens de titularidade difusa. Assim também deve ser considerado o bem ambiental. O bem ambiental a que se refere o “caput” do artigo 225 da Constituição Federal de 1988 é o equilíbrio ecológico do meio ambiente. Este é o bem ambiental de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida a que se refere a Constituição Federal.148 O bem ambiental pode ser classificado como macrobem e microbem. O macrobem é “um bem incorpóreo e imaterial de uso comum do povo”149. O ambiente, enquanto ecossistema é concebido como a integralidade dos bens ambientais que constituem um único bem imaterial e sistêmico.150 O artigo 2°, I, da Lei n° 6.938/81, que trata da Política Nacional do Meio Ambiente, estipula a necessidade de ação governamental na manutenção do equilíbrio ecológico (bem ambiental), considerando o meio ambiente como patrimônio público a ser necessariamente 147 FRANCESCHELLI, Vincenzo. op. cit. p. 396: “Beni privati – Sono quelli che appartengono ai privati; Beni pubblici – sono quelli che, a grandi linee, fanno capo allo Stato e agli enti pubblici.” Tradução livre do autor: Bens particulares – são aqueles que pertencem ao particular; Bens públicos – são aqueles que, amplamente, se dirigem ao Estado e aos órgãos públicos”. 148 SILVA, José Afonso da. Direito ambiental constitucional. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 1998, p. 58: “A Constituição, no art. 225, declara que todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado. Veja-se que o objeto do direito de todos não é o meio ambiente em si, não é qualquer meio ambiente. O que é objeto do direito é o meio ambiente qualificado. O direito que todos temos é à qualidade satisfatória, o equilíbrio ecológico do meio ambiente. Essa qualidade é que se converteu num bem jurídico. A isso é que a Constituição define como bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida.” 149 FENSTERSEIFER, Tiago. Direitos fundamentais e proteção do ambiente: a dimensão ecológica da dignidade humana no marco jurídico-constitucional do Estado Socioambiental de Direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008, p. 165. 150 Ibidem, p. 165: “Devido à sua natureza difusa, por mais que seja possível a individualização dos bens ambientais e forma singularizada (florestas, rios, espécies da fauna, espécies da flora, etc.), o ambiente, enquanto ecossistema, não permite a sua concepção sem a integralidade dos bens ambientais, constituindo um único bem imaterial (e sistêmico).” 71 assegurado e protegido (a fim de atender ao disposto no art. 225 da Constituição Federal de 1988), tendo em vista o uso coletivo. Esta disposição legal recebe a crítica de Leite, ao afirmar151: Não se deve aceitar, desta forma, a qualificação do bem ambiental como patrimônio público, considerando ser o mesmo essencial à sadia qualidade de vida e, portanto, um bem pertencente à coletividade. Nestes termos, conclui-se que o bem ambiental (macrobem) é um bem de interesse público, afeto à coletividade, entretanto, a título autônomo e como disciplina autônoma, conforme já foi mencionado. Diante disso, segundo o autor, o bem ambiental, como macrobem, não deve ser visto como patrimônio público, mas como um bem que pertence à coletividade, de titularidade difusa. Nesta perspectiva, o bem ambiental é um bem de interesse público, no entanto, com disciplina autônoma. Perceba-se, também, que o artigo 2°, I, da Lei n° 6.938/81, menciona a necessidade de, através de ação governamental, atingir a manutenção do equilíbrio ecológico, tendo em vista o uso coletivo do meio ambiente. Desse modo, o bem ambiental é bem público, porém, de uso coletivo, cuja titularidade é do povo, sendo confiada à administração pública a sua guarda e gestão através de medidas de polícia administrativa com o escopo de restringir as formas de uso pela comunidade.152 Todavia, as restrições de uso impostas pela administração pública recaem sobre o uso dos microbens ambientais que, em seu conjunto, acabam por formar o macrobem ambiental, o ecossitema. O microbem ambiental pode ser considerado como o bem ambiental corpóreo, material, individualizado, tais como florestas, rios, solo, água, propriedade de valor paisagístico, fauna, flora, enfim, todos os elementos que compõem o macrobem ambiental, considerado como ecossistema. A relação entre macrobem e microbem ambiental possibilita a interação entre o público e o privado, pois a utilização dada ao microbem ambiental pelo seu titular é limitada pelo interesse público, que visa o equilíbrio do macrobem ambiental, o equilíbrio do meio ambiente como um todo, como ecossistema153. Portanto, ao contrário do macrobem ambiental, os microbens ambientais são passíveis de apropriação individual, seja sua titularidade de 151 LEITE, José Rubens Morato; AYALA, Patryck de Araújo. op. cit., p. 84. 152 MIRRA, Álvaro Luiz Valery. Ação civil pública e a reparação do dano ao meio ambiente. 2. ed. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2004, p. 39: “Os bens públicos de uso comum do povo, na lição de Clóvis Beviláqua, são os que pertencem a todos (res communes omnium). O proprietário desses bens é a coletividade, o povo, à Administração Pública estando confiada a sua guarda e gestão. Deles podem se servir todas as pessoas, respeitadas as leis e os regulamentos. A atividade gestora do Poder Público, nesse sentido, se dá, via de regra, por intermédio de medidas de polícia administrativa, para restringir as formas de uso pela comunidade, a fim de assegurar o direito de todos utilizarem os bens comuns.” 153 FENSTERSEIFER, Tiago. op. cit., p. 165: “Mais uma vez (e sempre) os universos público e privado se tocam, pois o exercício empregado pelo titular do microbem ambiental encontra limites no interesse público e no equilíbrio do macrobem ambiental, contemplando uma visão integradora do espaço natural.” 72 natureza pública ou privada, com utilização controlada pela guarda e gestão da administração pública, que visa o resguardo e proteção do macrobem ambiental. 3.2 A compreensão atual do instituto da propriedade Nos primórdios da civilização, o homem vivia em estado de natureza, e isto significava a ausência total do Estado. O homem obedecia ao direito natural, ou seja, utilizava seu próprio poder para preservar sua natureza, sua vida. A lei natural proibia o homem de fazer tudo o que fosse capaz de destruir sua vida, como um instinto de sobrevivência154, fazendo tudo o que seu próprio julgamento indicasse como necessário para sobreviver.155 Para Hobbes156, o homem possui, em sua natureza, três causas principais de discórdia: a competição, a desconfiança e a glória. A competição leva o homem a atacar seus semelhantes, visando o lucro; a desconfiança, por segurança; e a glória, pela reputação. As três formas de discórdia indicadas por Hobbes levam o homem a viver em um constante estado de guerra157. Por mais que o homem, em sua natureza, busque obedecer às leis naturais, como a justiça, a equidade, a modéstia, a piedade, fazendo aos outros aquilo que deseja que os outros lhe façam, a ausência do temor de um poder capaz de levá-las a ser respeitadas acaba por levar o homem ao seu desrespeito. Nesta linha de raciocínio, os pactos realizados, sem uma força cogente que obriguem seu cumprimento, não passam de meras palavras. Na ausência total do Estado, e em estado de guerra permanente, o homem fica cingido às leis naturais e tende a confiar apenas em sua própria força e capacidade como meio de proteção ao ataque dos demais, de modo que as ações dos homens serão determinadas de acordo com o juízo de cada um e seus desejos particulares. Isso torna inevitável o surgimento de divergências de opinião, acabando por gerar um estado de guerra ainda maior. 154 BURDEAU, Georges. O Estado. Tradução de Maria Ermantina de Almeida Prado Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 7: “De fato, durante milênios, a necessidade de subsistir foi a única razão de ser dos grupamentos humanos.” 155 HOBBES, Thomas. Leviatã: ou matéria, forma e poder de um estado eclesiástico e civil. Tradução de Alex Marins. São Paulo: Martin Claret, 2002, p. 101: “O direito natural, que os autores geralmente chamam de jus naturale, é a liberdade que cada um possui de usar seu próprio poder da maneira que quiser, para a preservação de sua própria natureza, ou seja, de sua vida. Consequentemente de fazer tudo aquilo que seu próprio julgamento e razão lhe indiquem como meios adequados a esse fim.” 156 Idem, p. 97: “Na natureza do homem encontramos três causas principais de discórdia. Primeiro, a competição; segundo, a desconfiança, e terceiro, a glória.” 157 Ibidem, p. 98: “Será estranho a alguém que não tenha considerado bem essas coisas em que a natureza tenha assim dissociado os homens, tornando-os capazes de se atacar e de se destruir uns aos outros.” 73 O homem é um animal político por natureza e deve viver em sociedade158. Para isso, deve buscar a paz. Para alcançá-la, deve buscar o bem comum, garantindo a segurança de todos e evitando o estado permanente de guerra. Tal desiderato somente é possível com a instituição do Estado. Concluindo os homens pela impossibilidade de manutenção do estado de natureza, sob pena de seu perecimento, somente lhes resta unir forças a fim de renunciar à sua liberdade natural e aderir a uma liberdade convencional, através do contrato social159. Pelo contrato social, os homens renunciam à sua liberdade natural e se submetem a uma vontade convencional, que corresponde à vontade geral. A submissão dos homens ao contrato social produz um corpo moral e coletivo, composto de tantos homens quantos forem os votos da assembléia, com unidade, vida e vontade própria160. A única maneira de se constituir um poder comum, a fim de defender os homens e a comunidade das injúrias dos próprios homens, garantido a necessária segurança para uma vida com o mínimo de dignidade, “é conferir toda força e poder a um homem ou a uma assembléia de homens, que possa reduzir suas diversas vontades, por pluralidade de votos, a uma só vontade.”161 Essa pessoa pública, assim formada pela união de todas as demais, tomava outrora o nome de Cidade, e hoje o de República ou de corpo político, o qual é chamado por seus membros de Estado quando passivo, soberano quando ativo e Potência quando comparado aos seus semelhantes. Quanto aos associados, eles recebem coletivamente o nome de povo e se chamam, em particular cidadãos, enquanto participantes da autoridade soberana, e súditos, enquanto submetidos às leis do Estado162. No pensamento hobbesiano, o soberano recebe o poder por conquista, através da guerra, com a formação do Estado Político, ou de modo voluntário, sendo-lhe concedido o 158 ARISTÓTELES. Política. Tradução de Torrieri Guimarães. São Paulo: Martin Claret, 2002, p. 14: “Fica evidente, portanto, que a cidade participa das coisas da natureza, que o homem é um animal político, por natureza, que deve viver em sociedade, e que aquele que, por instinto e não por inibição de qualquer circunstância, deixa de participar de uma cidade, é um ser vil ou superior ao homem.” 159 ROUSSEAU, Jean-Jacques. O contrato social. Tradução de Antonio de Pádua Danese. 3.ed. São Paulo: Martins Fontes, 1996, p. 20: “Suponho que os homens tenham chegado àquele ponto em que os obstáculos prejudiciais à sua conservação no estado de natureza sobrepujam, por sua resistência, as forças que cada indivíduo pode empregar para se manter nesse estado. Então, esse estado primitivo já não pode subsistir, e o gênero humano pereceria se não mudasse seu modo de ser.” 160 BONAVIDES, Paulo. Do estado liberal ao estado social. 9. ed. São Paulo: Malheiros, 2009, p. 41: “O Estado manifesta-se, pois, como criação deliberada e consciente da vontade dos indivíduos que o compõem, consoante as doutrinas do contratualismo social.” (p. 41). 161 HOBBES, Thomas. op. cit., p. 130: “Isso equivale a dizer: designar um homem ou uma assembléia de homens como representantes deles próprios, considerando-se e reconhecendo-se cada um como autor de todos os atos que aquele que os representa praticar ou vier a realizar, em tudo o que disser respeito à paz e segurança comuns. Todos devem submeter suas vontades à vontade do representante e suas decisões à sua decisão.” 162 ROUSSEAU. Jean-Jacques. op. cit., p. 22. 74 poder por mútuo acordo entre os homens, que se submetem ao seu comando, na esperança de serem protegidos por ele contra tudo, sendo concebido o Estado por Instituição. O poder passa a ser individualizado, ou seja, o poder se encarna em um homem que possui qualidades pessoais que lhe tornam apto a comandar e tomar decisões em nome dos demais, utilizando-se dos instrumentos de poder que nele se concentram163. Este homem passa a ser o representante do povo no poder: o soberano. Para Hobbes, esse poder é absoluto164, não podendo o seu representante ser acusado de injúria ou ser punido por seus súditos. Todos os seus atos são reconhecidos e suportados pelos seus súditos, como se cada um deles fosse autor dos atos do soberano. Desse modo, o súdito não poderia queixar-se de injúria cometida por seu soberano, pois que também é autor do ato, não podendo haver injúria contra si próprio. Em todas as sociedades políticas, porém, chegará o momento em que o soberano, por mais qualidades que possua, se tornará impotente para justificar sua autoridade. Os governados, com o tempo, acabam por formar uma consciência política mais exigente, no sentido de questionar o poder do soberano, suas qualidades para estar no comando, recusando-se a conceber um governo em que estejam submetidos a uma vontade individual.165 Nesse diapasão, surge a ideia de dissociação entre a autoridade e o indivíduo que a exerce. Mas o poder, uma vez desencarnado da pessoa do soberano, deverá ter outro titular, e esse suporte do poder será a instituição estatal, como sede exclusiva do poder público. Assim, o Estado é institucionalizado, retirando o poder da pessoa do governante e transferindo-o ao Estado, que desde então passa a ser seu único proprietário166. O território do Estado institucionalizado é patrimônio da coletividade e não propriedade de seus chefes. A coletividade precisa que o território não seja de titularidade de um indivíduo, sendo fracionado da forma que bem entender, mas, sim, de um ente capaz de 163 BURDEAU, Georges. op. cit., p. 7: “Então começa a era do Poder individualizado, ou seja, de um Poder que se encarna num homem que concentra em sua pessoa não só todos os instrumentos do poder, mas também toda a justificação da autoridade. O chefe traz em si seu título para o comando. Se ele comanda, é em razão de qualidades que lhe são pessoais. Seu talento, sua habilidade ou sua coragem, sua sorte ou sua riqueza constituem o fundamento de sua dominação. Todo o Poder se encarna nele, afirma-se em suas decisões e desaparece com ele.” 164 SCAFF, Fernando Facury. Responsabilidade civil do estado intervencionista. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 58: “Poder absoluto no sentido de que nenhum outro a ele se oporia, exceto aquele proveniente diretamente de Deus. Portanto, o poder do soberano só poderia ser delimitado pelo poder de Deus. Daí ser considerado poder absoluto, uma vez que o soberano encarnava o Estado e era neste que residia a soberania.” 165 BURDEAU. Georges. op. cit., p. 11: “De fato, ocorre um momento, nas sociedades políticas, em que as qualidades pessoais de um chefe, por mais consideráveis que sejam, são impotentes para justificar a autoridade por ele exercida. A consciência política dos governados, tornada mais exigente, recusa admitir que toda a organização da Cidade repousa numa vontade individual.” 166 Idem, p. 12: “Assim surge a idéia de uma dissociação possível entre a autoridade e o indivíduo que a exerce. Mas, como o Poder, deixando de estar incorporado na pessoa do chefe, não pode subsistir ao estado de ectoplasma, é-lhe preciso um titular. Esse suporte será a instituição estatal considerada sede exclusiva do poder público. No Estado, o Poder é institucionalizado, no sentido de ser transferido da pessoa dos governantes, que já não têm seu exercício, para o Estado, que desde então se torna seu único proprietário.” 75 perdurar no poder, e essa condição somente é possível através do Estado institucionalizado. O Estado, portanto, nasce da ideia de que o poder não pode ser de propriedade de certos indivíduos, sendo utilizado para a realização de suas vontades ou de suas fantasias. O poder deve ser de titularidade de um ente superior ao indivíduo do governante e, por isso, não pode ser individualizado. O poder deve ser de titularidade da coletividade, através do Estado institucionalizado. O Estado era detentor da soberania e monopolizador do poder. Seu poder era ilimitado, podendo inclusive se voltar contra o povo, sendo, por isto, chamado, por Hobbes, de Estado Leviatã167. O Estado, portanto, no pensamento hobbesiano, constitui-se em um estado absolutista, com um governo despótico. O governo despótico foi duramente criticado por Montesquieu, em seu “Espírito das Leis”, pelo fato de ser, por natureza, exercido por um único homem168. Afirma Montesquieu169: Um Governo moderado pode, desde que queira, e sem risco, relaxar as molas. Ele se mantém por suas leis e por sua própria força. Mas num Governo Despótico, quando o Príncipe deixa de levantar o braço um momento; quando não pode aniquilar incontinenti os que ocupam os primeiros postos, tudo está perdido. Porquanto, faltando a mola do Governo, o Temor, já o Povo não tem protetor. O governo despótico, portanto, na visão de Montesquieu, não é a melhor opção para atender os anseios do povo, pois a esperança do povo ao eleger o seu representante, de ser protegido de tudo por este alguém a quem fosse concedido o poder soberano sobre os demais, cai por terra ao menor descuido do Príncipe, que perderá a mola de seu governo, o temor. A natureza do governo despótico exige obediência extrema, conforme a vontade do Príncipe. Partindo-se da ideia de igualdade entre os homens, um não pode preferir a outro e, sendo, no governo despótico, todos os homens escravos, não podem preferir a nada. Conclui Montesquieu que a teoria hobbesiana não é razoável170. Uma vez criticada por Montesquieu as ideias absolutistas de Hobbes e a teoria do governo despótico, por ser um governo que se corrompe sem cessar e corrupto por natureza, 167 BONAVIDES, Paulo. op. cit., p. 41: “Daí o zelo doutrinário da filosofia jusnaturalista em criar uma técnica da liberdade, traduzida em limitação do poder e formulação de meios que possibilitem deter o seu extravasamento na irresponsabilidade do grande devorador, o implacável Leviatã.” 168 MONTESQUIEU, Charles de Secondat Baron de. O espírito das leis: as formas de governo, a federação, a divisão dos poderes, presidencialismo versus parlamentarismo. Tradução de Pedro Vieira Mota. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 96: “Resulta da natureza mesma do poder Despótico que o único homem que o exerce faça-o igualmente exercer por um único. Um homem a quem os cinco sentidos dizem sem cessar que ele é tudo, e que os outros não são nada, é naturalmente preguiçoso, ignorante, voluptuoso. Ele abandona pois os negócios.” 169 Idem, p. 106. 170 MONTESQUIEU. Charles de Secondat Baron de. op. cit., p. 81 :”O desejo de subjugar-se uns aos outros, que Hobbes atribui aos homens de início, não é razoável. A idéia de império e dominação é tão complexa, e depende de tantas outras, que não é ela que o homem teria inicialmente.” 76 emerge a necessidade de um sistema capaz de frear os anseios do príncipe em seu governo171. Dessa necessidade, nasce a conhecida teoria de Montesquieu da separação de poderes172. Na realidade, Platão e, mais tarde, Políbio, propuseram uma forma mista de governo, já preocupados em limitar o poder do Estado, através de uma divisão de poderes, de modo que nenhum dos poderes preponderasse sobre os demais, visando o equilíbrio e a harmonia entre eles173. A preocupação com a divisão dos poderes também foi manifestada por Locke que acreditava ser temerário, diante da fraqueza da natureza humana, permitir que os responsáveis pela elaboração das leis, os legisladores, também detivessem o poder de executá-las, diante do risco de excepcionar-se da obediência de determinadas leis, adaptando-as ou executando-as de modo a obter benefícios particulares, contrariando, assim, os interesses da sociedade e afastando-se da finalidade de promoção do bem público174. A liberdade política não consiste em se fazer o que se quer, mas, sim, em fazer tudo o que as leis permitem, pois, se acaso algum cidadão pode fazer o que as leis proíbem é porque outros cidadãos possuem igualmente esse poder e, assim, ele já não teria liberdade. Mas a experiência revela que todo homem que tem poder é levado a abusar dele, e por este motivo, é necessário um sistema de freios e contrapesos, no qual um poder tenha a prerrogativa de frear os abusos dos outros poderes. Este sistema se revela através da separação de poderes. 171 Idem, p. 165: “Para que não possam abusar do poder, precisa que, pela disposição das coisas, o poder freie o poder.” 172 BONAVIDES. Paulo. op. cit., p. 45: “Com a divisão de poderes vislumbraram os teóricos da primeira idade do constitucionalismo a solução final do problema de limitação da soberania.” 173 ZIPPELIUS, Reinhold. Teoria Geral do Estado. 3. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1997, p. 407: “Já em Platão (Leis, 691 ss.) e, mais tarde, em Políbio (Histórias, VI 3 e 10-18) teria o programa de controlo e moderação do poder uma referência organizativa mais forte. Ambos propuseram uma forma mista de governo, associando-a à idéia de dividir o supremo poder do Estado para assim limitá-lo. Políbio escrevia (VI 10) que os diversos factores de poder deveriam ser contra-balançados reciprocamente “de modo a que nenhum deles adquirisse preponderância, tornando-se o factor decisivo, mas que todos permanecessem em equilíbrio, tal como uma balança; que as forças antagônicas se compensassem mutuamente e que assim se conservasse duradouramente a situação constitucional.” Pretendia inclusivamente aplicar o princípio do equilíbrio dos poderes à política externa (I 83).” 174 LOCKE, John. Dois tratados sobre o governo. Tradução de Julio Fischer. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 514-515: “E – porque pode constituir uma tentação demasiado grande para a fragilidade humana capaz de assenhorear-se do poder que as mesmas pessoas que têm o poder de elaborar as leis tenham também em mãos o de executá-las, com o que podem isentar-se da obediência às leis que fazem e adequar a lei, tanto no elaborá-la como no executá-la, a sua própria vantagem particular, passando com isso a ter um interesse distinto daquele do resto da sociedade política, contrário aos fins dessa sociedade e desse governo – nas sociedades políticas bem ordenadas, em que o bem do todo recebe a consideração devida, o poder legislativo é depositado nas mãos de diversas pessoas que, devidamente reunidas em assembléia, têm em si mesmas, ou conjuntamente com outras, o poder de elaborar leis e, depois de as terem feito, separando-se novamente, ficam elas próprias sujeitas às leis que formularam; o que para elas é uma obrigação nova e mais restritiva, para que tenha o cuidado de elaborá-las visando o bem público.” 77 A fim de garantir as liberdades individuais e prevenir o arbítrio estatal, era necessária a distribuição dos papéis e funções de regulação do Estado, através de um sistema de controle dos poderes175. Montesquieu nos traz a divisão de poderes, pela qual, o poder do Estado é dividido em Poder Legislativo, Poder Executivo e Poder Judiciário, pois acredita que estaria tudo perdido se um mesmo homem ou um mesmo corpo de principais, de nobres ou do povo, exercesse os três poderes. Assim, cada poder possui, além de suas funções específicas, a função de fiscalizar a atuação dos demais poderes, em um sistema de freios e contrapesos. A pluralidade de poderes, pela divisão proposta por Montesquieu, é um mecanismo que visa controlar a tendência natural de abuso do poder e o meio necessário para garantir a liberdade ao povo. Tais modificações no sistema político do Estado são frutos de uma corrente de pensamento: o liberalismo. O uso político do termo “liberal” iniciou no século XIX, na proclamação de Napoleão (18 Brumário), entrando na linguagem política através das cortes de Cadiz, em 1812. O termo era utilizado para determinar o partido que defendia as liberdades públicas contra o partido servil. Todavia, há que se ter cautela na utilização do termo, que pode assumir diferentes conotações, desde um posicionamento de centro, capaz de mediar conservadorismo e progressismo, como na Inglaterra e na Alemanha; ou um radicalismo de esquerda, defensor de velhas e novas liberdades civis, como nos Estados Unidos; até significar o conjunto daqueles que buscam manter a livre iniciativa e a propriedade particular, como na Itália.176 O termo “liberal” se revela bastante ambíguo ao ser utilizado em contextos disciplinares diversos entre si. Temos o liberalismo jurídico, que se preocupa com uma determinada organização do Estado capaz de garantir os direitos do indivíduo; o liberalismo 175 ZIPPELIUS, Reinhold. op. cit., p. 384: “Para garantir as liberdades individuais e prevenir o arbítrio estatal, era necessário tomar precauções em especial para que a acção do Estado funcionasse mediante uma determinada distribuição dos papéis e de acordo com regras de jogo garantidas. Através de uma distribuição e coordenação organizada das funções de regulação do Estado era necessário instaurar um sistema de separação e de controlo dos poderes. Tratava-se em especial de vincular o executivo à lei e ao direito. Também a acção do Estado devia ser controlada através de regras procedimentais (relativos aos procedimentos legislativos, administrativos e jurisdicionais) protegendo-a contra o arbítrio. Deviam também ser criados mecanismos de controlo judicial e outros cuja função era fiscalizar a observância das regras de jogo do sistema de regulação jurídico.” 176 BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de política. Vol. 2. 9. ed. Brasília: UNB, 1997, p. 688: “Trata-se, também, de uma definição arriscada, inclusive porque nem sempre grupos e partidos que se inspiravam nas idéias liberais tomaram o nome de liberais, e também nem sempre os partidos liberais desenvolveram uma política coerente com os princípios proclamados. O mapa dos agrupamentos de movimentos ou de partidos liberais no século XIX e no século XX apresenta inúmeros espaços vazios; o que não significa que nestes países existiam idéias liberais. Além disso, ontem como hoje, os diferentes partidos com o nome e com as idéias liberais ocuparam nos agrupamentos parlamentares posições bastante diversificadas: conservadoras, centristas, moderadas, progressistas.” 78 político, em que se destaca a luta política parlamentar como arte de governar e capaz de promover a inovação, nunca a revolução; e, ainda, o liberalismo econômico, embasado na busca individual da felicidade. De acordo com o iluminismo francês e o utilitarismo inglês, liberalismo significa individualismo, como defesa radical do indivíduo contra o Estado e a sociedade, com aversão à existência de toda e qualquer sociedade intermediária entre o indivíduo e o Estado.177 Para a concepção liberal, a liberdade dos indivíduos somente deve ser restringida nos interesses da comunidade178. O liberalismo surgiu no continente europeu como uma nova visão de mundo, em que a burguesia (classe social emergente) lutava contra a dominação do feudalismo aristocrático fundiário, entre os séculos XVII e XVIII179. O liberalismo surge como uma bandeira revolucionária da burguesia capitalista, apoiada pelos camponeses e pelas camadas sociais exploradas, contra o antigo regime absolutista. No início, o liberalismo, seguindo os ideais de liberdade, igualdade e fraternidade, oriundos da Revolução Francesa, atendia aos interesses da burguesia enriquecida e também de seus aliados economicamente menos favorecidos. Todavia, quando o capitalismo começou a passar à fase industrial, a elite burguesa assumiu o poder político e o controle econômico e passou a utilizar, na prática, apenas os aspectos da teoria liberal que lhe interessam, negando ao povo o acesso ao governo e denegando a distribuição social da riqueza180. A negação do absolutismo pelo liberalismo traz uma nova concepção de Estado. Para o liberalismo, o Estado deverá limitar-se “a ser garantidor das relações estabelecidas pelos particulares, promovendo a proteção da vida, da segurança individual das pessoas e da propriedade”181. O liberalismo se forma por uma mescla de princípios morais, econômicos e políticos, tais como a liberdade pessoal, o individualismo, a dignidade humana, o direito de 177 Ibidem, p. 689: “...embora o Liberalismo continue mostrando duas faces e duas estratégias: uma, que enfatiza a sociedade civil, como espaço natural do livre desenvolvimento da individualidade, em oposição ao Governo; outra, que vê no Estado, como portador da vontade comum, a garantia política, em última instância, da liberdade individual.” 178 ZIPPELIUS, Reinhold. op. cit., p. 389: “De acordo com a concepção liberal só se deve restringir a liberdade dos indivíduos na medida em que tal for necessário no sentido dos fins prevalecentes da comunidade. Cada um no Estado deveria ficar tão livre quanto possível.” 179 WOLKMER, Antonio Carlos. Ideologia, estado e direito. 4. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: RT, 2003, p. 121: “O Liberalismo surgiu como uma nova visão global de mundo, constituída pelos valores, crenças e interesses de uma classe social emergente (a burguesia) na sua luta histórica contra a dominação do feudalismo aristocrático fundiário, entre os séculos XVII e XVIII, no continente europeu.” 180 Idem, p. 121: “Mais tarde, contudo, quando o capitalismo começa a passar à fase industrial, a burguesia (a elite burguesa), assumindo o poder político e consolidando seu controle econômico, começa a “aplicar na prática somente os aspectos da teoria liberal” que mais lhe interessam, denegando a distribuição social da riqueza e excluindo o povo do acesso ao governo.” 181 FIGUEIREDO, G. J. Purvin de. A propriedade no direito ambiental. 3. ed. São Paulo: RT, 2008, p. 68. 79 propriedade, o direito de herança, o direito de acumular riqueza e capital, a liberdade de produzir, comprar e vender, o direito de participar e decidir que governo eleger e que espécie de política seguir, através do consentimento individual, da representação e do governo representativo, além do constitucionalismo político, da separação dos poderes e da soberania popular. No Estado liberal, a soberania havia sido transferida do soberano para o povo, o que animou a Revolução Francesa e a extinção do absolutismo182. A soberania sai das mãos do rei e passa para as mãos do povo. A lei passa a ser a expressão da vontade geral. Com isso, cada cidadão passa a ser detentor de uma parcela da soberania do Estado, o que consubstancia o princípio da soberania popular, que concede ao cidadão uma parcela da soberania do Estado, através do direito de ser ouvido em todas as decisões que o Estado tome. Todavia, seria impossível que todo e qualquer cidadão pudesse participar de atos decisórios do Estado, pela impossibilidade de se fazer presente nas discussões que definiriam o futuro dos cidadãos, surgindo daí a ideia de que o povo pudesse ser representado por um pequeno número de cidadãos, através de um mandato eletivo. Nasce o princípio da representação popular para possibilitar a participação do povo, através de seus representantes, nas discussões e decisões inerentes ao Estado183. Embora possa parecer que quem faz as leis sabe melhor do que ninguém como interpretá-las e executá-las, na realidade, não há nada mais perigoso do que a influência dos interesses privados nos negócios públicos184. A separação dos poderes aliada ao princípio da representação popular insere, na sociedade, uma nova concepção de governo, a democracia, baseada em princípios de liberdade e igualdade, com o escopo de garantir a participação do povo nas decisões do Estado e evitar o abuso de poder deste para com o povo. A igualdade perante a lei exige que todos os homens tenham a mesma participação na sua confecção. Embora o liberalismo e o movimento democrático estejam concordes neste ponto, seus interesses são diferentes. O liberalismo preocupa-se em limitar o poder coativo 182 SCAFF, Fernando Facury. op. cit., p. 58: “Esta idéia de soberania baseada no povo foi um dos pilares da Revolução Francesa para extinguir o Estado Absolutista.” 183 Idem, p. 68: “O Princípio da Legalidade é decorrente do Princípio da Soberania Popular acrescido do Princípio da Representação Popular. Assim, como cada pessoa é possuidora de uma parcela da soberania do Estado (Princípio da Soberania Popular), ela deve ser ouvida em todas as decisões que o Estado tome, uma vez que age em nome e por conta de cada qual do povo. Contudo, ante a impossibilidade fática de cada indivíduo estar presente no momento da discussão das decisões a serem tomadas pelo Estado, surgiu a idéia de que todo o povo poderia ser representado por apenas um pequeno número de pessoas, para as quais seria outorgado um mandato eletivo. Tudo elaborado de tal forma que, ao fim, todo o povo de um Estado pudesse estar representado na tomada, e para a tomada, de decisões (Princípio da Representação Popular).” 184 ROUSSEAU, Jean-Jacques. op. cit., p. 82: “Quem faz a lei sabe melhor que ninguém como se deve executá-la e interpretá-la. [...] Não convém que quem redige as leis as execute, nem que o corpo do povo desvie sua atenção dos desígnios gerais para concentrá-la nos objetivos particulares. Nada mais perigoso que a influência dos interesses privados nos negócios públicos.” 80 dos governos; a democracia entende que o limite do governo é a opinião majoritária do povo. À democracia se opõe o governo autoritário; ao liberalismo se opõe o totalitarismo185. A partir do Estado liberal de direito e a proteção aos direitos individuais do cidadão contra as interferências do Estado em sua vida privada, o Estado passa a sofrer limitações ao reconhecer as garantias próprias dos indivíduos como a liberdade individual, a liberdade de comércio, a liberdade de contratar e o direito à propriedade privada. Com o desenvolvimento econômico e social, a política liberal não mais servia como modelo de Estado por si só, surgindo a necessidade de um novo modelo de Estado, capaz de intervir no domínio econômico, já que o modelo liberal não correspondia mais à realidade da época. A sociedade clamava por um Estado intervencionista. Dá-se, a partir daí, a transição do Estado Liberal de Direito para o Estado Social de Direito, com finalidades sociais e econômicas, na busca do bem comum e da justiça social. A questão social é o conteúdo jurídico do Estado Social de Direito, com o escopo da promoção do bem-estar social, com a intervenção do Estado nos seus aspectos econômicos e sociais, de modo a não somente limitar a ação do próprio Estado, mas também, e principalmente, conceder aos cidadãos direitos relacionados aos serviços prestados pelo Estado. Todavia, tais garantias se mostram insuficientes para suprir os anseios da sociedade. O modelo de Estado existente, que mescla o Estado Liberal e o Estado Social, não atende, de forma eficiente, às inúmeras demandas sociais. A sociedade, neste contexto, insatisfeita com o modelo de Estado que se lhe apresenta, quer acrescentar a esta mistura o ingrediente da igualdade, a fim de realizar a justiça social e de um Estado democrático. Os direitos fundamentais como princípios materiais do Estado de Direito, dentre eles o direito à igualdade e à liberdade, são enriquecidos pela ideia do Estado Social que, na busca 185 HAYEK. Friedrich August Von. Los fundamentos de la libertad. 5. ed. Madrid: Union Editorial, 1991, p. 127: “La igualdad ante la ley conduce a la exigencia de que todos los hombres tengan también la misma participación en la confección de las leyes. Aunque en este punto concuerden el liberalismo tradicional y el movimiento democrático, sus principales intereses son diferentes. El liberalismo (en el sentido que tuvo la palavra en la Europa del siglo XIX, al que nos adherimos en este capítulo) se preocupa principalmente de la limitación del poder coactivo de todos los gobiernos, sean democráticos o no, mientras el demócrata dogmático sólo reconoce un limite al gobierno: la opinión mayoritaria. La diferencia entre los dos ideales aparece más claramente si consideramos sus oponentes. A la democracia se opone el gobierno autoritário; al liberalismo se opone el totalitarismo.” Tradução livre do autor: “A igualdade perante a lei conduz à exigência de que todos os homens tenham também a mesma participação na confecção das leis. Ainda que neste ponto concordem o liberalismo tradicional e o movimento democrático, seus principais interesses são diferentes. O liberalismo (no sentido que teve a palavra na Europa do século XIX, à qual aderimos neste capítulo) se preocupa principalmente da limitação do poder coativo de todos os governos, sejam democráticos ou não, enquanto o democrata dogmático somente reconhece um limite ao governo: a opinião majoritária. A diferença entre os dois ideais aparece mais claramente se consideramos seus oponentes. À democracia se opõe o governo autoritário; ao liberalismo se opõe o totalitarismo.” 81 pela justiça social, cria condições reais de concretização de sua finalidade principal, qual seja, a igualdade de oportunidades para todos186. Surge daí o atual Estado Democrático de Direito, na busca de equilíbrio entre a liberdade característica do Estado Liberal e a igualdade característica de um Estado Social, com a finalidade de transformar a realidade social e atingir, dessa forma, a tão desejada justiça social. O Estado Democrático de Direito é a fórmula jurídica que resulta da superação do Estado Liberal de Direito e do Estado Social de Direito. No primeiro, preza-se pela Constituição como uma obra aberta, que propicia, no momento de sua concretização, a ocorrência de conflitos de valores, como o conflito entre a igualdade e a segurança jurídica, ensejando que o seu sentido seja permanentemente construído e reconstruído por seus destinatários, através de inúmeros debates acerca das diversas interpretações e concepções a respeito de como melhor compatibilizar os valores em conflito187. O Estado Democrático de Direito firma-se a partir da revalorização dos direitos individuais de liberdade, que não podem ser sacrificados em nome de direitos sociais, com a finalidade de promover a harmonização de interesses na esfera pública (Estado), na esfera privada (indivíduo) e na esfera coletiva (indivíduos membros de determinados grupos)188. Como se pode inferir, o Estado Democrático de Direito tem, como finalidades principais, a garantia de direitos fundamentais e coletivos, a divisão de poderes, a igualdade, a soberania popular189 e a justiça social. Desse modo, acredita-se poder haver maior equilíbrio 186 ZIPPELIUS, Reinhold. op. cit., p. 385: “Entre os princípios do Estado de Direito contam-se, porém, não só princípios de forma para a acção estatal, mas também princípios “materiais” (quer dizer relativamente ao conteúdo). Tais componentes de conteúdo do Estado de Direito residem em particular nas garantias dos direitos fundamentais. Estas garantias de liberdade e de igualdade são, além disso, materialmente enriquecidas pela idéia do Estado social e pela missão nela contida de realizar a justiça social, de criar as condições reais para um desenvolvimento da personalidade e de concretizar a igualdade de oportunidades para todos.” 187 GUERRA FILHO. Willis Santiago. Teoria da Ciência Jurídica. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 184: “Essa visão do texto constitucional como uma ‘obra aberta’, cujo sentido é permanentemente construído e reconstruído por seus destinatários, seria ela própria um reclamo do Estado Democrático de Direito, visto que este representa um intento de conciliar valores que só abstratamente se compatibilizam perfeitamente, pois no momento de sua concretização podem chocar-se, por exemplo, a segurança jurídica (= respeito à legalidade) e a igualdade perante a lei, valores associados ao Estado de Direito formal, com a segurança e igualdade das situações em que se encontram inseridos os indivíduos na sociedade, a qual se pretende seja democrática. Daí a necessidade de que se constitua o que, tomando de empréstimo uma expressão de Karl Popper, se chamou de ‘sociedade aberta dos intérpretes da Constituição’, a fim de que se estabeleça um amplo debate entre os defensores das diversas concepções a respeito de como melhor compatibilizar os valores em conflito, e isso sempre com a preocupação de preservá-los todos, em seu conteúdo mínimo.” 188 Idem, p. 186: “Em sendo assim, tem-se o compromisso básico do Estado Democrático de Direito na harmonização de interesses que se situam em três esferas fundamentais: a pública, ocupada pelo Estado, a privada, em que se situa o indivíduo, e um segmento intermediário, a esfera coletiva, na qual há os interesses de indivíduos enquanto membros de determinados grupos, formados para a consecução de objetivos econômicos, políticos, culturais ou outros.” 189 HAYEK. Friedrich August Von. op. cit., p. 131: “La soberania popular es la concepción básica de los democratas doctrinarios. Significa, según ellos, que el gobierno de la mayoría es ilimitado e ilimitable. El ideal 82 nas relações entre Estado/cidadão. No modelo de Estado Democrático de Direito, o Estado busca garantir o constitucionalismo, os direitos individuais do cidadão, os direitos fundamentais e os direitos coletivos, bem como a igualdade e a dignidade humana e, ao mesmo tempo, impõe limites ao exercício de tais direitos. Por outro lado, o cidadão, possui mecanismos de participação nas decisões do Estado e na elaboração das leis, através de representantes eleitos, podendo limitar o poder do Estado em um sistema de freios e contrapesos. Em suma, o liberalismo como um sistema que preza pela liberdade, que surgiu inserido em um contexto social em que o soberano concentrava em suas mãos um poder absoluto, incontestável, ilimitado, surge para atender aos anseios da sociedade por uma maior liberdade. Com o passar do tempo, o liberalismo despertou na sociedade a necessidade de outro valor: a igualdade. Em atendimento a tão justo desejo, o de tratamento igualitário entre particulares e na relação Estado/particular, ocorre a transição do Estado Liberal para o Estado Social. Este, por sua vez, acaba por intervir nos aspectos econômicos e sociais, limitando a ação do próprio Estado e concedendo aos cidadãos direitos relacionados aos serviços prestados pelo Estado, no intuito de realizar o bem-comum e a justiça social. Todavia, o Estado não se encontrava preparado para atender à demanda de anseios sociais, ensejando um novo modelo político de Estado: o Estado Democrático de Direito, capaz de conciliar a liberdade individual com os anseios da sociedade por maior justiça social. O Estado Democrático de Direito passa a ser o ponto de equilíbrio entre o abuso de poder do Estado e os direitos do cidadão, estabelecendo limites à atuação do Estado, bem como aos direitos do cidadão, buscando atender aos anseios da sociedade. Ao estabelecer limites aos direitos de liberdade, emerge a obrigação de abster-se de determinados atos, tanto para o Poder Público, quanto para o particular. Nesta senda, o direito de propriedade é delimitado pela responsabilidade social, geradora do dever de respeito social no seu exercício190. democrático, originariamente pensado para impedir cualquier abuso de poder, se convierte así en la justificación de un nuevo poder arbitrário. Sin embargo, la autoridad de la decisión democrática deriva de la circunstancia de haber sido adoptada por la mayoría de la colectividad que se mantiene compacta en virtud de ciertas creencias comunes a los más de sus miembros; siendo, por outra parte, indispensable que dicha mayoría se someta a los principios comunes incluso cuando su inmediato interés consista em violarlos.” Tradução livre do autor: “A soberania popular é a concepção básica dos democratas doutrinários. Significa, segundo eles, que o governo da maioria é ilimitado e ilimitável. O ideal democrático, originariamente pensado para impedir qualquer abuso de poder, se converte assim na justificação de um novo poder arbitrário. No entanto, a autoridade da decisão democrática deriva da circunstância de haver sido adotada pela maioria da coletividade que se mantém compacta em virtude de certas crenças comuns à maioria de seus membros; sendo, por outro lado, indispensável que dita maioria se submeta aos princípios comuns inclusive quando seu imediato interesse consista em violá- los.” 190 ZIPPELIUS, Reinhold. op. cit., p. 450-451: “A correlação entre liberdade e obrigação assume a expressão mais notória nos deveres com que se definem os limites dos direitos de liberdade e, associados com estes, os 83 O liberalismo do século XIX concedia aos cidadãos a liberdade de contratar e adquirir propriedades. A aquisição de propriedade por um determinado cidadão, em princípio, exclui a possibilidade de exercício do direito de propriedade por todos os demais cidadãos, e nisto se consubstancia o caráter de uma propriedade privada. Para a sociedade liberal do século XIX, não havia ainda a preocupação com a aquisição exagerada de bens imóveis por poucas pessoas, que resultava em um número cada vez maior de cidadãos impedidos de exercer sua liberdade de contratar e dispor191. A função social da propriedade pode ser vista como uma projeção da reação anti- individualista do exercício da propriedade, uma reação contra o abuso do exercício do direito de propriedade, realizado através de limitações fixadas no interesse público, com o fim de alcançar o seu uso racional.192 O direito de propriedade, como direito subjetivo, é dominado pelo interesse econômico do proprietário. A utilização do direito de propriedade deverá satisfazer sua finalidade essencial: o interesse econômico do proprietário. Caso contrário, o exercício do direito de propriedade, sem a satisfação dos interesses econômicos do proprietário, poderá ser considerado abuso de direito193. O homem é naturalmente livre, independente, isolado e titular de direitos inalienáveis e imprescritíveis, os chamados direitos naturais. Todavia, as sociedades se formaram pela aproximação dos indivíduos, com a finalidade de proteger seus direitos individuais naturais. Desse modo, o Estado não possui outra finalidade senão a obrigação de proteger e garantir os direitos dos indivíduos. Aos indivíduos cabe a obrigação de respeitar os direitos dos demais, deveres de abster-se de determinados actos. Assim, p. ex., o direito à propriedade é delimitado pela responsabilidade social inerente à propriedade, e, em especial, pelo dever ao respeito social no exercício da propriedade;...” (p. 450-451). 191 GONDINHO. André Osorio. Função social da propriedade. In: TEPEDINO, Gustavo (coord.). Problemas de direito civil-constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2000, p. 401: “O sujeito de direito do Estado Liberal é caracterizado pelo seu poder de contratar e dispor. O binômio contrato-propriedade é a marca principal do individualismo então reinante. O homem era livre para contratar, criando o direito de suas relações jurídicas privadas, e adquirir propriedade, apoderando-se de suas riquezas com a exclusão dos demais sujeitos de direito. Não importava para aquela sociedade que a liberdade contratual e a força máxima da propriedade resultassem em um número cada vez maior de sujeitos de direito despidos, materialmente, da possibilidade de contratar e dispor.” 192 FACHIN, Luiz Edson. A função social da posse e a propriedade contemporânea. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 1988, p. 19: ”A função social da propriedade corresponde a limitações fixadas no interesse público e tem por finalidade instituir um conceito dinâmico de propriedade em substituição ao conceito estático, representando uma projeção da reação anti-individualista.” 193 ESCRIBANO COLLADO, Pedro. La propiedad privada urbana: encuadramiento y regimen. Madrid: Montecorvo, 1979, p. 88: “El derecho de propiedad, desde esta óptica, como derecho subjetivo, parece dominado por el interés económico del propietario, que constituye su finalidad primordial. Interés que es preciso satisfacer si se quiere utilizar el derecho de acuerdo con su definición legal. Una utilización que desconozca este principio constituye un ejercicio desviado de su finalidad esencial; es, por tanto, un ejercicio abusivo.” Tradução livre do autor: “O direito de propriedade, a partir desta ótica, como direito subjetivo, parece dominado pelo interesse econômico do proprietário, que constitui sua finalidade primordial. Interesse que é preciso satisfazer se se quer utilizar o direito de acordo com sua definição legal. Uma utilização que desconheça este princípio constitui um exercício desviado de sua finalidade essencial; é, portanto, um exercício abusivo.” 84 tendo liberdade em suas ações, limitados a poder fazer tudo o que não prejudique o direito dos demais194. Esta concepção individualista do direito não pode mais prosperar nas sociedades modernas. A concepção individualista do direito deve desaparecer por ser insustentável e estranha à realidade. O homem é um ser social e deve viver em sociedade. “Hablar de derechos anteriores a la sociedad es hablar de la nada.”195 Para Escribano Collado196, o homem possui duas exceções naturais ao exercício do direito de propriedade: o proprietário não teria o direito de utilizar a coisa de forma imoral ou contrário à razão; a utilização da coisa não poderia atentar contra o direito dos demais. Em ambas as hipóteses, haveria o risco de se criar a desordem e a insegurança para os cidadãos, culminando no uso irracional da propriedade. Vivendo em sociedade, o homem deve abandonar suas concepções individualistas de direito privado quando estas se defrontarem com direitos inerentes a toda a sociedade. Esta nova concepção resultou na consagração da noção de função social da propriedade197. 194 DUGUIT, Leon. Las transformaciones del derecho público y privado. Tradução de Adolfo G. Posada e Ramón Jaén. Buenos Aires: Heliasta, 2001, p. 177: “Impone al Estado la obligación de proteger y de garantir los derechos del individuo; le prohíbe hacer leyes o realizar actos que atenten contra ellos. Impone a cada cual la obligación de respetar los derechos de los demás. El limite de la actividad de cada cual tiene por fundamento y por medida la protección de los derechos de todos.” Tradução livre do autor: “Impõe ao Estado a obrigação de proteger e de garantir os direitos do indivíduo; é proibido ao Estado fazer leis ou realizar atos que atentem contra os direitos do indivíduo. Impõe a cada qual a obrigação de respeitar os direitos dos demais. O limite da atividade de cada qual tem por fundamento e por medida a proteção dos direitos de todos.” 195 Idem, p. 178. Tradução livre do autor: “falar de direitos anteriores à sociedade é falar do nada.” 196 ESCRIBANO COLLADO, Pedro. op. cit., p. 75: “Las excepciones al derecho de propiedad eran fundamentalmente dos. En primer lugar, el propietario no tenía derecho a efectuar un uso inmoral de la cosa, o contrario a la razón. En segundo lugar, tampoco tenía derecho a atentar contra los derechos de los demás. En realidad, las excepciones se reducen a declarar como excluído un uso irracional de la libertad y de los derechos derivados de ella, que implicaran un desorden o una inseguridad para los individuos, aspectos éstos absolutamente irracionales. De aquí que la medida de la libertad, sin perjuicio de otros limites de tipo religioso o moral, sea la razón.” Tradução livre do autor: “As exceções ao direito de propriedade eram fundamentalmente duas. Em primeiro lugar, o proprietário não teria direito a efetuar um uso imoral da coisa, ou contrário à razão. Em segundo lugar, tampouco teria direito a atentar contra os direitos dos demais. Na realidade, as exceções se reduzem a declarar como excluído um uso irracional da liberdade e dos direitos dela derivados, que implicam uma desordem ou uma insegurança para os indivíduos, aspectos estes absolutamente irracionais. Daqui que a medida da liberdade, sem prejuízo de outros limites de tipo religioso ou moral, seja a razão.” 197 FIGUEIREDO, Guilherme José Purvin de. A propriedade no direito ambiental. 3. ed. São Paulo: RT, 2008, p. 83: “Foi a necessidade de superar as concepções individualistas do direito privado, nas quais o homem é tomado isoladamente – destacado de seus semelhantes – que resultou na consagração da noção da função social da propriedade.” 85 Na concepção de Duguit198, todo homem possui, na sociedade, uma certa função a cumprir, uma certa tarefa a executar. No sistema individualista, a liberdade consiste em fazer tudo o que não prejudicar a outrem, porém, no sistema da função social, o homem tem o dever de desenvolver, da melhor maneira possível, sua individualidade física, intelectual e moral, para cumprir sua função social. Além disso, para Duguit, a propriedade não é um direito, a propriedade é uma função social199. O proprietário, por ser possuidor de uma riqueza, deve cumprir sua função social. Enquanto a cumpre, seus atos de proprietário restam protegidos. Se não a cumpre ou a cumpre mal, é legítima a intervenção dos governantes para fazê-lo cumpri- la. Na base da função social da propriedade, encontra-se a solidariedade ou interdependência social. Os homens se reúnem em sociedade e vivem em sociedade pelas semelhanças ou pelas diferenças em suas necessidades, pois somente a união de pessoas que possuem as mesmas necessidades ou a união de pessoas que possuem necessidades diversas é capaz de disponibilizar a ajuda necessária para alcançar seus objetivos comuns ou a satisfação de suas necessidades diversas. Por ser membro de uma sociedade, o homem tem a obrigação, de fato, de cumprir uma função social, de modo que os atos que realizar para este fim terão um valor social e serão socialmente protegidos. Ainda, com relação à concepção de Duguit, a propriedade é uma instituição que se formou para atender a uma necessidade econômica, a fim de afetar certas riquezas a fins individuais ou coletivos definidos que, em sendo realizados, resultem sancionados e, em sendo contrariados, sejam reprimidos socialmente200. Sempre que o exercício da propriedade não corresponder ao atendimento à sua função social, ela será socialmente reprimida. A proteção ao direito de propriedade depende do atendimento de sua função social. Neste sentido lembramos da afirmação de Duguit, já mencionada, de que a propriedade deixa de ser um direito do indivíduo para ser uma função social. 198 DUGUIT, Leon. Las transformaciones del derecho público y privado. Tradução de Adolfo G. Posada e Ramón Jaén. Buenos Aires: Heliasta, 2001, p. 179: “Todo hombre tiene una función social que llenar, y por consecuencia tiene el deber social de desempeñarla; tiene el deber de desenvolver, tan completamente como le sea posible, su individualidad física, intelectual y moral para cumplir esa función de la mejor manera y nadie puede entorpecer esse libre desenvolvimiento.” Tradução livre do autor: “Todo homem tem uma função social a cumprir, e por consequência tem o dever social de desempenhá-la; tem o dever de desenvolver, da melhor maneira possível, sua individualidade física, intelectual e moral para cumprir essa função da melhor maneira e ninguém pode entravar esse livre desenvolvimento.” 199 Idem, p. 179: “Pero la propiedad no es un derecho; es una función social.” Tradução livre do autor: “Mas a propriedade não é um direito; é uma função social.” 200 Idem, p. 236: “Dos cosas; es necesario primero, de una manera general, que todo acto realizado conforme a uno de esos fines sea sancionado; y en segundo lugar, es preciso que todos los actos que le sean contrarios se repriman socialmente.” Tradução livre do autor: “Duas coisas; é necessário primeiro, de uma maneira geral, que todo ato realizado conforme a um desses fins seja sancionado; e em segundo lugar, é preciso que todos os atos que lhe sejam contrários se reprimam socialmente.” 86 No campo patrimonial, portanto, a propriedade não é mais absoluta. Nas palavras de Figueiredo201: Transportando esta teoria para o campo patrimonial, Duguit sustenta que a propriedade não tem mais um caráter absoluto e intangível. O proprietário, pelo fato de possuir uma riqueza, deve cumprir uma função social. Seus direitos de proprietário só estarão protegidos se ele cultivar a terra ou se não permitir a ruína de sua casa. Caso contrário, será legítima a intervenção dos governantes no sentido de obrigarem o cumprimento, pelo proprietário, de sua função social. O conceito de função social pode ser analisado sob dois prismas. Desse modo, sob o prisma meramente econômico, a função social da propriedade está diretamente ligada ao efeito econômico da produtividade dos bens, ao exigir do proprietário o máximo de produtividade, a fim de evitar terras improdutivas e trazer o máximo de benefícios para a produção nacional202. Todavia, por um segundo prisma, a função social da propriedade não pode considerar apenas aspectos econômicos em detrimento de aspectos que dizem respeito à solidariedade social. Neste sentido, embora a produtividade seja importante para a nação, deve-se, também, prestigiar o acesso de trabalhadores à terra, através de formas mais estáveis de posse e aproveitamento da mesma203. A apropriação do solo para fins meramente especulativos possui consequências, como a instabilidade social e, com ela, a violência, a criminalidade, a concentração da riqueza nas mãos de poucos e o aumento da miséria, além de obstar a realização dos direitos fundamentais, como o de moradia e o de trabalho. A utilização irracional da terra e do espaço urbano é a principal causa da violência social. O direito de propriedade deve ser exercido com 201 FIGUEIREDO, Guilherme José Purvin de. Op. Cit., p. 83. 202 ESCRIBANO COLLADO. op. cit., p. 105: “De forma sintética, puede señalarse que el concepto de función social que se adopta en esse momento está intimamente ligado el efecto económico de la productividad de los bienes, como . Puede decirse que esta nota agota por sí sola el contenido del concepto. En principio, el deber del propietario de bienes de producción de obtener un máximo rendimiento de ellos, no dejándolos improductivos, no transforma en absoluto el significado del derecho de propiedad. Es más, éste permanece dominado por un principio individualista, en cuanto el único elemento trascendente lo constituye .” Tradução livre do autor: “De forma sintética, pode-se assinalar que o conceito de função social que se adota nesse momento está intimamente ligado ao efeito econômico da produtividade dos bens, como . Pode dizer-se que esta nota esgota por si só o conteúdo do conceito. Em princípio, o dever do proprietário de bens de produção de obter um máximo rendimento deles, não deixando-os improdutivos, não transforma em absoluto o significado do direito de propriedade. É mais, este permanece dominado por um princípio individualista, enquanto o único elemento transcendente o constitui .” 203 Idem, p. 106: “La distancia que media entre la función social como productividad y la función social como manifestación de la solidariedad social la representa sin duda alguna el régimen de la tierra. Mientras ésta última persigue el acceso del campesino, del que trabaja la tierra, a formas más estables de tenencia y aprovechamiento de tierras, aquella persigue como única finalidad concreta el incremento de la producción nacional.” Tradução livre do autor: “A distância que medeia entre a função social como produtividade e a função social mo manifestação da solidariedade social a representa sem dúvida alguma o regime da terra. Enquanto esta última persegue o acesso do camponês, do que trabalha a terra, a formas mais estáveis de posse e aproveitamento de terras, aquela persegue como única finalidade concreta o incremento da produção nacional.” 87 solidariedade, em função da sociedade e não deve ser exercido para servir de reserva de capital e enriquecimento de poucos204. O combate à especulação imobiliária, fruto do individualismo, dar-se-á pelo cumprimento da função social da propriedade. A vida humana se desenvolve e se sustenta da terra, e o atendimento à função social da propriedade, através do uso racional da terra, é indispensável para assegurar o sustento da vida humana, inadmitindo-se a aquisição de bens imóveis para mera formação de capital. A construção de uma sociedade livre, justa e solidária, a erradicação da pobreza e da marginalização, bem como a redução das desigualdades sociais e regionais, que são objetivos da República Federativa do Brasil, consoante o artigo 3°, I e III, da CF/88, dependem também do tratamento dado ao instituto da propriedade. A propriedade deve atender aos interesses da sociedade e não exclusivamente ao interesse do seu único proprietário. 3.3 A função social da propriedade e o meio ambiente A humanidade, ao longo da história, nunca demonstrou interesse pelo respeito à natureza, em sentido amplo. Os avanços científicos e tecnológicos ampliaram consideravelmente o impacto industrial no meio ambiente. As lamentáveis condições de vida nas grandes cidades e a intensificação da utilização dos recursos naturais suscitaram a preocupação sobre os riscos ocasionados pela intensa pressão de uma população em constante crescimento sobre o meio ambiente. Alguns doutrinadores dos anos sessenta sugeriam a necessidade de limitar o desenvolvimento econômico ante a progressiva diminuição dos recursos disponíveis e a deterioração continuada dos sistemas naturais205. 204 GONDINHO. André Osorio. op. cit., p. 399: “O direito de propriedade, embora não seja concedido ou reconhecido em função da sociedade, deve ser exercido em função desta, produzindo e abrigando, e não servindo de reserva de capital a enriquecer o seu domino [...].” 205 MATEO, Ramón Martín. Tratado de derecho ambiental. Madrid: Trivium, 1991. v. I. p. 97: “Las lamentabels condiciones de vida en las grandes urbes y la masiva utilización de recursos naturales suscitaron primeramente la alarma de algunos pensadores aislados que previdentemente advirtieron a finales de los sesenta de los riesgos implicados por la intensa presión de una población en aumento sobre el ambiente y sugiriendo la aparente necesidad de limitar el desarrollo económico ante la progresiva disminuición de los recursos disponibles y el deterioro continuado de los sistemas naturales.” Tradução livre do autor: “As lamentáveis condições de vida nas grandes cidades e a massiva utilização de recursos naturais suscitaram primeiramente o alarme de alguns pensadores isolados que previdentemente advertiram ao final dos sessenta dos riscos implicados pela intensa pressão de uma população em crescimento sobre o ambiente e sugerindo a aparente necessidade de limitar o desenvolvimento econômico ante a progressiva diminuição dos recursos disponíveis e a deterioração continuada dos sistemas naturais.” 88 O exercício do direito de propriedade sem limitações de cunho ambiental, como outrora era permitido pela legislação, de forma predatória e não sustentável dos recursos naturais, restrito apenas aos direitos de vizinhança e às normas de polícia sanitária, acabou por gerar a crise ambiental em que nos encontramos. O proprietário possuía um domínio absoluto sobre sua propriedade. A ele tudo era permitido, inclusive destruir o que lhe pertencia. O bem imóvel constitui uma das formas mais seguras de investimento, já que, com o crescimento populacional e consequente escassez de imóveis disponíveis, a tendência é sua valorização crescente. Além disso, o montante financeiro aplicado em bens imóveis representa quantias vultosas que formam o capital, o patrimônio de pessoas físicas e jurídicas. Daí vê-se a importância do direito de propriedade diante do regime capitalista do Estado Democrático de Direito em que vivemos. É fato comum a aplicação do resultado econômico de anos de trabalho em um bem imóvel, com a finalidade de simples formação de capital, devido à sua natural valorização e à segurança que o investimento oferece quando o imóvel é adquirido da forma correta. O crescimento do mercado imobiliário é indício de crescimento econômico do país. A proteção ao direito de propriedade é essencial à economia do país. Esta concepção da utilização do direito de propriedade para mera formação de capital, por si só, acentua o individualismo, excluindo a participação da sociedade nos benefícios que a propriedade lhes poderia proporcionar. A propriedade utilizada dessa forma contraria os interesses da sociedade e não atende à sua função social. Ao proprietário não mais é permitido utilizar sua propriedade apenas em seu próprio e exclusivo interesse. O exercício do direito de propriedade deve pautar-se pelo atendimento de sua função social, entendendo a propriedade como um direito limitado pela obrigação de seu uso de forma racional e sustentável. A Constituição da República Portuguesa, no seu artigo 62, contempla a propriedade nos termos da Constituição, isto é, a propriedade é salvaguardada em sintonia com os princípios, valores e critérios que a informam, admitindo que outras leis possam restringir o direito de propriedade, de modo que somente uma Constituição liberal radical pretenderia que a propriedade não pudesse ser restringida senão nos casos nela expressamente contemplados206. Todavia, qualquer pessoa tem o direito de não ser privado arbitrariamente de 206 MIRANDA, Jorge. Manual de direito constitucional: direitos fundamentais. 2. ed. Coimbra: Coimbra, 1998. Tomo IV. p. 468: “[...] o art. 62º contempla a propriedade, . Isto implica não tanto que ela só seja garantida dentro dos limites e dos termos previstos e definidos noutros lugares da Constituição quanto que ela não é reconhecida aprioristicamente, como princípio independente e autossuficiente; ela é reconhecida e salvaguardada no âmbito da Constituição e em sintonia com os princípios, valores e critérios que a enformam.” 89 seus direitos patrimoniais, devendo a Constituição garantir a segurança do proprietário contra privações arbitrárias. A requisição e a expropriação por utilidade pública somente podem ser efetuadas com base na lei e mediante pagamento de justa indenização207. No Brasil, a primeira Constituição Federal a vincular a propriedade ao interesse social foi a de 1934, ao determinar, em seu artigo 113, 17: “É garantido o direito de propriedade, que não poderá ser exercido contra o interesse social ou collectivo, na forma que a lei determinar [...]”. Posteriormente, a Constituição Federal de 1946 condicionou o exercício do direito de propriedade ao bem-estar social, incentivando a justa distribuição de terras, conforme se depreende de seu artigo 147: “O uso da propriedade será condicionado ao bem estar social. A lei poderá, com observância no disposto no artigo 141, §16, promover a justa distribuição da propriedade, com igual oportunidade para todos.”. Foi a Constituição Federal de 1967 que utilizou, pela primeira vez, a expressão “função social”, como princípio fundamental da ordem econômica e social, de acordo com o seu artigo 157, a seguir: “A ordem econômica tem por fim realizar a justiça social, com base nos seguintes princípios: I – [...]; II – [...]; III – a função social da propriedade.” A evolução do instituto da função social da propriedade, até a Constituição Federal de 1967, demonstra a preocupação do constituinte em encontrar um mecanismo para frear os exageros cometidos ao se exercer o direito de propriedade, com uma preocupação voltada para os direitos e liberdades do cidadão. Tentava-se impedir o exercício ilimitado do direito de propriedade de modo a evitar prejudicar os direitos e liberdades de terceiros, dando ênfase ao predomínio do poder público, do bem comum e do bem-estar social sobre as liberdades e direitos individuais de um determinado cidadão proprietário. A Constituição Federal de 1967 erigiu a função social da propriedade a princípio fundamental da ordem econômica e social, porém, em seu texto até o momento, não se vislumbra uma vinculação da função social da propriedade ao dever de respeito e preservação do meio ambiente. Com o advento da Constituição Federal de 1988, a função social da propriedade foi colocada ao lado da garantia ao próprio direito de propriedade, como um princípio e um direito fundamental do cidadão, conforme consta dos incisos XXII e XXIII do artigo 5º, verbis: 207 Idem, p. 468: “Seja como for, qualquer pessoa tem o direito de não ser privada arbitrariamente de qualquer direito patrimonial que esteja na sua esfera (art. 17º, nº 2, da Declaração Universal), ou arbitrariamente condicionada no seu exercício; e a requisição e a expropriação por utilidade pública só podem ser efectuadas com base na lei e mediante pagamento de justa indemnização (art. 62º, nº 2).” 90 Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: [...] XXII – é garantido o direito de propriedade; XXIII – a propriedade atenderá à sua função social. O inciso XXII do artigo 5º da Constituição Federal assegura o direito de propriedade como um direito individual do proprietário, ao passo que o inciso XXIII do mesmo dispositivo constitucional é uma garantia coletiva fundamental capaz de restringir os direitos do proprietário em prol da coletividade. Todas as pessoas, no desfrute de suas liberdades, estão sujeitas às limitações impostas pela lei, que tem por escopo fundamental assegurar o respeito aos direitos e liberdades dos demais, na busca do bem-estar social em um Estado Democrático de Direito. A Constituição Federal de 1988 garante o direito de propriedade, porém, desde que esta exerça a sua função social. Este é o espírito da função social da propriedade, ou seja, uma função social cujo conteúdo esteja embasado na dignidade da pessoa humana, obedecendo aos objetivos fundamentais da República, como a erradicação da pobreza e da marginalização, bem como contribuindo para a redução das desigualdades sociais e regionais e para o desenvolvimento nacional. O direito de propriedade não pode mais ser visto como um direito absoluto. Embora continue a ser um direito eminentemente privado que garante ao seu titular o direito de usar, gozar e dispor de sua propriedade, o direito de propriedade deve ser exercido em consonância com os ditames constitucionais e legais, de modo a prestigiar a sua função social. A função social resguarda não a titularidade do direito, mas o seu exercício, não a faculdade de disposição, mas o gozo. A propriedade privada é garantida e a função social não parece incompatível com o princípio da inviolabilidade de direito, da liberdade. A função social da propriedade afeta o exercício da propriedade, e isso deve ser socialmente avaliado com relação a situações externas que impõem ao proprietário o uso da terra a serviço da coletividade208. 208 ALPA, Guido. Istituzioni di diritto privato: Problemi. Torino: Utet. 2002, p. 232: “Si perviene cosi alla conclusione che la funzione sociale riguarda non la titolarittà del diritto, ma il suo esercizio, non la facoltà di disposizione, ma il godimento: la proprietà privata dunque è garantita e la funzione sociale non sembra incompatible con il tradizionale principio della inviolabilità del diritto e quindi della libertà. Ma la formulazione interessa soprattutto l’esercizio della proprietà, e questo deve essere socialmente valutato, cioè in relazione a situazioni esterne che impongono al proprietario di usare la terra a servizio della collettività.” Tradução livre do autor: “Se chega à conclusão que a função social resguarda não a totalidade do direito, mas o seu exercício, não a faculdade de disposição, mas o gozo: a propriedade privada assim é garantida e a função social não parece incompatível com o tradicional princípio da inviolabilidade do direito e da liberdade. Mas a função social afeta sobretudo o exercício da propriedade, e isso deve ser socialmente valorado, isto é, em relação 91 Diante da função social da propriedade, de todos os comportamentos que o proprietário pode ter, somente é considerado digno e legítimo o comportamento em que o proprietário, além de utilizar a propriedade para a realização de seus próprios interesses, realiza, ao mesmo tempo, a exigência da necessidade de atendimento à função social, indicada na Constituição Federal. O proprietário pode escolher entre os vários usos do bem, pode buscar nesta escolha o próprio interesse, mas entre as várias formas de utilização do bem, somente é protegido aquele que contemporaneamente seja socialmente aceitável. 209 É inerente ao instituto da propriedade, dentre outros, os poderes de uso e fruição do bem. O proprietário, portanto, possui os poderes de uso e fruição. No entanto, tais poderes podem ser mais ou menos amplos, dependendo, principalmente, da espécie de bem objeto da propriedade. A utilização de um bem móvel, normalmente, não gera efeitos diretos para a sociedade. Se o proprietário de um bem móvel não está fazendo bom uso dele, poderá transferi-lo a terceiro, através da venda. Em se tratando de bem imóvel, o mau uso da propriedade pode gerar efeitos maléficos à sociedade, inclusive prejuízos de ordem ambiental. Por este motivo, espera-se que o proprietário utilize seu direito de propriedade da forma mais benéfica, tanto para ele quanto para a sociedade. A propriedade privada de bens imóveis retira a possibilidade de utilização do bem de todas as outras pessoas, o que incentiva o proprietário a fazer bom uso de sua propriedade. O fato de ser proprietário incentiva a utilização do bem de forma que este gere a maior utilidade possível ao seu dono, pois, mesmo que não existisse propriedade privada, o consumo de um bem por uma pessoa continuaria a excluir a possibilidade de consumo do mesmo bem por outras210. Neste sentido, a função social da propriedade é fundamental para garantir a todos o direito ao acesso à propriedade privada, possibilitando sua utilização correta de acordo com os benefícios que ela pode gerar à sociedade e ao meio ambiente. a situação externa que impõe ao proprietário o uso da terra a serviço da coletividade.” 209 BARCELLONA, Pietro. Diritto privato e società moderna. Napoli: Jovene, 1996, p. 300: “Fra tutti i comportamenti che il proprietario può astrattamente tenere, è da considerare meritevole e legittimo quello che, oltre a realizzare il suo interesse, realizza contemporaneamente le esigenze di socialità indicate dalla Costituzione. Il proprietario può scegliere tra i vari usi del bene, può perseguire in questa scelta il próprio interesse, ma fra i vari moduli di utilizzazione del bene è protetto soltanto quello contemporaneamente sia socialmente accettable.” Tradução livre do autor: “De todos os comportamentos que o proprietário possa abstratamente ter, é de considerar-se digno e legítimo aquele que, além de realizar o seu interesse, realiza contemporaneamente a exigência indicada da Constituição. O proprietário pode escolher entre os vários usos do bem, pode perseguir nesta escolha o próprio interesse, mas entre as várias formas de utilização do bem somente é protegido aquele que contemporaneamente seja socialmente aceitável.” 210 RODRIGUES, Vasco. Análise económica do direito: uma introdução. Coimbra: Almedina, 2007, p. 55: “Em contrapartida, a propriedade privada cria um poderoso incentivo para que aos bens seja dada a utilização que gera maior utilidade. Note que, mesmo que não existisse propriedade privada, em geral, o consumo de um bem por uma pessoa continuaria a excluir a possibilidade do seu consumo por outras.” 92 A função social da propriedade, pela simples análise da expressão, nos traz a ideia de que essa deverá ser utilizada em prol da sociedade, ou seja, a propriedade deverá atender aos reclamos da sociedade, devendo ser exercida em função da própria sociedade e não como mera reserva de capital ou especulação econômica, fruto do individualismo, como forma de enriquecimento de seu proprietário, em detrimento dos objetivos fundamentais de nossa República de construir uma sociedade justa e solidária. O artigo 170 da Constituição Federal nos ensina que a ordem econômica é fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa e que deve assegurar a todos uma existência digna, em conformidade com os ditames da justiça social. Todo cidadão tem direito a exercer sua livre iniciativa e, através dela, trabalhar, gerar riquezas e, com isso, ter acesso a uma vida digna, fruto de seu trabalho. Ao Estado cabe a promoção da justiça social, através de construções políticas, a fim de proporcionar igualdade de direitos e de oportunidades aos cidadãos, diminuindo as desigualdades sociais e econômicas211. Como corolário deste dever do Estado, encontra-se a função social da propriedade, que busca a utilização racional da mesma, a fim de evitar as desigualdades sociais e econômicas (CF/88, art. 170, II e III). O direito de propriedade sofreu e continuará sofrendo profundas mudanças para se adequar às novas realidades econômicas. As constantes mutações que a relação homem/natureza vem sofrendo, devido às mudanças do comportamento humano, frente às novas circunstâncias sociais, tecnológicas e políticas na comunidade, exigem do homem uma nova postura ética com relação ao exercício do direito de propriedade212. O próprio direito de propriedade deve estar em constante atualização para se adequar às novas realidades proporcionadas pelo novo modelo de sociedade que se desenha, frente à busca incessante pelo crescimento econômico a qualquer custo e às novas tecnologias que contribuem para uma mudança no estilo de vida do homem. A atividade econômica exercida pelo homem, fundada na valorização do trabalho e na livre iniciativa, além de, obrigatoriamente, pautar-se pelo atendimento à função social da propriedade, deve buscar a defesa do meio ambiente, atribuindo tratamento diferenciado, conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de elaboração e 211 GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988. 13. ed. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 224: “Justiça social, inicialmente, quer significar superação das injustiças na repartição, a nível pessoal, do produto econômico.” 212 FIGUEIREDO, Guilherme José Purvin de. A propriedade no direito ambiental. 3. ed. São Paulo: RT, 2008, p. 50: “[...] o direito de propriedade necessita de constante atualização, na medida em que as circunstâncias sociais, tecnológicas e políticas na comunidade, bem como as próprias indagações éticas que a relação homem/natureza inevitavelmente suscita, encontram-se em incessante modificação.” 93 prestação (Art. 170, VI, CF/88). A Constituição Federal propõe um novo significado à ordem econômica, com novos objetivos, de modo que a “apropriação sobre os recursos naturais passa a ser orientado por um conjunto de regras que complementam um sistema que vigia, até então, baseado na proteção da propriedade privada sobre os bens”213. A apropriação de bens ambientais, nesta nova concepção da ordem econômica, passa por transformações com relação à atribuição de valor aos bens objeto de apropriação. A atribuição de valor passa a considerar aspectos que antes passavam à margem das regras de mercado, como a defesa do meio ambiente e a função social da propriedade, que passam a condicionar a forma de valoração de bens para sua apropriação. Conforme Ayala214, “qualquer relação de apropriação deve permitir o cumprimento de duas funções distintas: uma individual (dimensão econômica da propriedade), e uma coletiva (dimensão sócio-ambiental da propriedade).” Tais funções nem sempre ocorrem simultaneamente. A apropriação de bens ambientais, nesta perspectiva, atende ao comando constitucional que ambiciona uma relação simultânea entre o direito à propriedade privada, individual (em sua dimensão econômica) e o exercício da mesma propriedade de forma racional, sustentável, atendendo aos anseios da coletividade (na sua dimensão sócio- ambiental). A Constituição Federal, portanto, não almeja o fim da propriedade privada, mas, sim, a sua proteção condicionada ao atendimento de sua função social. A função social não transforma a propriedade em um patrimônio coletivo; apenas o seu exercício está condicionado aos interesses sociais. Pode-se dizer, portanto, que somente merece proteção constitucional a propriedade que cumpre sua função social, em sua dimensão econômica e sócio-ambiental. A apropriação privada, ou seja, a propriedade privada, não pode realizar-se no interesse exclusivo do proprietário. O art. 29º da Declaração Universal dos Direitos do Homem afirma que o indivíduo tem deveres para com a comunidade e, no gozo dos direitos e das liberdades, “ninguém está sujeito senão às limitações estabelecidas pela lei com vista exclusivamente a promover o reconhecimento e o respeito dos direitos e liberdades dos outros e a fim de satisfazer as justas exigências da moral, da ordem pública e do bem-estar numa sociedade democrática.”215 As relações de apropriação privada devem atender uma função econômica e uma função ambiental, a fim de manter o equilíbrio ecológico fundamental ao meio ambiente sadio 213 AYALA, Patryck de Araújo. Deveres ecológicos e regulamentação da atividade econômica na Constituição brasileira. In: CANOTILHO, José Joaquim Gomes; LEITE, José Rubens Morato (org.). Direito constitucional ambiental brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 264. 214 Idem, p. 265. 215 MIRANDA, Jorge. op. cit., p. 265. 94 para as presentes e futuras gerações. A função social da propriedade, hodiernamente, não se resume apenas ao uso racional da propriedade, no sentido de dar uma destinação econômica ao bem ou de gerar frutos econômicos para toda a sociedade. Como já referido alhures, a função social da propriedade, atualmente, exige do proprietário o exercício do direito de propriedade de forma sustentável. A Constituição Federal, além de determinar o convívio pacífico entre a propriedade privada, a iniciativa privada, o atendimento à função social da propriedade e a proteção do meio ambiente, também almeja a proteção do meio ambiente ecologicamente equilibrado, como bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações. Tudo isso se consubstancia na interpretação sistemática entre os dispositivos do art. 170, II, III e VI, e do art. 225, da Constituição Federal de 1988. A Constituição instituiu um regime de exploração de forma condicionada e limitada da propriedade, com um forte componente ambiental, alterando-se o paradigma clássico da exploração econômica dos bens ambientais. A exploração da propriedade passa do direito pleno de explorar, limitado apenas ao direito dos vizinhos, para o direito de explorar somente e quando respeitada a função sócio-ambiental da propriedade216. A função social da propriedade não pode bastar-se com meras abstenções do proprietário, mas deve pautar-se, também, pela utilização responsável dos recursos naturais. A função social é imanente ao direito de propriedade. O proprietário, ao lesionar o bem comum, abusa de seu direito de propriedade e acaba por desnaturalizar o seu conteúdo.217 O exercício do direito de propriedade deve ser de modo a satisfazer as necessidades do proprietário, sem comprometer os recursos naturais necessários para a subsistência das futuras gerações. Trata-se do princípio do desenvolvimento sustentável aplicado ao exercício do direito de propriedade. Tal princípio, segundo Mateo218, pretende satisfazer as necessidades 216 BENJAMIN, Antônio Herman. Constitucionalização do ambiente e ecologização da constituição brasileira. In: CANOTILHO, José Joaquim Gomes; LEITE, José Rubens Morato (org.). Direito constitucional ambiental brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 72: “A ecologização da Constituição, portanto, teve o intuito de, a um só tempo, instituir um regime de exploração limitada e condicionada (= sustentável) da propriedade e agregar à função social da propriedade, tanto urbana como rural, um forte e explícito componente ambiental. Os arts. 170, VI e 186, II, da Constituição brasileira, inserem-se nessa linha de pensamento de alteração radical do paradigma clássico da exploração econômica dos chamados bens ambientais. Com novo perfil, o regime da propriedade passa do direito pleno de explorar, respeitado o direito dos vizinhos, para o direito de explorar, só e quando respeitados a saúde humana e os processos e funções ecológicos essenciais.” 217 FERNANDEZ, Maria Elizabeth Moreira. Direito ao ambiente e propriedade privada: aproximação ao estudo da estrutura e das consequências das “leis-reserva” portadoras de vínculos ambientais. Coimbra: Coimbra, 2001, p., 193: “A função social é uma qualidade imanente ao direito de propriedade na exacta medida em que quando o exercício do direito de propriedade lesiona o bem comum não se exerce o direito de propriedade em conformidade com sua própria natureza, mas abusando do mesmo ou desnaturalizando o seu conteúdo.” 95 do presente, sem comprometer os recursos equivalentes dos quais outras gerações precisarão no futuro. É necessário, na opinião de Ost219, um regime jurídico preocupado em canalizar os modos de produção e de consumo para vias que preservem as capacidades de regeneração dos recursos naturais, e preocupado em impor ao cidadão a responsabilidade de assumir uma conduta ética, a fim de garantir a igualdade das gerações no acesso aos recursos naturais. A Conferência de Estocolmo, de 1972, foi o ponto de partida para a conscientização da população mundial sobre a obrigação de todos, individualmente, sobre a necessidade de preservação e proteção do meio ambiente, para as presentes e futuras gerações, a fim de garantir o mínimo de qualidade de vida e uma vida digna220. A correta utilização dos bens ambientais e o correto exercício do direito de propriedade é fundamental para a garantia da qualidade de vida e para uma vida com dignidade. A Declaração de Estocolmo, de 1972, elevou o direito ao meio ambiente sadio ao nível de direito fundamental do ser humano, logo no seu primeiro princípio, verbis221: O homem tem o direito fundamental à liberdade, à igualdade e ao desfrute de condições de vida adequada em um meio, cuja qualidade lhe permita levar uma vida digna e gozar de bem-estar, e tem a solene obrigação de proteger e melhorar esse meio para as gerações presentes e futuras. Todo ser humano tem direito ao meio ambiente sadio, como um direito fundamental, que lhe permita ter qualidade de vida e levar uma vida digna, porém com a obrigação de 218 MATEO, Ramón Martín. op. cit., p. 384: “Según el Informe mencionado, el desarrollo sostenible pretende satisfacer las necesidades del presente sin comprometer los recursos equivalentes que precisarán en el futuro otras generaciones.” Tradução livre do autor: “Segundo o Informe mencionado, o desenvolvimento sustentável pretende satisfazer as necessidades do presente sem comprometer os recursos equivalentes que precisarão no futuro outras gerações.” 219 OST, François. A natureza à margem da lei: a ecologia à prova do direito. Tradução de Joana Chaves. Lisboa: Instituto Piaget, 1995, p. 351: “Um estatuto do meio, que confira uma forma jurídica ao conceito económico de , isto é, que canalize os modos de produção e de consumo para vias que preservem as capacidades de regeneração dos recursos naturais, e, de forma mais geral, os ciclos, processos e equilíbrios, locais e globais, que asseguram a reprodução do ser vivo. Um regime jurídico que, finalmente, traduza a preocupação ética de assumir a nossa responsabilidade a respeito das gerações futuras, impondo nomeadamente uma moderação, tanto nas subtrações como nas rejeições, a fim de garantir a igualdade das gerações no acesso a recursos naturais de qualidade equiparável.” 220 MATEO, Ramón Martín. op. cit., p. 99: “Así, entre los Principios sancionados en la Conferencia de Estocolmo, se incluye en primer lugar la convicción común de que .” Tradução livre do autor: “Assim, entre os princípios sancionados na Conferência de Estocolmo, se inclui em primeiro lugar a convicção comum de que .” 221 DUARTE, Marise Costa de Souza. Meio ambiente sadio: direito fundamental. Curitiba: Juruá, 2003, p. 86. 96 proteger e melhorar o meio ambiente para as presentes e futuras gerações. Encontra-se inserto no próprio direito à vida o direito a um meio ambiente sadio, capaz de garantir a subsistência e o bem-estar das gerações presentes e futuras. O desenvolvimento somente poderá ser considerado sustentável na medida em que for capaz de responder às necessidades do presente, sem esgotar os recursos naturais, reservando um estoque desses recursos para as gerações futuras. Assim, a exploração dos recursos naturais não pode ser superior ao crescimento natural dos mesmos222. No direito português, a Constituição da República Portuguesa constitucionalizou o direito ao ambiente ecologicamente equilibrado ao positivar no seu artigo 66, nº 1, que “Todos têm direito a um ambiente de vida humano, sadio e ecologicamente equilibrado [...]”223. Esse direito, nessa perspectiva, pode ser entendido como um direito análogo aos direitos, liberdades e garantias que emergem do texto constitucional português, como forma de expressão dos direitos fundamentais. A condição de direito fundamental garante o direito de exigir do Estado, de pessoas coletivas públicas ou privadas, bem como do cidadão em geral, a abstenção de comportamentos que acabem por produzir lesões de natureza ambiental. Neste sentido, ao Estado cabe o dever de promoção de um ambiente de vida humano, sadio e ecologicamente equilibrado. Ao artigo 66 da Constituição Portuguesa corresponde o nosso artigo 225 da Constituição Federal de 1988, que, com redação semelhante ao da Constituição Portuguesa, constitucionaliza o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, incentivando sua defesa e proteção, não apenas a cargo do Estado, mas também a toda coletividade, justamente por se tratar de um direito fundamental do cidadão. Os direitos fundamentais, segundo proposição de Ferrajoli224, são todos aqueles direitos subjetivos que correspondem universalmente a todos os seres humanos enquanto dotados do status de pessoas, de cidadãos ou pessoas com capacidade de trabalhar. 222 BACHELET, Michel. Ingerência ecológica: direito ambiental em questão. Tradução de Fernanda Oliveira. Lisboa: Instituto Piaget, 1995, p. 185: “O princípio pode resumir-se assim: desenvolvimento admissível é aquele que responde às necessidades do presente sem comprometer a capacidade das gerações futuras para responderem às suas próprias necessidades; consequentemente, as retiradas do stock de recursos não devem ser superiores ao crescimento natural dos recursos e a sustentabilidade da exploração requer, no mínimo, a manutenção no tempo de um stock constante de capital natural.” 223 FERNANDEZ, Maria Elizabeth Moreira. op. cit., p. 22. 224 FERRAJOLI, Luigi. Derechos y garantias: la ley del más débil. 2. ed. Madrid: Editorial Trotta, 2001, p. 37: “Propogno una definición teórica, puramente formal o estructural, de : son todos aquellos derechos subjetivos que corresponden universalmente a los seres humanos en cuanto dotados del status de personas, de ciudadanos o personas con capacidad de obrar;”. Tradução livre do autor: “Proponho uma definição teórica, puramente formal ou estrutural, de : são todos aqueles direitos subjetivos que correspondem universalmente a os seres humanos enquanto dotados do status de pessoas, de cidadãos ou pessoas com capacidade de trabalhar.” 97 Os direitos fundamentais podem constar ou não da Constituição e podem ser enunciados e protegidos em normas qualificadas de constitucionais ou até mesmo em textos autônomos, dotados de valor constitucional ou até supraconstitucional225. Os direitos fundamentais, em sentido material, não são apenas os que as normas formalmente constitucionais anunciam, mas também podem ser direitos provenientes de outras fontes. O elenco não é taxativo, é cláusula aberta, não havendo uma tipicidade de direitos fundamentais226. O direito individual à propriedade foi um dos aspectos caracterizadores do constitucionalismo liberal, que defendia o direito à aquisição de bens indispensáveis para a subsistência dos indivíduos. Falava-se em um mínimo de bens capaz de garantir a liberdade e a dignidade da pessoa. Para isso, ter-se-ia que proteger não apenas os atuais proprietários e propriedades, mas também a coletividade. A propriedade assume o caráter de direito fundamental do indivíduo. Os progressos do constitucionalismo do século passado permitem configurar e construir, atualmente, o direito como um sistema artificial de garantias constitucionalmente preordenado à tutela dos direitos fundamentais227. Esses constituem a base da moderna igualdade, uma igualdade em direitos, que se diferenciam dos demais direitos por sua universalidade, ou seja, correspondem a todos na mesma medida, ao contrário do que ocorre com o direito de propriedade, com os direitos patrimoniais que, quando exercidos, acabam por excluir todos os demais. Além disso, os direitos fundamentais são inalienáveis e indisponíveis, diferentemente da propriedade228. 225 MIRANDA, Jorge. op. cit., p. 109: “Os direitos fundamentais, mesmo sendo formalmente constitucionais, podem surgir em conjunto com os demais institutos ou à sua margem; podem ser enunciados e protegidos em normas qualificadas de constitucionais, estruturalmente ligadas às demais normas, ou podem ser enunciados e protegidos em textos autônomos, embora dotados de valor constitucional ou até supraconstitucional.” 226 Idem, p. 152: “Não se depara, pois, no texto constitucional um elenco taxativo de direitos fundamentais. Pelo contrário, a enumeração (embora sem ser, em rigor, exemplificativa) é uma enumeração aberta, sempre pronta a ser preenchida ou completada através de novas faculdades para lá daquelas que se encontrem definidas ou especificadas em cada momento.” 227 FERRAJOLI, Luigi. op. cit., p. 19: “Si bien, respecto a la tradición iuspositivista clásica, la razón jurídica actual tiene la ventaja derivada de los progresos del constitucionalismo del siglo pasado, que le permiten configurar y construir hoy el derecho – bastante más que en el viejo Estado liberal – como un sistema artificial de garantías constitucionalmente preordenado a la tutela de los derechos fundamentales.” Tradução livre do autor: “Com relação à tradição juspositivista clássica, a razão jurídica atual tem a vantagem derivada dos progressos do constitucionalismo do século passado, que lhe permitem configurar e construir hoje o direito – muito mais que no velho Estado liberal – como um sistema artificial de garantias constitucionalmente preordenado à tutela dos direitos fundamentais.” 228 Ibidem, p. 23: “En efecto, los derechos fundamentales constituyen la base de la moderna igualdad, que es precisamente una igualdad en droits, en cuanto hacen visibles dos características estructurales que los diferencian de todos los demás derechos, a empezar por el de propiedad: sobre todo su universalidad, es decir, el hecho de que corresponden a todos y en la misma medida, al contrario de lo que sucede con los derechos patrimoniales, que son derechos excludendi alios, de los que un sujeto puede ser o no titular y de los que cada uno es titular con exclusión de los demás; en segundo lugar, su naturaleza de indisponibles e inalienables, tanto activa como pasiva, que los sustrae al mercado y a la decisión política, limitando la esfera de lo decidible de 98 A matéria pertinente ao direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem como à função social da propriedade, encontra-se acolhida no domínio dos direitos fundamentais, não apenas por sua inserção sistemática, mas sobretudo porque a garantia, a promoção e a efetivação desses direitos são princípios básicos do Estado Democrático de Direito229. O direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, portanto, constitui um direito fundamental do cidadão, embora previsto fora do catálogo dos direitos e garantias fundamentais, elencados no Título II, da Constituição Federal de 1988, devido à sua natureza de direito universal (direito de cada um e de todos), coletivo, inalienável, indisponível e transindividual. A constitucionalização do direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado traz benefícios de diversas ordens, principalmente no relacionamento do homem com a natureza. Ao direito de explorar a propriedade contrapõe-se o dever de não degradar. Trata-se da substituição do regime de explorabilidade plena e incondicionada pelo regime de explorabilidade limitada e condicionada230. A constitucionalização do meio ambiente, como se percebe, não ocorre apenas no Brasil. Os mais recentes modelos constitucionais elevam a tutela ambiental ao nível de um direito fundamental, em igualdade com outros direitos previstos na Constituição, como o direito de propriedade231. O direito de propriedade e o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado são alçados ao ponto máximo do ordenamento jurídico brasileiro, ao lado da função social da propriedade, que busca o equilíbrio entre ambos. uno y outra y vinculándola a su tutela y satisfacción.” Tradução livre do autor: “Em efeito, os direitos fundamentais constituem a base da moderna igualdade, que é precisamente uma igualdade em droits, enquanto se fazem visíveis duas caractrísticas estruturais que os diferenciam de todos os demais direitos, a começar pelo de propriedade: sobretudo sua universalidade, ou seja, o fato de que correspondem a todos e na mesma medida, ao contrário do que ocorre com os direitos patrimoniais, que são direitos excludendi alios, dos que um sujeito pode ser ou não titular e dos que cada um é titular com exclusão dos demais; em segundo lugar, sua natureza de indisponíveis e inalienáveis, tanto ativa como passiva, que os subtrai ao mercado e à decisão política, limitando a esfera das decisões de um e outro e vinculando-o à sua proteção e satisfação.” 229 MIRANDA, Jorge. op. cit., p. 475: “É duvidoso que possa falar-se num único, genérico e indiscriminado direito ao ambiente e, por certo, não existe um direito ao ordenamento do território. Porém, toda a matéria, directa ou indirectamente, vem a projetar-se no domínio dos direitos fundamentais não apenas por causa da sua inserção sistemática mas sobretudo por a garantia, a promoção e a efetivação desses direitos se encontrarem no cerne do Estado de Direito democrático.” 230 BENJAMIN, Antônio Herman. op. cit., p. 69: “No campo dos recursos naturais e do uso da terra, tal transformação implica a substituição definitiva do regime de explorabilidade plena e incondicionada (com limites mínimos e pulverizados, decorrentes, p. ex., das regras de polícia sanitária e da proteção dos vizinhos) pelo regime de explorabilidade limitada e condicionada (com limites amplos e sistemáticos centrados na manutenção dos processos ecológicos).” 231 Ibidem, p. 73: “Além da instituição desse inovador “dever de não degradar” e da ecologização do direito de propriedade, os mais recentes modelos constitucionais elevam a tutela ambiental ao nível não de um direito qualquer, mas de um direito fundamental, em pé de igualdade (ou mesmo, para alguns doutrinadores, em patamar superior) com outros também previstos no quadro da Constituição, entre os quais se destaca, por razões óbvias, o direito de propriedade.” 99 No artigo 225 da Constituição Federal, de 1988, é possível vislumbrar a função ambiental da propriedade, pois ela está diretamente relacionada ao conceito de bem ambiental, que tem por finalidade alcançar a sadia qualidade de vida. Essa função está presente no uso, gozo ou fruição dos bens ambientais com vistas ao bem-estar de todos232. No bojo da função social da propriedade, encontra-se, também, a sua função econômica (art. 170, III e VI, CF/88) e ambiental, que engloba o respeito às atividades sociais e econômicas e tem por finalidade a qualidade de vida da sociedade. O bem-estar é indissociável da qualidade de vida a que as pessoas têm direito e poderá justificar a imposição de limites à liberdade de manifestação e às liberdades econômicas, visando garantir a preservação do ambiente, da higiene, da segurança e do repouso das pessoas233. Enquanto direito econômico, social e cultural, o direito ao ambiente é um direito a prestações positivas do Estado e da sociedade no sentido de que seja criado um ambiente de vida humana, sadio e ecologicamente equilibrado. Trata-se de um direito fundamental que deve ser exercido em consonância com os ditames constitucionais, na busca do equilíbrio entre a iniciativa privada, o trabalho, a produção, o consumo, o respeito ao desenvolvimento sustentável e à função social da propriedade, de modo a garantir o estoque de recursos naturais, em um ambiente sadio e com qualidade de vida para as presentes e futuras gerações. 232 D’ISEP, Clarissa Ferreira Macedo. Direito ambiental econômico e a ISO 14000: análise jurídica do modelo de gestão ambiental e certificação ISSO 14001. 2. ed. São Paulo: RT, 2009, p. 157: “É com base na função ambiental que podemos cobrar a utilização social dos bens ambientais, isto é, o uso, gozo e fruição de tais bens – que são de uso comum do povo – devem ocorrer com vista ao bem-estar de todos.” 233 MIRANDA, Jorge. op. cit., p. 268: “Mais difícil de definir juridicamente se antolha o ... Parece indissociável da qualidade de vida, como estádio actual a que as pessoas tem direito e que poderá justificar, designadamente, limites à liberdade de manifestação e às liberdades económicas para garantia da preservação do ambiente, da higiene, da segurança e do repouso das pessoas.” 100 4 PUBLICIZAÇÃO DO DIREITO, PROTEÇÃO AMBIENTAL E UMA NOVA DIMENSÃO DO REGISTRO DE IMÓVEIS A publicização dos direitos é uma tendência da pós-modernidade. O próprio Código Civil de 2002, atualmente, encontra-se mais aberto a interferências de ordem pública, como a função social da propriedade e do contrato, as denominadas cláusulas gerais que dão maior liberdade de decisão ao julgador, a fim de adequar as normas de caráter privado às normas de ordem pública. O fenômeno da constitucionalização do direito privado, pelo qual se deve interpretar o direito privado de forma sistemática, à luz da Constituição Federal, produz o efeito de publicizar o direito privado. O Direito Ambiental produz normas de ordem pública, que visam ao atendimento do disposto no artigo 225 da Constituição Federal, a fim de promover a proteção ambiental para garantir o meio ambiente ecologicamente equilibrado para as presentes e futuras gerações. As formas de proteção ambiental merecem ser publicizadas. A publicização de direitos traz maior segurança jurídica. A segurança jurídica é o objetivo do Registro de Imóveis. Ela é alcançada através da publicidade dos direitos nele registrados. Ao Registro de Imóveis representa um desafio recepcionar em seus registros, que tem por finalidade principal a garantia do direito à propriedade privada, títulos provenientes de órgãos públicos que prentendem publicizar direitos ambientais. O desafio consiste em se descobrir de que forma o Registro de Imóveis, que tutela a propriedade privada, recepcionará, em seu bojo, as interferências de direito público na propriedade privada, causadas pelo atendimento dos dispositivos de ordem pública, provenientes das normas de direito ambiental. A averbação das restrições ambientais, na matrícula dos imóveis, no Registro de Imóveis, é forma eficaz de publicização de direitos, que auxiliará no alcance das finalidades das normas ambientais. Sem dúvida alguma, nesse sentido, o direito ambiental proporciona ao Registro de Imóveis uma nova dimensão de direitos registráveis, aos quais se espera atribuir publicidade, segurança jurídica e eficácia erga omnes. Dessa forma, o Registro de Imóveis se torna importante instrumento de publicidade e segurança jurídica na proteção ambiental. 101 4.1 Da concepção privatista à publicização do direito: uma marca da pós-modernidade A conceituação de pós-modernidade é algo que desafia os estudiosos. Trata-se de um conceito multifacetado que representa um conjunto de mudanças sociais e culturais profundas e que vem ocorrendo desde o final do século XX. O conceito engloba vários assuntos, como mudanças tecnológicas, inclusive nas telecomunicações e na informática, o hiperconsumo, a globalização, alterações nas relações políticas, o surgimento de movimentos sociais relacionados com aspectos étnicos e raciais, ecológicos e de competição entre os sexos234. O termo “modernidade” refere-se à ordem social que emergiu após o Iluminismo e abrange todas as mudanças significativas que aconteceram a partir da metade do século XVI. A modernidade possui, como algumas de suas características, a visão de futuro, a crença no progresso e o poder da razão humana de produzir liberdade. No colonialismo europeu, a confiança no progresso reinava suprema. A era do consumo de massa inicia por volta dos anos 80, do século XIX, e termina com a Segunda Guerra Mundial235. O aperfeiçoamento de máquinas de fabrico contínuo e, consequentemente, o aumento da rapidez e da quantidade de produtos produzidos, ocasiona o aumento da produtividade, com custos mais reduzidos, abrindo o caminho para a produção em massa. Por este motivo, inicialmente, com a Segunda Guerra Mundial, diminui a fé no progresso, mas após, ela retorna, através de um desenvolvimento científico e tecnológico enorme e de uma explosão de consumo sem precedentes. O desenvolvimento da produção em massa reclama o escoamento da produção, através de técnicas de persuasão dos consumidores que deveriam ser estimulados a consumir. Nesta senda, surge o marketing em massa e, com ele, o consumidor moderno236. Os pequenos armazéns, que vendiam produtos anônimos, à granel, até os anos 80 do século XIX, por intermédio da publicidade e de uma decoração rica, transformaram-se em palácios de consumo, para a venda de sonhos, numa clara democratização de desejos. 234 LYON, David. Pós-modernidade. Tradução de Euclides Luiz Calloni. São Paulo: Paulus, 1998, p. 7: “Tudo está englobado: uma mudança tecnológica acelerada, envolvendo as telecomunicações e o poder da informática, alterações nas relações políticas, e o surgimento de movimentos sociais, especialmente os relacionados com aspectos étnicos e raciais, ecológicos e de competição entre os sexos.” 235 LIPOVETSKY, Gilles. A felicidade paradoxal: ensaio sobre a sociedade do hiperconsumo. Tradução de Patricia Xavier. Lisboa: Edições 70, 2006, p. 23: “O ciclo I da era do consumo de massa começa por volta dos anos 80 do século XIX e termina com a Segunda Guerra Mundial.” 236 Idem, p. 25: “Desenvolvendo a produção em massa, a fase I inventou o marketing de massa, bem como o consumidor moderno.” 102 Os pequenos armazéns, agora transformados em palácios de consumo, se empenham para seduzir o consumidor, com decorações luxuosas, luzes e cores, para maravilhar o cliente e criar um clima propício à compra. Esses palácios não mais se limitam a vender produtos, mas empenham-se em estimular o consumo, em estratégias de marketing modernas. A publicidade foi um dos fatores determinantes na promoção do consumo, incitando as pessoas a um novo estilo de vida, persuadindo-as a atenderem aos novos desejos e às novas necessidades por ela divulgadas. A partir dos anos 60, o industrialismo foi transformado pelo uso de novas tecnologias de informação e de comunicação. Essas novas tecnologias iriam fazer pelo poder mental o que as máquinas haviam feito, na Revolução Industrial, pela força muscular237. A sociedade pós-industrial forneceu a estrutura social para a sociedade da informação, em que as telecomunicações e os computadores seriam decisivos para a condução dos intercâmbios econômicos e sociais. É evidente a multiplicação de máquinas informacionais, capazes de multiplicar a circulação dos conhecimentos, assim como o desenvolvimento modificou a forma de circulação dos homens, com os meios de transporte e modernizou a circulação de sons e imagens através da mídia238. As sociedades pós-industrial e da era da informação trouxeram como consequências negativas, entre outras, o crescente desemprego e a perda da autonomia pessoal239. O pós-industrialismo e a sociedade da informação atingiram seu ápice de popularidade nos anos setenta e oitenta. A pós-modernidade alcançou notoriedade político- social mais tarde, nos anos oitenta e noventa240. A sociedade pós-moderna encontra-se intimamente relacionada com o domínio do consumo de massa sobre os seus membros. Os meios de comunicação, a mídia, o marketing criam necessidades e desejos na mente das pessoas, oferecendo um novo estilo de vida relacionado à moda, à fama, às novas tecnologias 237 LYON, David. op. cit., p. 59: “A fase recente da sociedade industrial, predita desde os anos 60, baseava-se acima de tudo no conhecimento teórico. O industrialismo será transformado – Bell disse mais tarde que a nova condição seria uma “sociedade de informação” – pelo uso de novas tecnologias de informação e de comunicação, que iriam fazer pelo poder mental o que as máquinas, na revolução industrial, haviam feito pela força muscular.” 238 LYOTARD, Jean-François. A condição pós-moderna. Tradução de Ricardo Corrêa Barbosa. 12. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2009, p. 4: “É razoável pensar que a multiplicação de máquinas informacionais afeta e efetará a circulação dos conhecimentos, do mesmo modo que o desenvolvimento dos meios de circulação dos homens (transportes), dos sons e, em seguida, das imagens (media) o fez.” 239 LYON, David. op. cit., p. 62: “Também foram feitas advertências com relação à competição que viria da Europa e do Terceiro Mundo, e sobre consequências negativas como o desemprego e a perda de autonomia pessoal.” 240 Idem, p. 79: “Pós-industrialismo e sociedade de informação, cuja popularidade atingiu seu ápice nos anos 70 e 80, são conceitos que se alimentam das noções de progresso do Iluminismo através do desenvolvimento tecnológico. Eles propõem que um novo tipo de experiência social está emergindo. A pós-modernidade alcançou notoriedade como conceito analítico-social durante os anos 80-90.” 103 (televisores, aparelhos eletrodomésticos e eletrônicos, celulares de última geração, etc.) induzindo-as ao consumo desenfreado. Cria-se, assim, uma cultura de consumo pelo consumo, movida pela necessidade de inclusão na sociedade, relacionado à busca da felicidade e à qualidade de vida. A cultura do consumo, disseminada pelos meios de comunicação, que nos arrebatam diariamente com inúmeras ofertas de produtos, muitas vezes desnecessários, mas que, ao adquiri-los e utilizá-los por algum tempo passam a fazer parte de nossas vidas, criam necessidades, outrora inimagináveis, gerando facilidades nas atividades diárias, visando uma vida mais confortável, com mais tempo para o lazer. Esses fatores incitam o consumo pelo consumo, gerando impactos ambientais. A busca desenfreada por bens de consumo agrava a disponibilidade de recursos naturais que servem de matéria-prima para sua produção. Entra-se em um círculo vicioso, criam-se necessidades para produzir e vender bens de consumo, de forma que essa busca desencadeia o aumento da produção de bens. A finalidade da produção é satisfazer as necessidades do cidadão, que foram criadas pelos próprios produtores dos bens de consumo, que se transformaram em objetos de desejo do cidadão. A atividade de comprar tornou-se um novo arquétipo da sociedade241. A mídia vende a imagem de que a vida desejada por todos é aquela apresentada na tela do televisor. Este arquétipo culmina com demasiados prejuízos para o meio ambiente. No mundo pós-moderno, de estilos e padrões de vida concorrentes, aqueles que não forem capazes de serem seduzidos pelo mercado consumidor são considerados a sujeira da pureza pós-moderna, levando-se em consideração que o critério de pureza é a aptidão de participar do jogo consumista. Os impuros da pós-modernidade são incapazes de serem indivíduos livres e são considerados verdadeiros objetos fora do lugar, excluídos da sociedade242. Para não serem excluídas, as pessoas buscam se encaixar em um novo modelo de sociedade, procurando a inserção social pelo consumo, pela aquisição de bens de consumo, 241 BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Tradução de Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001, p. 87: “O arquétipo dessa corrida particular em que cada membro de uma sociedade de consumo está correndo (tudo numa sociedade de consumo é uma questão de escolha, exceto a compulsão da escolha – a compulsão que evolui até se tornar um vício e assim não é mais percebida como compulsão) é a atividade de comprar.” 242 BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade. Tradução de Mauro Gama e Cláudia Martinelli Gama. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998, p. 23: “No mundo pós-moderno de estilos e padrões de vida livremente concorrentes, há ainda um severo teste de pureza que se requer seja transposto por todo aquele que solicite ser ali admitido: tem de mostrar-se capaz de ser seduzido pela infinita possibilidade e constante renovação promovida pelo mercado consumidor, de se regozijar com a sorte de se vestir e despir identidades, de passar a vida na caça interminável de cada vez mais intensas sensações e cada vez mais inebriante experiência. Nem todos podem passar nessa prova. Aqueles que não podem são a “sujeira” da pureza pós-moderna.” 104 com as mais avançadas tecnologias, pelos últimos modelos de aparelhos eletrônicos, carros, roupas, para viver de acordo com as necessidades criadas pela mídia, pelo marketing, pela propaganda e publicidade. Através dos bens de consumo o homem busca sua identidade no mundo pós-moderno. Já dizia Georges Ripert243: Não se pode impedir, aliás, que o homem procure necessariamente afirmar a sua personalidade distinguindo-se dos outros. Tenta escapar a uma igualdade que lhe é imposta. Quando o nascimento, a classe, a inteligência e o emprego não contam para nada ou para muito pouco, a riqueza torna-se o único meio de superioridade. O luxo da vida material na sociedade moderna é uma manifestação dessa necessidade de distinção que têm os homens. O homem busca sua identidade no mundo pós-moderno através dos bens de consumo, para satisfazer o sentimento de que é preciso “ter” para se inserir na sociedade, mas também procura afirmar sua personalidade, na tentativa de alcançar um lugar de destaque e “ser” uma referência para a sociedade. Com o passar do tempo, novas tecnologias foram criadas. A comunicação se transformou em uma indústria. As comunicações via satélite propiciaram a aproximação entre os países, com menos barreiras físicas, com imagens de satélite, a internet e outros meios de comunicação. Essa revolução tecnológica proporciona as condições materiais para uma nova configuração das relações de poder244. Vivemos em um mundo globalizado, em que as relações comerciais entre os povos tendem a ser cada vez mais intensas e facilitadas. A expansão da produção aumentou a oferta de produtos e serviços, porém, com a globalização e as novas tecnologias, a procura por bens e serviços também aumentou. Ao mesmo tempo em que houve uma grande expansão na produção, houve uma procura maior por bens e serviços. A globalização passa a ser necessária para o escoamento da produção. Vivemos na era da tecnologia e da informática. Hoje, a informação e a comunicação representam poder. As novas tecnologias da informação, iniciando pelos meios de comunicação mais simples como o rádio, a televisão, o telefone e, evoluindo para meios mais evoluídos/elaborados, como o computador, a informática, a mídia, a internet ou, até mesmo, o telefone celular, aliadas ao marketing, à publicidade e propaganda através dos meios de 243 RIPERT, Georges. O regimen democrático e o direito civil moderno. Tradução de J. Cortezão. São Paulo: Saraiva, 1937, p. 208. 244 PORTO-GONÇALVES, Carlos Walter. A globalização da natureza e a natureza da globalização. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006, p. 131: “Tudo nos conduz à constatação de que a atual revolução tecnológica, como qualquer revolução tecnológica, proporciona as condições materiais para uma nova configuração das relações de poder.” 105 comunicação, demonstram que o mundo pós-moderno possui, ao menos neste enfoque, duas características essenciais: a informação e a publicidade. Na pós-modernidade, a publicidade não se aplica apenas às relações de consumo. A publicização do direito é uma tendência que foi acentuada na pós-modernidade. O direito, que sabidamente anda a reboque dos fatos sociais, paulatinamente se insere nesta nova tendência de publicização do direito. A discussão acerca da publicização do direito não é de hoje. Nas primeiras décadas do século XX, já se discutia a tendência moderna de publicização do direito, principalmente na França. O termo “publicização do direito” tem origem francesa e era utilizado pelos mestres da Teoria Geral do Direito para caracterizar a interferência do Estado no âmbito do direito privado, como uma tendência publicística do mesmo. No Estado moderno já se fazia presente a tendência de publicização do direito privado. O direito privado tende a restringir-se em benefício do direito público diante do aumento da ingerência do Estado em matérias reservadas à autonomia de outrem245. O direito atravessa uma fase de transição em que busca normas que melhor atendam às necessidades sociais de nosso tempo, exigindo do Poder Público, por meio do legislativo, a composição de uma multiplicidade de normas atinentes à possibilidade de intervenção crescente do Estado na ordem privada, resultando numa progressiva intromissão do direito público na esfera do direito privado246. A intromissão do direito público no direito privado já se encontrava presente na França, através de um decreto de outubro de 1810, que legitimava a intervenção administrativa nos estabelecimentos considerados perigosos, incômodos e insalubres, exigindo uma autorização administrativa para sua exploração247. Ainda na França, mais tarde, criou-se a expropriação por utilidade pública, as servidões urbanas, um plano de embelezamento, em que se permitia alargar as ruas em detrimento da propriedade, a necessidade de autorização do poder público para reparos em edifícios de interesse histórico 245 ROMANO, Santi. Princípios de direito constitucional geral. Tradução de Maria Helena Diniz. São Paulo: RT, 1977, p. 102: “A esfera do direito privado tende, nos Estados modernos, a restringir-se, em benefício do direito público. Isto ocorre devido ao processo de contínua e progressiva ingerência do Estado em matérias reservadas à autonomia de outrem, ou à transformação de tal autonomia, meramente lícita em funcional.” 246 RÁO, Vicente. O direito e a vida dos direitos. 5.ed. anotada e atual. por Ovídio Rocha Barros Sandoval. São Paulo: RT, 1999, p. 219: “Atravessa o direito, reiteradamente o dissemos, uma fase de transição, à procura de novas regras práticas que melhor e mais adequadamente correspondam às necessidades sociais de nosso tempo, fase de transição que se processa em tumulto, por meio de uma desordenada multiplicidade de normas reveladoras de intervenção crescente do Estado na ordem privada e, por via de consequência, de uma intromissão progressiva do direito público na esfera do direito privado.” 247 RIPERT, Georges. op. cit., p. 214: “Foi primeiro a indústria que provocou a intervenção administrativa. Alguns anos depois do Código Civil, o decreto de outubro de 1810 veio classificar em três categorias os estabelecimentos perigosos, incômodos e insalubres, e exigir uma autorização administrativa para a sua exploração.” 106 ou artístico, entre outras. Tais medidas deixam claro o poder de intervenção do Estado na propriedade privada, que começava a sofrer, naquela época, as limitações ao direito de propriedade, perdendo o seu absolutismo e caminhando para a publicização do direito privado. A tendência à publicização do direito privado é repelida por Ripert248 ao entender que haveria uma transformação do direito privado em direito público, como pretendia Duguit, visto que, diante da socialização do direito privado, todas as relações entre os homens passariam a ser relações de direito público, resultando no desaparecimento do direito privado. Na pós-modernidade, percebe-se uma acentuada tendência publicística do direito privado pela intervenção do Estado na sua esfera ao limitar o direito de propriedade, ao defender o economicamente mais fraco em questões relativas aos contratos consumeristas e, até mesmo no âmbito do direito de família, ao igualar o poder dos pais com relação à chefia da família, através do poder familiar (outrora pátrio poder, de competência exclusiva do marido). Tais interferências do Estado, no âmbito do direito privado, à primeira vista, podem ser compreendidas como a absorção do direito privado pelo direito público, o que levaria alguns juristas a seguir o pensamento de Ripert e concluir pela possibilidade do desaparecimento do direito privado, através de sua publicização. A publicização do direito também pode ser chamada de “socialização do direito”. Portanto, a publicização pode ser entendida como um dos meios capazes de tornar social o direito. A publicização ou socialização do direito privado também está presente, e de forma visível, no artigo 5º, XXIII da Constituição Federal de 1988, que determina que a propriedade deve atender à sua função social. A função social da propriedade sofre a interferência das normas de interesse público sobre o seu exercício e o exercício do direito individual de propriedade deve pautar-se por tais normas, pois é dominado pelo interesse coletivo. Somente pode ser considerado legítimo o exercício de um direito individual na medida em que se encontre em conformidade com o interesse coletivo249. A tendência de publicização do direito privado, acentuada na pós-modernidade, faz com que, cada vez mais, se torne difícil a distinção entre direito público e direito privado. 248 Ibidem, p. 247: “Os direitos individuais devem, pois, desaparecer. Com eles, no entanto, desaparecerá, possivelmente, o direito privado. Todo o homem, em seu posto na maquina social, será considerado como desempenhando uma função social, e todas as relações entre os homens serão relações de direito público. No dia em que esta doutrina triunfe inteiramente, o direito civil não estará transformado, como o pretendia Duguit: terá desaparecido.” E continua o autor: “É para desejar o desaparecimento da propriedade privada todas as vezes que a exploração coletiva seja mais útil. Existe uma espécie de conscrição da propriedade privada. A socialização dos bens chega, quer a destruir completamente o direito individual julgado contrário à utilidade pública, quer, pelo menos, a afectar a propriedade a um serviço de utilidade geral.” 249 Ibidem, p. 210: “Se o direito individual é dominado pelo interesse coletivo, não deve ser exercido legitimamente senão na medida em que o seu exercício é conforme com êste interesse.” 107 Essa já é uma discussão antiga e, no entender de Romano250, o direito público pode ser definido como esfera de ordenação do Estado que diz respeito ao próprio Estado em sua autonomia funcional, em oposição ao direito privado, que é parte do direito público, limitada às autonomias meramente lícitas, como um espaço deixado mais ou menos em branco pelo direito público, alimentado e tutelado por este. A autonomia privada não é originária, mas é derivada das leis do Estado, e, dessa forma, o direito privado é derivado do direito público, por ser estabelecido pela autoridade pública, no exercício de uma função pública, a função legislativa, sendo privado apenas quanto à matéria que regula, reservando-a à autonomia privada. Entre as formas empregadas pelos juristas na tentativa de distinção entre direito público e privado algumas são totalmente infundadas, como a que se utiliza do critério da autoridade. Neste sentido, considera-se direito público o direito que se refere aos sujeitos dotados de autoridade, dotados de poder de império ou supremacia, e privado o direito dos sujeitos que não possuem tal autoridade ou que, possuindo-a, dela não se utilizam251. Normalmente, os sujeitos do direito público possuem tal autoridade, por serem titulares de interesses gerais, e todo interesse geral prevalece sobre o interesse privado. Todavia, não é pela qualidade do titular que o direito se define como público ou privado, mas, sim, pela natureza de seu conteúdo, por seus elementos essenciais e diferenciais252. A distinção entre direito público e privado, como se pode perceber, está diretamente ligada ao conteúdo ou natureza da matéria que se quer classificar como direito público ou direito privado. Todavia, a origem de tal distinção, segundo Miaille253, não é natural e se embasa na racionalidade do Estado burguês e na dominação do modo de produção capitalista. Para ele, a divisão do direito em público e privado é externa ao indivíduo e o separa em dois elementos distintos e opostos: o homem, como indivíduo burguês privado, e o homem, como 250 ROMANO, Santi. op. cit., p. 100: “O direito público pode, por consequência, ser definido como esfera da ordenação do Estado que diz respeito (e dele depende) ao próprio Estado considerado na sua unidade ou nos seus elementos que têm autonomia apenas funcional, isto é, que são seus auxiliares, enquanto o direito privado é a esfera da ordenação que o próprio direito público, limitando-a, reserva às autonomias meramente lícitas. O direito privado, portanto, encontra sempre o seu fundamento no direito público, já que dele deriva e está circunscrita a sua autonomia: o direito privado é uma esfera, um espaço deixado mais ou menos em branco pelo direito público, que porém o encerra na rede de suas malhas, o alimenta e tutela.” 251 Idem, p. 101: “Outras maneiras de entender a distinção à ordenação estatal aparecem unilaterais ou infundadas. Dentre elas deve-se lembrar, principalmente, a teoria muito difundida que considera público o direito que se refere aos sujeitos dotados de autoridade, imperium ou supremacia, enquanto que o privado seria o direito dos sujeitos que não possuem tal autoridade ou que, possuindo-a, dela não se utilizam.” 252 RÁO, Vicente. op. cit., p. 222: “Mas, na realidade, não é pela qualidade do titular que o direito se define, porque a um só titular múltiplos direito, de natureza diversa, podem pertencer; define-se o direito, sim, pela natureza de seu conteúdo, por seus elementos essenciais e diferenciais.” 253 MIAILLE, Michel. Introdução crítica do direito. 3. ed. Lisboa: Editorial Estampa, 2005, p. 159: “A distinção- oposição entre direito público e direito privado não é, pois, : não é lógica em si, traduz uma certa racionalidade, a do Estado burguês.” 108 cidadão do Estado, representando aquele o direito privado e este o direito público; eis que o homem, ao mesmo tempo, é capaz de sentir uma vontade particular e egoísta e uma vontade moral voltada para os outros, para o interesse de todos254. Este sentimento humano, por vezes, particular e egoísta e, por vezes, voltado para a solidariedade e para o interesse de todos, nos faz acreditar ser o motivo pelo qual há uma interrelação entre direito privado e público. Assim, mesmo que a matéria tenha natureza de direito privado, poderá sofrer interferências de normas provenientes do direito público, mormente em sua interpretação e aplicação. Isso se deve à noção sistêmica do direito, de modo que, embora tenha sofrido a clássica divisão entre público e privado, que para alguns juristas é meramente didática255, o direito é um sistema, em que normas de direito público e de direito privado se interrelacionam, devendo ser interpretadas em conjunto, tendo em vista a unidade do direito. Esta visão sistêmica do direito, de normas de natureza diversa que se interrelacionam demonstra a necessidade de novos critérios interpretativos. O direito, desde Kelsen, possui uma estrutura hierárquica de normas que, segundo ele, estão fundamentadas, a final, naquilo que ele denomina de “norma hipotética fundamental”, sendo o ápice do sistema jurídico e fundamento de todas as normas. Sendo o direito estruturado desta forma, a hierarquia entre normas deverá ser respeitada quando de sua interpretação. O sistema jurídico brasileiro possui como fundamento de todas as normas a Constituição Federal. As normas infraconstitucionais deverão ser interpretadas dentro de uma visão sistêmica, de conformidade com os ditames da Constituição Federal. De forma muito simplista, pode-se afirmar que é nesta interpretação, conforme a Constituição, que se consubstancia a tendência, na pós-modernidade, de constitucionalização do direito. A dicotomia entre público e privado não apresenta maior consistência em face da superação das abordagens unilaterais, uma vez compreendido que o sistema jurídico é um só, diante do fenômeno da constitucionalização do direito. Neste diapasão, direito público e direito privado precisam encontrar seus fundamentos no bojo da Constituição. A rigor, qualquer área do direito deverá ser tratada como objeto de incidência e concretização dos 254 Idem, p. 159: “Por outras palavras, a separação entre direito público e direito privado é exterior ao indivíduo: ela separa-o em dois elementos distintos e mesmo opostos. O homem como indivíduo burguês privado e o homem como cidadão do Estado não é afinal senão outra formulação da distinção entre direito privado e direito público... Daí esta dificuldade para quem quer que ouça falar da distinção entre direito público e direito privado de não a reportar a uma banal experiência pessoal: .” 255 SUNDFELD, Carlos Ari. Fundamentos de direito público. 4. ed. São Paulo: Malheiros, 2001, p. 144: “A classificação do Direito em dois grandes ramos, o público e o privado, não passa, por conseguinte, de uma proposta de estudo – dentre tantas possíveis – das normas jurídicas.” 109 princípios e das regras constitucionais, de forma que toda interpretação sistemática é também interpretação constitucional256. A constitucionalização do direito privado implica em uma releitura do Código Civil à luz dos preceitos constitucionais, funcionando estes como verdadeiros limites à aplicação da norma ordinária. A legislação constitucional, embora externa à legislação ordinária, funciona como limite destas, devido à unidade do sistema jurídico257. Todavia, a constitucionalização do direito privado também pode ocorrer devido à previsão, em sede constitucional, de matérias até então relegadas à legislação civil ordinária. Assim, a Constituição, ao tutelar diversos institutos civilistas, como a propriedade, o contrato, a família, entre outros, procede a uma interpenetração do direito público e do privado, redefinindo seus espaços258. A Constituição Federal, neste contexto, exprime o seu papel unificador do sistema jurídico, com base nesse novo sistema de normas e princípios, reguladores da vida privada, por ela integrados. A unificação do sistema jurídico refere-se ao abandono da separação tradicional do direito em público e privado. Desse modo, em face do princípio da unidade do sistema jurídico e da superioridade dos valores e princípios insculpidos na Constituição Federal, não se pode mais aceitar a separação entre Estado e sociedade civil, no sentido de se ter a Constituição Federal como lei do Estado e o Código Civil como lei da sociedade civil259. O Código Civil perdeu aquela característica individualista proveniente do Código Civil de 1916, embasado no Código Civil francês de Napoleão. 256 FREITAS, Juarez. A interpretação sistemática do direito. 5. ed. São Paulo: Malheiros, 2010, p. 228: “Nesse panorama, o Direito privado e o Direito público – nada obstante persistirem diferenças funcionais, que não podem ser esmaecidas por inteiro, - precisam ambos encontrar os seus fundamentos no bojo da Constituição. Uma vez que, a rigor, implícita ou explicitamente, qualquer seara deve ser redimensionada como campo nobre de incidência e de concretização dos princípios e das regras constitucionais. Por isso, toda interpretação sistemática é também interpretação constitucional.” 257 PERLINGIERI, Pietro. O direito civil na legalidade constitucional. Tradução de Maria Cristina De Cicco. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 571: “A própria noção de limite parece indicar a separação entre a legislação ordinária e a constitucional: esta última, externa à primeira, acabaria por constituir um sistema separado, quando, ao contrário, a unidade do ordenamento exige individuar os princípios fundamentais e gerais caracterizadores de cada setor normativamente relevante nas normas constitucionais e nos valores que elas exprimem.” 258 FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Direito civil: Teoria geral. 4. ed. atual. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 12: “Esse fenômeno é resultado do avanço da sociedade, com relações complexas e plurais e, principalmente, da constitucionalização do Direito Civil, com a previsão, em sede constitucional, de matéria até então relegadas à legislação civil ordinária.” 259 MATTIETTO, Leonardo. O direito civil constitucional e a nova teoria dos contratos. In: TEPEDINO, Gustavo (Coord.). Problemas de direito civil-constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2000, p. 166: “A acolhida da tese de unidade do ordenamento jurídico, e bem assim da superioridade dos valores e princípios insculpidos na Constituição, cujo alcance se projeta no sistema jurídico como um todo, conduz à necessidade de abandonar a separação do direito em público e privado, posta pela doutrina tradicional. Não pode ser aceito o esquema que separa Estado e sociedade civil e concebe, de um lado, a Constituição como lei do Estado e, de outro, o direito privado como ordenamento da sociedade civil, e que vê certas normas constitucionais como intromissões em um setor estranho, reservado aos particulares.” 110 O Código Civil de 1916 era impregnado de individualismo e voluntarismo, inspirado no Código Civil francês, de Napoleão, de 1804. Na época de sua elaboração, o valor fundamental era o indivíduo e, por este motivo, o código tratava das relações entre particulares, principalmente, no que diz respeito aos contratos e à propriedade, aspirando ao aniquilamento de todos os privilégios feudais. Pretendia-se possibilitar ao indivíduo contratar, fazer circular as riquezas e adquirir bens, sem restrições ou entraves legais260. Naquela época, início do século XX, o direito público não interferiria na esfera privada, tornando-se o Código Civil o monopolizador das relações privadas, que almejava a completude, no sentido de possuir o arcabouço jurídico capaz de dar suporte e solucionar todas as situações jurídicas que o sujeito privado pudesse apresentar. Tratava-se do denominado dogma da completude do Código Civil. Todavia, os movimentos sociais e o processo de industrialização crescente no século XIX, aliados à Primeira Guerra Mundial, instigaram a necessidade de intervenção do Estado cada vez mais acentuada na economia, de modo que as relações não previstas no Código passaram a ser reguladas pelo Estado, através de leis extravagantes, corroborando o papel constitucional do Código no que diz respeito às relações privadas261. A crescente necessidade de leis extracodificadas era atendida pelo Estado, que cada vez mais criava leis para regular situações que deveriam estar previstas no Código Civil. Esse foi paulatinamente recebendo interferências de ordem pública e revelando a impossibilidade de sua completude. O Código Civil perde o seu papel de Constituição do direito privado. A Constituição passa a definir princípios que se aplicam a matérias que, outrora, estariam reguladas apenas no Código Civil e, dessa forma, matérias típicas de direito civil passam a ser reguladas, principiologicamente, na Constituição Federal. 260 TEPEDINO, Gustavo. Premissas metodológicas para a constitucionalização do direito civil. In: TEPEDINO, Gustavo. Temas de direito civil. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2004, p. 2: “O Código Civil de 1916, bem se sabe, é fruto da doutrina individualista e voluntarista que, consagrada pelo Código de Napoleão e incorporada pelas codificações posteriores, inspiraram o legislador brasileiro quando, na virada do século, redigiu o nosso primeiro Código Civil. Àquela altura, o valor fundamental era o indivíduo. O direito privado tratava de regular, do ponto de vista formal, a atuação dos sujeitos de direito, notadamente o contratante e o proprietário, os quais, por sua vez, a nada aspiravam senão ao aniquilamento de todos os privilégios feudais: poder contratar, fazer circular as riquezas, adquirir bens como expansão da própria inteligência e personalidade, sem restrições ou entraves legais.” 261 Idem, p. 4: “Os movimentos sociais e o processo de industrialização crescentes do século XIX, aliados às vicissitudes do fornecimento de mercadorias e à agitação popular, intensificadas pela eclosão da Primeira Grande Guerra, atingiram profundamente o direito civil europeu, e também, na sua esteira, o ordenamento brasileiro, quando se tornou inevitável a necessidade de intervenção estatal cada vez mais acentuada na economia [...]. Assim concebidas, tais leis extracodificadas corroboravam o papel constitucional do Código no que concerne às relações privadas, como lecionava a dogmática tradicional, permitindo que situações não previstas pudessem ser reguladas excepcionalmente pelo Estado.” 111 O processo de constitucionalização do direito civil não quer significar a inutilização do Código Civil, ou até mesmo, o desaparecimento do Direito Civil, como referia Ripert. O Código Civil continua em sua missão de regular as relações jurídicas entre particulares, no entanto, com uma nova roupagem, que incita os juristas e operadores do direito a proceder, na aplicação das regras privadas, a uma interpretação à luz da Constituição Federal. Devido à introdução na Constituição Federal de princípios reguladores do direito civil em geral, inaceitável seria que uma lei infraconstitucional, como o Código Civil, fosse aplicada à margem das disposições contidas na lei maior. Pela própria natureza da Constituição Federal, que exige a conformidade de todas as normas hierarquicamente inferiores às suas disposições, o intérprete do direito, seja ele o legislador, o juiz, um órgão da administração ou até mesmo o cidadão, é instigado a formar uma consciência constitucionalista ao interpretar o direito, buscando na Constituição as direções hermenêuticas e construtivas fundamentais para possibilitar a releitura do Código Civil e leis especiais à luz da Constituição262. O direito civil constitucional não abrange apenas as matérias que estão expressamente reguladas na Constituição Federal. O Direito Civil constitucional abrange o Direito Civil como um todo, diante da impossibilidade de se separar partes do direito civil que não estejam sob a égide dos valores e princípios constitucionais. O Código Civil de 2002 inaugura uma nova fase na interpretação do Direito Civil. O legislador, preocupado com a constitucionalização do direito privado e com a incompletude do Código Civil de 1916, ao elaborar o texto do Código Civil de 2002, criou um mecanismo com a intenção de mantê-lo sempre atualizado e aplicável. Este mecanismo, hoje denominado de “cláusulas gerais”, consiste em utilizar, na redação dos dispositivos do código, expressões de significado abstrato, para que fossem conformadas à situação fática apresentada, através de técnicas de interpretação sistêmica do direito. Convencido da impossibilidade de o Código Civil possuir os regramentos necessários a todas as situações jurídicas que se apresentam nas relações entre particulares, bem como da extirpação do antigo dogma da completude que acompanhou o Código Civil anterior, de 1916, por muitos anos, deixou o legislador a conformação das normas do direito civil à situação fática, apresentada perante o aplicador do direito a cargo do juiz. Este, diante 262 MATTIETTO, Leonardo. op. cit., p. 168: “Todavia, sendo a Constituição um diploma que exige a conformidade de todas as normas hierarquicamente inferiores, ficam-lhe vinculados o legislador e, de modo geral, o intérprete, seja o juiz, o órgão da administração ou o próprio cidadão. Mesmo o jurista técnico, cultor do direito privado ou de qualquer ramo do direito, deve formar uma “mentalidade constitucionalística”, isto é, na sua obra de intérprete e de construtor do sistema, deve buscar nas normas contidas na Constituição as direções hermenêuticas e construtivas fundamentais.” 112 do caso concreto, através de técnicas interpretativas do direito, deverá acolher, na letra do Código Civil, situações por ele não expressamente reguladas. Vivemos uma mudança de paradigma, de um Código Civil moderno, unitário, em que vigorava o normativismo, o individualismo, o patrimonialismo, o liberalismo, para um novo Código Civil pós-moderno, que busca acentuar a importância da pessoa, da linguagem jurídica, da hermenêutica, com conceitos mais abertos, dando maior liberdade aos juízes em seus julgamentos, através das chamadas cláusulas gerais. O Código Civil adotou, portanto, o sistema das cláusulas gerais, que são diretrizes orientadoras, de caráter genérico e abstrato que, ao mesmo tempo em que vinculam o juiz, lhes dá liberdade para decidir, preenchendo os valores em aberto na norma. Dessa forma, o juiz poderá preencher os claros da lei com os valores designados para aquele caso, dando a solução que lhe parecer mais correta. Permite-se assim, a integração do direito civil com as normas, diretrizes e princípios constitucionais. Eis o espírito do Código Civil Brasileiro de 2002, que trouxe para o mundo jurídico uma forma diferente de interpretação e integração das leis, criando cláusulas gerais e conceitos indeterminados, tais como: a função social da propriedade, a função social do contrato e da família; boa-fé; justiça; equidade; ordem pública; perigo iminente; divisão cômoda; entre outros. Devido à constitucionalização do direito privado e o advento do Código Civil de 2002, a Constituição Federal acentua sua importância, fornecendo parâmetros, princípios e diretrizes para melhor regular as mutáveis situações da vida em sociedade. Com um Código Civil mais humano, preocupado com a justiça social, voltado para o bem-comum, embasado em princípios, como o da dignidade da pessoa humana, o da proteção aos direitos da personalidade, o da sociabilidade, o da eticidade, o da operabilidade e o da concretude, conforme já analisados no item 2.2, talvez consigamos concretizar os direitos fundamentais do homem, com a ajuda da interpretação civil-constitucional. Diante do sistema jurídico que se apresenta, a constitucionalização do direito privado, a quebra do individualismo do Código Civil, a interpretação sistemática do direito privado e à luz da Constituição Federal, as cláusulas gerais, os novos princípios que norteiam o Código Civil, na busca de maior socialização do direito, bem como a maior ingerência do Estado em questões privadas, a publicização do direito não é mais apenas uma tendência, mas, sim, uma regra da pós-modernidade. 113 4.2 Unidades de conservação e registro de imóveis No Brasil, por muito tempo predominou a desproteção total do meio ambiente, não havendo norma impeditiva de devastação de florestas. O direito de propriedade, em uma visão efetivamente privatista, era a principal barreira para a atuação do Poder Público na proteção do meio ambiente. Ao final do período imperial, a partir de 1834, iniciou uma enorme devastação das florestas brasileiras, a fim de implantação de pastos e lavouras pertencentes aos donos de escravos, que possuíam grande influência política. Com a República, o quadro não melhorou, devido a um Poder Público ainda tímido em matéria de proteção ambiental263. Em 1934, é criado o primeiro Código Florestal Brasileiro, que estabelecia como áreas protegidas: os Parques Nacionais, constituídos de florestas remanescentes de domínio público, onde era proibida qualquer atividade contra a flora e a fauna; a Floresta Nacional, consubstanciada em florestas de rendimento, suscetíveis de exploração econômica; e as Florestas Protetoras, que eram remanescentes em propriedade privada, de preservação perene. O Código Florestal de 1934 trouxe vários benefícios, porém seu cumprimento fora muito aquém do que se esperava. Além disso, acabou causando alguns males que agravaram as devastações florestais, em razão do conteúdo do artigo 19 que, em nome de um maior rendimento econômico, permitia aos proprietários destruir florestas heterogêneas para transformá-las em homogêneas, desde que os proprietários assinassem, antes do início dos trabalhos, perante a autoridade competente, um termo de obrigação de reposição de tratos culturais. Diante dos problemas causados pelo Código Florestal de 1934, com a devastação de recursos florestais, o Poder Executivo propôs, em 1965, a edição de um novo Código Florestal. Este, por sua vez, procedeu a uma divisão conceitual entre as unidades que não permitiam a exploração dos recursos naturais, chamadas de restritivas ou de uso indireto (parques nacionais, reservas biológicas) e as áreas que permitiam exploração, chamadas de 263 BRITO, Maria Cecília Wey de. Unidades de conservação: intenções e resultados. São Paulo: Annablume, São Paulo: FAPESP, 2000, p. 54: “Porém, as normas eram confusas, algumas vezes conflitantes e mesmo impossíveis de serem cumpridas, mas, mesmo assim, conseguiram de certa forma resguardar parte do patrimônio natural durante o período do Império, até 1834. A partir desse ano (quando foi extinto o alvará que concedia à Coroa o monopólio do pau-brasil e do pau-rainha), teve início uma impressionante devastação das florestas brasileiras, que era justificada para a implantação de pastos e lavouras pertencentes aos donos de escravos, que possuíam grande influência política na época. Durante a República, a sorte das florestas nativas não foi melhor, inclusive porque a postura do poder público, face a essa matéria, era de grande timidez.” 114 não restritivas ou de uso direto (florestas nacionais, florestas protetoras, florestas remanescentes, reservas florestais, parques de caça florestais)264. O Código Florestal de 1965, desse modo, procurou minimizar a devastação florestal causada pelo Código Florestal de 1934, que (hoje é possível afirmar), absurdamente, autorizava uma devastação florestal, em nome de um maior rendimento econômico. Hodiernamente, a apropriação de bens ambientais, no sistema constitucional vigente, depende das características propostas para a ordem econômica e para as relações de produção. A Constituição propõe um novo significado para a ordem econômica e define-a como uma economia social e ecológica de mercado, em que as relações de produção e de apropriação sobre os recursos naturais passam a ter por base a proteção da propriedade privada sobre os bens265. As relações jurídicas de apropriação dos bens ambientais na nova ordem econômica deverão, obrigatoriamente, considerar uma nova valoração dos bens ambientais, com base nos critérios de necessidade de defesa do meio ambiente e do atendimento à função social da propriedade. “A obrigação de defesa do meio ambiente e a função social da propriedade condicionam a forma de valoração dos bens para a finalidade de apropriação.”266 A defesa do meio ambiente e o atendimento à função social da propriedade, bem como outros aspectos, como a existência de áreas de proteção ambiental sobre um determinado imóvel, passam a ser levados em consideração na apreciação valorativa do bem, sujeitando a apropriação de tais bens ao respeito à legislação pertinente à defesa e proteção dos bens ambientais. Neste sentido, percebe-se que a valoração de um imóvel para comercialização será influenciada pela apreciação econômica dos bens ambientais, bem como das utilidades econômicas dos recursos naturais e dos custos necessários à sua preservação. Assim, qualquer relação de apropriação deve cumprir sua função econômica individual da propriedade e uma função coletiva sócio-ambiental da propriedade. 264 Ibidem, p. 57: “Face à obsolescência do Código Florestal de 1934, e ao estado de devastação dos recursos florestais, foi proposta pelo Poder Executivo, em 1965, a edição de um novo Código Florestal. As mudanças mais categóricas, presentes no Novo Código Florestal e relativas às unidades de conservação, ocorreram com a introdução de uma divisão conceitual entre as unidades que não permitiam a exploração dos recursos naturais – restritivas/ou de uso indireto – (parques nacionais, reservas biológicas) e as áreas que permitiam exploração – não restritivas/ou de uso direto – (florestas nacionais, florestas protetoras, florestas remanescentes, reservas florestais, parques de caça florestais).” 265AYALA, Patryck de Araújo. Deveres ecológicos e regulamentação da atividade econômica na Constituição brasileira. In: CANOTILHO, José Joaquim Gomes; LEITE, José Rubens Morato (org.). Direito constitucional ambiental brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 264: “Esse novo significado proposto pela Constituição à ordem econômica, define-a nos termos de uma economia social e ecológica de mercado. Nesta, o sentido das relações de produção e de apropriação sobre os recursos naturais passa a ser orientado por um conjunto de regras que complementam um sistema que vigia, até então, baseado na proteção da propriedade privada sobre os bens.” 266 Idem, p. 265. 115 A função social da propriedade e a defesa do meio ambiente influenciaram a ordem econômica a considerar uma espécie diferenciada de bem: o ambiental. O bem ambiental, admitido como bem de uso comum do povo, torna o meio ambiente autônomo com relação às demais espécies de bens, que podem ser apropriadas de acordo com as regras definidas pelo mercado e pelos interesses do proprietário. Ao se considerar determinado espaço natural ou elemento da biodiversidade como bem, não importa atribuir direitos e poderes exclusivos ao proprietário, nem mesmo sustentar a prevalência do domínio público sobre tais bens. Disso resulta que o bem ambiental não pode ser considerado um bem particular, nem mesmo um bem público, mas, sim, um bem de interesse social, com um regime jurídico diferenciado, constituindo-se em patrimônio comum de toda a coletividade. Ao referir-se a um bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, o artigo 225 da Constituição Federal configurou uma nova realidade jurídica ao disciplinar um bem que não é público, nem particular267. A Constituição Federal afirma, ainda, que todos são titulares desse direito, concebendo uma coletividade de pessoas indefinidas, não podendo precisar, de forma rigorosa, os titulares do direito, devido ao seu caráter transindividual. O bem ambiental pode ser desfrutado por qualquer pessoa, não cabendo sua titularidade a uma pessoa ou grupo. A Constituição Federal apenas autoriza a sua utilização desde que de forma racional, visando a preservação e proteção dos bens ambientais, garantindo sua existência para o desfrute, nas mesmas condições, para as próximas gerações. Com o advento da Constituição Federal de 1988, o artigo 225 passou a preceituar o meio ambiente como de uso comum do povo, sendo, em um primeiro momento, considerado como um bem público que se enquadraria no artigo 66, I do Código Civil, de 1916. Em 1990, esse inciso foi revogado pelo Código de Defesa do Consumidor – CDC - (art. 81, parágrafo único, I), originando os denominados bens difusos, passando o ordenamento jurídico nacional a contemplar três distintas categorias de bens: os públicos, os privados e os difusos. A partir do CDC, portanto, os bens ambientais não podem ser de propriedade exclusiva dos entes federados. Embora mencionando a Constituição Federal, no artigo 20, III, IV, V e VIII, os bens que são da União e, no artigo 26, I, II, e III, os bens que são do Estado, tais bens ambientais, por sua natureza difusa e transindividual, faz com que a União e os Estados passem a ser meros administradores dos bens ambientais que pertencem à coletividade, devendo geri-los com a participação direta da sociedade. Assim, a União e os 267 FIORILLO, Celso Antonio Pacheco. Curso de direito ambiental brasileiro. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 63: “O art. 225 da Constituição Federal, reitere-se, ao estabelecer a existência jurídica de um bem que se estrutura como de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, configurou nova realidade jurídica, disciplinando bem que não é público, nem, muito menos, particular.” 116 Estados serão os gestores dos bens ambientais, devendo sua exploração por um particular ser autorizada pelo respectivo ente federado que se encontre em sua administração e preservação268. Ao Poder Público, a Constituição Federal de 1988 impôs deveres de proteção e preservação do meio ambiente ecologicamente equilibrado, estipulando regramentos no §1º do artigo 225 de instrumentos e políticas públicas para a manutenção de um meio ambiente ecologicamente equilibrado, iniciando pela preservação e restauração de processos ecológicos essenciais e o dever de prover o manejo ecológico das espécies e ecossistemas (art. 225, §1º, I, CF/88). Os processos ecológicos essenciais buscam assegurar as condições necessárias para uma adequada interação biológica269. O Poder Público270 tem a incumbência de prover o manejo ecológico das espécies, de modo a conservá-las ou recuperá-las, além de cuidar do equilíbrio das relações entre a comunidade biótica e o seu hábitat, a fim de garantir o espaço essencial à vida de um animal ou vegetal. É obrigação do Poder Público, pela dicção da Constituição Federal, intervir para a promoção de políticas públicas que visem à preservação e restauração das condições necessárias à existência, sobrevivência e desenvolvimento dos seres vivos e, ainda, a gestão planejada da biodiversidade, ou seja, da variabilidade de organismos vivos. O Poder Público deverá, portanto, garantir a biodiversidade, que compreende as diferentes plantas, animais, microorganismos, os genes que estes contêm, assim como os ecossistemas de que fazem parte271. Ao Poder Público, também foi imposto pela Constituição Federal de 1988, no seu artigo 225, §1º, III, o dever de definir, em todas as unidades da Federação, espaços territoriais e seus componentes a serem especialmente protegidos, sendo a alteração e a supressão 268 FIORILLO, Celso Antonio Pacheco. op. cit., p. 65: “Diante desse novo quadro, os bens que possuem as características de bem ambiental (de uso comum do povo e indispensável à sadia qualidade de vida) não são de propriedade de qualquer dos entes federados, o que significa dizer, por exemplo, que os rios e lagos de que trata o art. 20, III, da Constituição Federal não são bens de propriedade da União. Na verdade, esta atua como simples administradora de um bem que pertence à coletividade, devendo geri-lo sempre com a participação direta da sociedade.” 269 SILVA, José Afonso da. Direito ambiental constitucional. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 1998, p. 31: “IV – processos ecológicos essenciais (§1, I) são aqueles que asseguram as condições necessárias para uma adequada interação biológica.” 270 Idem, p. 49: “Poder Público é expressão genérica que se refere a todas as entidades territoriais públicas, pois uma das características do Estado Federal, como o nosso, consiste precisamente em distribuir o Poder Público por todas as entidades autônomas que o compõem, para que cada qual o exerça nos limites das competências que lhes foram outorgadas pela Constituição.” 271 FERREIRA, Heline Sivini. Política ambiental constitucional. In: CANOTILHO, José Joaquim Gomes; LEITE, José Rubens Morato (org.). Direito constitucional ambiental brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 232: “No que se refere ao manejo ecológico das espécies e dos ecossistemas, a Constituição outorgou ao Poder Público a gestão planejada da biodiversidade, ou seja, da variabilidade de organismos vivos de todas as origens, o que compreende as diferentes plantas, os diferentes animais e microorganismos, os genes que estes contêm, assim como os ecossistemas de que fazem parte.” 117 permitidas somente através de lei, vedada qualquer utilização que comprometa a integridade dos atributos que justifiquem sua proteção. Assim, o Poder Público deverá delimitar, em cada Estado e no Distrito Federal, as áreas de relevância ecológica. Os espaços territoriais e seus componentes, neste contexto, se referem ao ecossistema como partes integrantes da biodiversidade, relacionados à conservação dos processos ecológicos e ao manejo da diversidade biológica. Os sistemas nacionais de áreas naturais protegidas devem ser estabelecidos de forma a melhor representar a biodiversidade do país, objetivando a sua conservação e o desenvolvimento humano sustentável272. A esses espaços, sejam públicos ou privados, a lei deve assegurar sua relativa imodificabilidade e sua utilização sustentável, de modo que a modificação dos limites territoriais fica condicionada à lei. Ao impor ao Poder Público tais incumbências, a Constituição Federal quer garantir a efetividade do direito de todos a um meio ambiente ecologicamente equilibrado, essencial à sadia qualidade de vida. A Constituição Federal exerce uma função de controle sobre os usos das áreas protegidas, tendo deixado ao legislador infraconstitucional a função de planejamento sobre os espaços naturais. O legislador realizou o planejamento através do Sistema Nacional de Unidades de Conservação – SNUC, em que procurou definir as formas de ocupação, através da definição de espécies diferenciadas de unidades e usos específicos admissíveis em cada uma delas. No plano infraconstitucional, a Lei nº 4.771, de 15 de setembro de 1965 (art. 1º, §2º, II e III), já impunha proteção a determinados espaços territoriais, como: as áreas de preservação permanente, assim entendidas aquelas cobertas ou não por vegetação nativa, com a função ambiental de preservar os recursos hídricos, a paisagem, a estabilidade geológica, a biodiversidade, o fluxo gênico de fauna e flora, proteger o solo e assegurar o bem-estar das populações humanas; e a reserva legal, que se caracteriza pela área localizada no interior de uma propriedade ou posse rural, excetuada a de preservação permanente, necessária ao uso sustentável dos recursos naturais, à conservação e reabilitação dos processos ecológicos, à conservação da biodiversidade e ao abrigo e proteção de fauna e flora nativas. Posteriormente, a Lei n º 7.804, de 18 de julho de 1989, alterou o inciso VI do art. 9º da Lei nº 6.938, de 31 de agosto de 1981, incluindo entre os instrumentos da Política Nacional do Meio Ambiente, a criação de espaços territoriais especialmente protegidos, pelos Poderes Públicos federal, 272 BRITO, Maria Cecília Wey de. op. cit., p. 35: “Os sistemas nacionais de áreas naturais protegidas devem ser estabelecidos de forma a melhor representar a biodiversidade dos países e a responder aos requerimentos para a sua conservação, objetivando o desenvolvimento humano sustentável.” 118 estadual e municipal. Alguns anos depois, já na vigência da Constituição Federal de 1988, entra em vigor a Lei nº 9.985 de 18 de julho de 2000, que instituiu o Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza – SNUC, estabelecendo critérios e normas para a criação, implantação e gestão das unidades de conservação. As unidades de conservação estão diretamente ligadas à biodiversidade e ao ecossistema e podem ser entendidas como os espaços territoriais e seus recursos ambientais, incluindo as águas jurisdicionais, com características naturais relevantes, legalmente instituídos pelo Poder Público, com objetivos de conservação e limites definidos, sob regime especial de administração, ao qual se aplicam garantias adequadas de proteção. A Lei nº 9.985/2000 dividiu as unidades de conservação em dois grandes grupos: Unidades de Proteção Integral, que tem por objetivo a conservação da natureza, sendo permitido o uso indireto de seus recursos naturais, salvo os casos previstos em lei, e, Unidades de Uso Sustentável, que procuram compatibilizar a conservação da natureza com o uso racional e sustentável de parte dos recursos naturais que abriga. Enfatiza-se, portanto, que a apropriação parcial ou integral sobre o espaço natural protegido somente é admitida em relação às unidades de conservação de uso sustentável273. Fazem parte das Unidades de Proteção Integral (artigos 9º a 13 da Lei nº 9.985/2000) as Estações Ecológicas, as Reservas Biológicas, os Parques Nacionais, os Monumentos Naturais e os Refúgios da Vida Silvestre. As Unidades de Uso Sustentável (artigos 15 a 21 da Lei nº 9.985/2000) compreendem a Área de Proteção Ambiental, a Área de Relevante Interesse Ecológico, a Floresta Nacional, a Reserva Extrativista, a Reserva de Fauna, a Reserva de Desenvolvimento Sustentável e a Reserva Particular do Patrimônio Natural. Além das Unidades de Conservação de Proteção Integral e de Uso Sustentável, a Lei nº 9.985/2000 instituiu, no seu artigo 41, a Reserva da Biosfera, criadas pela UNESCO em 1972, reconhecida pelo Programa Intergovernamental “O Homem e a Biosfera – MAB”. A Reserva da Biosfera é um modelo, adotado internacionalmente, de gestão integrada, participativa e sustentável dos recursos naturais, que tem como objetivos básicos a preservação da diversidade biológica, o desenvolvimento de pesquisa, o monitoramento ambiental, a educação ambiental, o desenvolvimento sustentável e a melhoria da qualidade de vida das populações. 273 AYALA, Patryck de Araújo. op. cit., p. 274: “Para a finalidade de analisar o regime de apropriação nessas unidades, convém recuperar, nessa oportunidade, que a apropriação parcial ou integral sobre o espaço natural protegido é admitida pela lei tão-somente em relação às unidades de conservação que integram o grupo de uso sustentável.” 119 O constituinte já demonstrava preocupações com áreas que, na sua avaliação, deveriam ser preservadas devido à importância da proteção da biodiversidade brasileira e, por isso, declarou como patrimônio nacional a Floresta Amazônica, a Mata Atlântica, o Pantanal Mato-grossense, a Serra do Mar e a Zona Costeira (artigo 225, §4º da CF/88). Estabeleceu, ainda, que a utilização dessas áreas far-se-á na forma da lei, dentro de condições que assegurem a preservação do meio ambiente, inclusive quanto ao uso dos recursos naturais, sempre visando a proteção e preservação desses importantes ecossistemas. A criação de uma unidade de conservação, conforme artigo 22 da Lei nº 9.985/2000, somente pode ser realizada por ato do Poder Público, devendo ser precedida de estudos técnicos e de consulta pública que permitam identificar a localização, a dimensão e os limites mais adequados para a unidade, conforme se dispuser em regulamento. A desafetação ou redução dos limites de uma unidade de conservação só pode ser feita mediante lei específica, ficando proibida não apenas a alteração dos espaços por outros instrumentos que não a lei, como também a alteração dos espaços que possa comprometer a integridade de seus componentes e suas finalidades274. Todavia, cabe enfatizar que é dependente de lei a alteração ou revogação da legislação que institui, delimita e disciplina o espaço protegido, mas não depende de lei o ato administrativo que disciplina esses espaços, através de autorização, licenciamento ou permissão de obras ou atividades. Os atos administrativos de autorização, licenciamento ou permissão de obras ou atividades nas áreas incluídas nas unidades de conservação são atos do Poder Público, emanados através dos órgãos públicos competentes, que buscam promover a proteção do meio ambiente às custas de juízos discricionários. As normas jurídicas, por vezes, deixam a cargo do administrador público espaços de decisão, através de conceitos jurídicos indeterminados, que dependem da apreciação do caso concreto frente à legislação positiva para sua aplicação. Este juízo de possibilidade ou não de aplicação do conceito indeterminado ao caso concreto fica a cargo do administrador público, que preenche o espaço deixado pela lei, através de sua decisão. Os conceitos jurídicos indeterminados, tais como “interesse público”, “significativo impacto ambiental”, “boa-fé”, “probidade”, deixam ao aplicador da lei a liberdade de interpretação e aplicação desses conceitos jurídicos indeterminados ao caso concreto. Todavia, o judiciário brasileiro não possui um mecanismo de controle da legalidade das medidas da Administração. O judiciário brasileiro apenas pode analisar a possibilidade de 274 Ibidem, p. 274: “Essa proibição também vale para a alteração dos limites territoriais dos espaços, que somente poderão ser modificados através de lei. Por essa razão, está proibida não apenas a alteração dos espaços de que resulte prejuízo à integridade de seus componentes e a suas finalidades.” 120 haver um dano patrimonial ou moral ao meio ambiente, utilizando-se, para tanto, da ação civil pública, regulamentada pela Lei nº 7.437/1985, para a defesa dos interesses difusos da sociedade. Assim, a ação civil pública pode ser instaurada em defesa do meio ambiente e de bens de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico, entre outros. Esse controle pode ser realizado pela sociedade civil e pelo Ministério Público275. Deve-se lembrar, no entanto, que um controle judicial mais intenso dos atos administrativos não significa, necessariamente, um aumento da proteção ambiental. Dificilmente tem ocorrido de o Poder Judiciário se abster no controle dos atos administrativos. Muitas pessoas ou empresas, com elevado poder econômico e político, tem conseguido a liberação de projetos de legalidade duvidosa, como loteamentos e construções irregulares, através da justiça. Em vista da orientação outorgada pelas constituições federal e estaduais, pela progressiva proteção ambiental, ao judiciário, em princípio, apenas caberia o dever de cautela ao anular atos administrativos ou contrariar os efeitos de medidas que se dirigem contra degradações ou poluição do meio ambiente276. Na pós-modernidade, na era da informática, em que a informação precisa e rápida é sinônimo de poder, a intensificação da proteção ambiental dependerá, também, de um sistema capaz de fornecer as informações necessárias à proteção ambiental, de forma segura, fidedigna, eficiente e rápida e, ainda, colorida pela autenticidade e fé pública dessa informação, em resumo, com publicidade e segurança jurídica. A obtenção desse tipo de informação, colorida de autenticidade e fé pública somente será possível através de um sistema capaz de gerar publicidade e segurança jurídica. Este sistema já existe; trata-se do Registro de Imóveis. Onde mais seria possível a obtenção rápida e eficiente de informações fidedignas, seguras, livre de vícios e eivadas de fé pública, senão no Registro de Imóveis? 275 KRELL, Andreas Joachim. Discricionariedade administrativa e proteção ambiental: o controle dos conceitos jurídicos indeterminados e a competência dos órgãos ambientais: um estudo comparativo. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004, p. 61: “A ação civil pública em defesa dos interesses difusos da sociedade, que foi regulamentada pela Lei nº 7.437/85 e significou uma verdadeira revolução no sistema jurídico-processual brasileiro, pode ser instaurada em defesa do meio ambiente e de bens de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico (entre outros). Aqui, o juiz não controla diretamente a legalidade das medidas da Administração, mas deve analisar a questão de se há perigo de ocorrer um dano (patrimonial ou moral) ao meio ambiente ou aos valores citados, e, caso este já se tenha realizado, como o mesmo deve ser indenizado ou compensado.” 276 Idem, p. 57: “Nesses casos, a tão criticada abstenção ou “timidez” dos tribunais no controle dos atos administrativos dificilmente tem acontecido. Muito pelo contrário: inúmeras pessoas ou empresas, detentoras de elevado poder econômico e político, já conseguiram que a Justiça “liberasse” os seus projetos de legalidade mais do que duvidosa (v.g.: loteamentos e construções irregulares)... Visto que os textos das constituições federal e estaduais brasileiros apontam claramente na direção da progressiva proteção ambiental, o Judiciário, em princípio, deve ter a maior cautela em anular atos administrativos ou contrariar os efeitos de medidas que se dirigem contra degradações e poluição do meio ambiente.” 121 Na pós-modernidade afigura-se inconcebível a falta de publicização dos direitos. Na era da informação, da informática, das tecnologias avançadas, percebe-se claramente a necessidade de se ter acesso a informações corretas, objetivas e seguras, principalmente no que diz respeito aos negócios jurídicos entabulados entre as pessoas, sejam elas físicas ou jurídicas, privadas ou públicas. De modo geral, a publicidade consiste em exteriorizar uma situação, um fato ou um direito, difundindo-o, a fim de torná-lo conhecido de todos. A publicidade é a antítese da clandestinidade e deve ser utilizada de forma a possibilitar o acesso a todos ao conhecimento das situações publicadas, principalmente no que se refere à publicidade dos direitos resultantes das relações jurídicas, sejam elas provenientes de acordos de vontade (contratos firmados), sejam provenientes de determinações contidas na própria lei. O Registro de Imóveis constitui-se em órgão público, embora seja uma atividade exercida em caráter privado, destinado a garantir a publicidade, autenticidade, segurança e eficácia dos atos jurídicos277. Através do Registro de Imóveis é plenamente possível a obtenção de informações autênticas e seguras, inclusive acerca da existência de restrições ambientais sobre determinados imóveis, bem como sobre os efeitos que tais restrições ambientais geram. A Constituição Federal garante a todos o direito de receber dos órgãos públicos informações de seu interesse particular, coletivo ou geral e, ainda a obtenção de certidões em repartições públicas, para a defesa de direitos e esclarecimento de situações de interesse pessoal, conforme art. 5º, XXXIII e XXXIV, “b”. Há três tipos de interesses mencionados na norma constitucional: o particular, o coletivo e o geral. O interesse privado diz respeito às informações de cunho pessoal ou familiar, que podem coexistir com os demais tipos de interesse. O interesse coletivo é caracterizado por ser mais abrangente que o interesse particular, mas que não chega a ser geral, abrangendo grupo, categoria ou classe de pessoas. E o interesse geral é aquele que engloba um número de pessoas indefinidas, não se podendo precisar quem são os interessados na informação278. 277 Conforme se depreende do artigo 1º da Lei nº 8.935/1994: “Art. 1º. Serviços notariais e de registro são os de organização técnica e administrativa destinados a garantir a publicidade, autenticidade, segurança e eficácia dos atos jurídicos.” 278 MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito à informação e meio ambiente. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 57: “O interesse particular é aquele que se circunscreve à órbita pessoal ou familiar. Pode coexistir com os outros dois tipos de interesse – o coletivo e o geral -, ou pode estar nitidamente demarcado. O interesse coletivo é aquele que, sem ser geral, tem um espectro maior que o interesse particular, abrangendo grupo, categoria ou classe de pessoas. O interesse geral é aquele que abarca um número de pessoas indefinidas, com variados interesses.” 122 A Constituição Federal atribui a “todos” os direitos à saúde (art. 196), à educação (art. 205), à cultura (art. 215) e ao meio ambiente (art. 225) e, sendo assim, os destinatários desses direitos encontram-se na categoria de interesse geral. É de interesse geral, portanto, o acesso às informações relativas a direitos e restrições ambientais constantes de um sistema de Registros Públicos. Negar esse direito ao cidadão seria uma atitude antidemocrática. Todo cidadão pode ter interesse em conhecer o estado e a capacidade das pessoas com as quais tratam, buscando tais informações em um sistema de Registro Civil das Pessoas Naturais, bem como a situação jurídica dos bens que constituam o objeto de seus contratos279. Alcançar estas informações somente será possível através de um sistema de publicidade, como o sistema dos Registros Públicos. Intimamente ligado ao princípio da publicidade registral, encontra-se o princípio da fé pública. Os Registros Públicos foram investidos de fé pública, a fim de possibilitar a transmissão ao cidadão de informações realmente confiáveis, com a sinceridade de quem fornece tais informações e o espírito de confiança de quem as recebe. O sistema de Registro de Imóveis goza de fé pública e, por isso, é capaz de transmitir a verdade acerca da existência de certos fatos e atos jurídicos. Os órgãos que possuem fé pública têm por função a afirmativa geral, podendo lavrar atos e contratos, atestar a identidade das pessoas, letras, assinaturas e firmas (funções dos tabelionatos de notas), bem como registrar títulos de direito (função do Registro de Imóveis)280. Compete aos órgãos de fé pública e, em especial aos Oficiais de Registro, portanto, segundo Almeida Júnior281: [...] assegurar o estado das pessoas pelo registro de nascimentos, casamentos e óbitos, - assegurar os efeitos dos atos e contratos em relação a terceiros pela transcrição verbo ad verbum dos instrumentos particulares, - pela transcrição dos títulos de transmissão de imóveis e da instituição de ônus reais, pela inscrição das hipotecas, - pelo apontamento e registro de protesto de letras de câmbio e títulos de dívida. 279 MAZEUD, Henri; MAZEUD, Léon; MAZEUD, Jean. Lecciones de derecho civil. Tradução de Luis Alcalá- Zamora y Castillo. Buenos Aires: Ediciones Jurídicas Europa-América, 1962. Parte Tercera, v. 2., p. 321: “Los terceros tienen interés en conocer el estado y la capacidad de las personas con las cuales tratan – con ese fin, el legislador ha organizado la publicidad de las partidas del registro civil -; e igualmente, la situación jurídica de los bienes que constituyan el objeto de sus convenciones.” Tradução livre do autor: “Os terceiros tem interesse em conhecer o estado e a capacidade das pessoas com as quais tratam – com esse fim, o legislador tem organizado a publicidade dos elementos do registro civil – e igualmente, a situação jurídica dos bens que constituíam o objeto de suas convenções.” 280 ALMEIDA JÚNIOR, João Mendes de. Órgãos da fé pública. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1963, p. V: “Constituído pelo Estado para assegurar e transmitir a verdade da existência de certos fatos e atos jurídicos, os órgãos da fé pública têm por função a “afirmativa geral”, e são incumbidos de lavrar atos e contratos, de atestar a identidade das pessoas, das letras e das assinaturas e firmas, de registrar títulos de direito, de conservar os respectivos formais, de autenticar atos processuais.” 281 Idem, p., VII. 123 O sistema de fé pública atribuída aos Registros de Imóveis, ou seja, ao cargo de Oficial de Registro de Imóveis e não à pessoa que o detém, garante o que for publicizado pelo Oficial, em caráter juris tantum, ou seja, é verdadeiro até que se prove em contrário. Este é o efeito da fé pública registral, que poderá ser utilizada como meio de prova pré-constituída de fatos e atos jurídicos relacionados, também, às restrições de caráter ambiental promovida pelos órgãos públicos competentes. O sistema de Registro de Imóveis é também considerado como uma instituição pré- jurídica, no sentido de funcionar como meio preventivo de litígios futuros, com seu escopo de busca da paz social. A publicização de direitos em um sistema de Registro de Imóveis é capaz de evitar conflitos jurídicos futuros, face à segurança jurídica por ela externada e pelo seu efeito perante terceiros (erga omnes). O registro é o ofício onde se faz constar fatos e acontecimentos que ocorrem no cotidiano das relações jurídicas, capazes de resultar na aquisição, modificação, constituição, transferência, renúncia ou extinção de direitos reais sobre imóveis282. Os registros são uma necessidade de todos os tempos. A sua existência interessa à maioria das nações, pois, através do registro, é possível comprovar fatos de diferentes naturezas e objetos. O efeito imediato de todo registro está em ser guardião de todos os atos e fatos registrados. Trata-se do princípio da conservação do Registro de Imóveis. Em matéria ambiental, a informação deve ser garantida a qualquer pessoa, singular ou coletiva, pois abarca o interesse difuso ou coletivo. O meio ambiente pertence a quem deseja a informação e também àquele que se encontra inerte, isto é, não pediu para ser informado283. As autoridades públicas não são proprietárias das informações, mas apenas gestoras dessas informações, em nome da coletividade. A informação ambiental é uma informação pública que pertence às pessoas. O acesso à informação ambiental independe da comprovação de interesse pessoal. O Registro de Imóveis também possui a função de conservação das informações relacionadas aos bens imóveis neles registrados. O acesso a tais informações, que se dá através da 282 NERY, Argentino. Tratado teórico y práctico de derecho notarial. Buenos Aires: Depalma, 1980. v. 6, p. 1: “En sentido restringido, el vocablo “registro” es usado para señalar o referir a la oficina en donde se hacen constar debidamente ciertos hechos o acontecimientos que, voluntaria o involuntariamente, acaecen en la vida diária de relación, y que producen, como resultado, la adquisición, modificación, permutación o extinción de derechos y obligaciones.” Tradução livre do autor: “Em sentido restrito, o vocábulo “registro” é usado para assinalar ou referir o ofício onde se fazem constar devidamente certos fatos ou acontecimentos que, voluntária ou involuntariamente, ocorrem na vida diária de relação, e que produzem, como resultado, a aquisição, modificação, permuta ou extinção de direitos e obrigações.” 283 MACHADO, Paulo Affonso Leme. op. cit., p. 94: “A informação ambiental abarca o interesse difuso ou coletivo. O meio ambiente é de quem procura, deseja ou quer a informação, como também é de quem está apático, inerte, ou não pediu para ser informado.” 124 expedição de certidões, também independe da comprovação do interesse pessoal do requerente. Isso significa que qualquer pessoa, física ou jurídica, poderá se dirigir ao Registro de Imóveis e solicitar certidão de qualquer imóvel nele matriculado, sem sequer ter que justificar seu interesse pelas informações solicitadas. Urge, portanto, no direito brasileiro, a necessidade de publicização de direitos, fatos e atos jurídicos, de origem e cunho ambiental nas matrículas dos imóveis envolvidos, face à facilidade de acesso a informações autênticas, fidedignas e eivadas de veracidade e fé pública, visando maior transparência dos atos administrativos praticados, com relação às restrições ambientais, tais como as provenientes das unidades de conservação. 4.3 Averbação das restrições ambientais no registro de imóveis O direito de propriedade, ao longo dos anos, vem sofrendo inúmeras transformações. A propriedade plena e absoluta dos códigos oitocentistas está ficando no passado. Desde o Código de Napoleão de 1804, que serviu de inspiração para o Código Civil Brasileiro de 1916, assistimos a grandes transformações não só no direito de propriedade, mas em todo o direito privado. O Código Civil de 1916 tinha por característica a patrimonialidade e o individualismo, suas disposições eram focadas para a proteção do patrimônio em detrimento da valorização da pessoa. A partir da Constituição Federal de 1988, o direito privado e, em especial, o direito de propriedade foram sofrendo mutações no sentido de se privilegiar a pessoa em detrimento do patrimônio e do individualismo. A propriedade privada deixa de ser absoluta e passa a aceitar interferências de cunho social, principalmente após a consagração do princípio da função social da propriedade na Constituição Federal de 1988. O individualismo proprietário deixa de ser uma marca da propriedade, que passa a ser regida por um novo espírito, um espírito menos individualista, em prol da sociedade, devendo a propriedade atender a sua função social em detrimento dos interesses individuais do proprietário. Esse novo espírito social da propriedade ficou ainda mais evidente com o advento do Código Civil de 2002, que, ao contrário do Código Civil de 1916 que fora projetado para um país predominantemente rural, foi projetado para uma sociedade em que prevalece o sentido dinâmico da vida urbana. Ocorre a passagem do individualismo e do 125 formalismo do Código Civil de 1916 para o sentido socializante do Código Civil de 2002, numa composição equitativa de liberdade e igualdade284. A nova dimensão que se criou em torno da função social da propriedade acentuou a possibilidade de uma abertura na blindagem que existia em torno dos direitos do proprietário sobre o imóvel, havendo vários dispositivos legais que ensejam a prevalência do interesse social sobre os interesses particulares do proprietário, inclusive em se tratando de interesses sociais relacionados à proteção e preservação do meio ambiente. Exemplo dessas disposições legais que obrigam o proprietário a respeitar as interferências de interesse social em sua propriedade, especialmente no que pertine à proteção e preservação do meio ambiente, está localizada no mais privado dos códigos, no próprio Código Civil e se consubstancia no § 1º do artigo 1.228, que assim dispõe: § 1º O direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as suas finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam preservados, de conformidade com o estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas. Esse dispositivo legal representa, veementemente, que há uma abertura no próprio Código Civil, para a recepção pelo direito privado de interferências de direito público, no que diz respeito ao atendimento da função social da propriedade através do exercício do direito de propriedade em consonância com as suas finalidades econômicas e sociais. O texto deste dispositivo, inclusive abre a possibilidade de interferências do direito ambiental no exercício da propriedade ao determinar o dever de preservação da flora, da fauna, das belezas naturais, do equilíbrio ecológico e do patrimônio histórico e artístico, evitando-se a poluição do ar e das águas, de conformidade com o estabelecido em lei especial. O direito de propriedade poderá, portanto, sofrer interferências de interesse social, não apenas relacionados aos ditames constitucionais, mas também através de leis especiais que vislumbrem o atendimento da função social da propriedade, e, mais do que isso, o atendimento da função sócio-ambiental da propriedade. O artigo 1.228, §1º do Código Civil de 2002 é um marco de recepção pelo direito privado da função sócio-ambiental da propriedade. 284 REALE, Miguel. História do novo código civil. São Paulo: RT, 2005, p. 46: “Quando entrou em vigor o novo Código Civil, a 11 de janeiro de 2003, percebeu-se logo a diferença entre o Código de 1916, elaborado para um país predominantemente rural, e o que foi projetado para uma sociedade na qual prevalece o sentido dinâmico da vida urbana. Marcou, assim, uma passagem do individualismo e do formalismo do primeiro para o sentido socializante do segundo, mais atento às mutações sociais, numa composição equitativa de liberdade e igualdade.” 126 Diante desse quadro de possibilidade de recepção pelo direito privado de interferências de direito público e de cunho social, principalmente no que se refere ao direito de propriedade e sua relação com as restrições ambientais, afigura-se extremamente necessária a publicização das restrições ambientais na matrícula dos imóveis envolvidos, no Registro de Imóveis competente. A publicização de direitos no âmbito do Registro de Imóveis poderia ocorrer por dois atos distintos: o registro ou a averbação. O registro, em sentido estrito, é utilizado para os atos constitutivos, translativos ou declaratórios de direitos reais sobre imóveis. Desse modo, o ato do registro não seria o ato mais propício para a publicização de uma restrição ambiental, tendo em vista que esta não se constitui e não se transmite pelo ato do registro, nem mesmo é elevada pela lei à categoria de direito real. O ato de averbação é ato acessório, dependente de matrícula e de registro já efetuado. Não há averbação sem a pré-existência de matrícula e de registro. A matrícula e o registro são atos principais, a averbação, ato acessório. A acessoriedade da averbação, no entanto, não lhe retira a importância, traduz autenticidade, segurança, eficácia, além da publicidade, que representa um dos fins essenciais do Registro de Imóveis285. A averbação se diferencia do registro porquanto este é condição de eficácia do ato. A averbação, como ato acessório, se omitida, não atenta contra o ato principal, que subsiste. A averbação se constitui pela inserção na matrícula do imóvel de ocorrências que, por qualquer modo, alterem o registro. Utilizando-se da averbação o Oficial de Registro é capaz de suprir lacunas, erros e omissões da matrícula ou do registro, tais como nas retificações de área prevista nos artigos 212 a 214 da Lei nº 6.015/73. Pode utilizá-la, também, para complementar ou atualizar informações e dados constantes do registro, com relação ao imóvel ou à pessoa de seu titular. A averbação é ato que tem por finalidade levar a conhecimento de terceiros uma situação jurídica de fato, dando publicidade e gerando efeitos perante terceiros de uma circunstância capaz de influenciar no próprio registro, alterando-o, modificando-o, ou, até mesmo, extinguindo-o. O Oficial de Registro está autorizado por lei a utilizar o ato de averbação para o cancelamento de registros ou de outras averbações. O Oficial de Registro não procederá ao cancelamento de registros ou averbações, senão nos casos expressamente determinados em lei 285 CENEVIVA, Walter. Lei dos registros públicos comentada. 17. ed. atual. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 537: “Mantém-se, portanto, o caráter acessório da averbação, que depende de matrícula e de registro, em sentido estrito, lançado no cartório imobiliário. A acessoriedade não lhe reduz, todavia, a importância. Tem significado de autenticidade, segurança e eficácia como o próprio registro principal ao qual diz respeito. Repercute no sistema jurídico, especialmente quanto à publicidade, que é um dos fins essenciais do assento imobiliário, cabendo ao oficial adotar, para a averbação, as mesmas cautelas que observa no registro em geral.” 127 e com a adoção de todas as cautelas necessárias para o ato. O cancelamento de um ato de registro ou de averbação, devido à sua repercussão, é ato de alta periculosidade ao registrador, já que poderá prejudicar a parte interessada irremediavelmente. O cancelamento de um registro ou de uma averbação, realizado através de um ato de averbação, pode ter o efeito de aquisição de um direito, na medida em que ao se cancelar um ato que cancelava outro, seja de registro ou de averbação, o outro volte a ter validade, como efeito do princípio da continuidade registral. As averbações podem ter por objeto situações jurídicas que influenciam no registro, com relação à coisa ou em relação ao titular do direito real286. O efeito imediato da averbação é a publicidade das alterações ocorridas no ato principal, ou seja, em um determinado registro de um determinado imóvel, que poderá ser verificada por qualquer pessoa, a qualquer momento, de forma rápida e eficaz, de modo a prevenir e acautelar o cidadão que possua qualquer interesse no imóvel em questão. A averbação também possui o efeito de paralisar qualquer procedimento no registro enquanto não for feita, servindo como uma condição para o prosseguimento de um determinado ato. Assim, temos as averbações de casamento, separação ou divórcio, que, quando necessárias devido à alteração do estado civil do titular do direito real e, enquanto não realizadas, impedem o prosseguimento do ato de registro, com base no princípio da continuidade registral e no artigo 167, II, “5” da Lei nº 6.015/73287. Nestes casos, a omissão da averbação não importa em nulidade, mas em mera irregularidade que deverá ser sanada. Outro efeito que pode ser atribuído ao ato de averbação é o de tornar o Registro de Imóveis um acervo seguro e atualizado acerca do estado atual dos imóveis, informando a todos os interessados circunstâncias influentes na situação jurídica do imóvel, tais como a mudança de nome do titular do domínio, alterações que possam influenciar na sua capacidade, a mudança de numeração do prédio, os desmembramentos de terrenos ocorridos no imóvel, a existência de demandas em tramitação no foro judicial, a existência de ônus que recaem sobre o imóvel (cláusulas de indisponibilidade, incomunicabilidade ou inalienabilidade), a existência de restrições judiciais (penhora, arresto e seqüestro), e, inclusive, as restrições ambientais (área de preservação permanente, reserva legal, unidades de conservação). 286 SERPA LOPES, Miguel Maria de. Tratado dos registros públicos. 5ª ed. rev. e atual. pelo prof. José Serpa de Santa Maria.Brasília: Livraria e Editora Brasília Jurídica, 1995. v. 1, p. 174: “A averbação serve, em princípio, para tornar conhecida uma alteração da situação jurídica ou de fato, seja em relação à coisa, seja em relação ao titular do direito real.” 287 “Art. 167. No Registro de Imóveis, além da matrícula, serão feitos: I – o registro: ... II – a averbação: ... 5) da alteração do nome por casamento ou por desquite, ou, ainda, de outras circunstâncias que de qualquer modo, tenham influência no registro ou nas pessoas nele interessadas.” 128 O princípio da concentração, no sistema registral imobiliário brasileiro, pode ser atendido mais eficazmente, por atos de averbação. Tal princípio apregoa que a matrícula do imóvel deve ser o suporte em que se devem publicizar toda e qualquer situação que possa influenciar no imóvel ou na pessoa de seu titular, dispensando-se diligências outras que seriam necessárias para se alcançar a real situação jurídica do imóvel. Este princípio defende a necessidade de se transformar a matrícula em um repositório de informações e situações jurídicas, em que o interessado, através da obtenção da certidão do registro esteja de posse de todo o histórico jurídico de um determinado imóvel. Por meio do princípio da concentração é facilmente compreensível o motivo pelo qual a lei já determina a necessidade de publicização de atos translativos da propriedade, de atos de instituições de direitos reais, bem como de atos judiciais capazes de restringir a propriedade, tais como os atos constritivos (arrestos, embargos, seqüestros e penhoras), as ações pessoais e reais reipersecutórias, os protestos contra alienação de bens, as declarações de indisponibilidades, os decretos de utilidade pública, as servidões administrativas, entre outros atos que possam alterar a relação jurídica do bem e que possam ser oponíveis perante terceiros. O sistema registral imobiliário brasileiro, na sua finalidade maior de oferecer segurança jurídica ao cidadão, contribuindo para a paz social, está sempre na busca de aprimoramentos que possam proteger ainda mais os direitos registrados. Pelo princípio da concentração, o Registro de Imóveis considera que são oponíveis perante terceiros somente os direitos, fatos ou situações que constem expressamente de seus registros. Por este princípio, a segurança jurídica se projetaria apenas com relação aos atos registrados ou averbados na matrícula do imóvel, ou seja, apenas pelas situações constantes do registro. Uma vez registrados e averbados todos os atos, fatos e situações jurídicas pertinentes ao imóvel, na sua respectiva matrícula, a negociação imobiliária se tornaria muito mais simplificada, com diminuição de certidões e documentos que hoje se fazem necessários para os atos de registro e averbação, diminuindo o custo para os envolvidos no negócio imobiliário. Além disso, as informações necessárias estariam disponíveis em um único lugar, no lugar apropriado, que é o Registro de Imóveis, com a certeza da segurança oferecida pelas informações nele constantes. Através da averbação é possível atender ao princípio da concentração, fazendo-se publicizar, na matrícula do imóvel, todas as ocorrências ou atos que, mesmo não sendo constitutivos de direitos, ônus reais ou encargos, possam alterar, modificar, esclarecer ou extinguir determinados elementos constantes do direito real registrado. A segurança jurídica 129 estará prestigiada se todas as informações relevantes relativas ao imóvel puderem ser concentradas em um único documento, a matrícula do imóvel. O inciso II do artigo 167 da Lei nº 6.015/73 elenca os atos sujeitos a averbação. Todavia, tal rol não é exaustivo, e sim, meramente exemplificativo, em face do disposto no artigo 246 da mesma Lei: “Art. 246. Além dos casos expressamente indicados no item II do art. 167, serão averbadas na matrícula as sub-rogações e outras ocorrências que, por qualquer modo, alterem o registro.” O artigo 246 da Lei nº 6.015/73 consagra o caráter exemplificativo do artigo 167, II da mesma lei. Com efeito, abre-se o leque de possibilidades de se averbar qualquer situação que se encontre consubstanciada em documentos oficiais e que possua informações relevantes com relação ao imóvel ou ao seu proprietário. O princípio da concentração aliado aos princípios da segurança jurídica e da publicidade registral, aplicados na esfera ambiental, resultam em uma nova dimensão do Registro de Imóveis, abrindo-se um novo leque em sua atuação, através da averbação das restrições ambientais na matrícula do imóvel. Além disso, esse novo leque de atuação acaba por destacar ainda mais a função social do Registro de Imóveis, que deixa de ser visto como o órgão que tem por objeto a administração pública de interesses privados, para se transformar em um instrumento de segurança jurídica para a administração dos interesses coletivos ambientais. O bem ambiental, por sua natureza de direito difuso, transindividual, que interessa a toda a coletividade, merece proteção ambiental que deverá ser oportunizada pelo Poder Público a fim de proteger e preservar o meio ambiente para as presentes e futuras gerações. Em diversas oportunidades o Poder Público se utiliza do princípio da prevenção a fim de evitar a degradação ambiental decorrente de riscos conhecidos, já cientificamente comprovados. O bem ambiental deve ser protegido dos riscos capazes de causar a sua degradação. Os danos ambientais, em sua maioria, são irreparáveis e irreversíveis, e, por este motivo a sua prevenção é o melhor caminho para a preservação do meio ambiente. A prevenção de danos ambientais pode ser realizada através da averbação das restrições ambientais na matrícula do imóvel. O Registro de Imóveis possui um acervo de informações que, se bem utilizadas e devidamente aproveitadas, poderá contribuir e muito para a prevenção de danos ambientais conhecidos, previsíveis e iminentes, viabilizando a adoção de medidas por parte do Poder Público ou da coletividade, em tempo hábil, capazes de amenizar ou até mesmo impedir a sua ocorrência. 130 O Registro de Imóveis se constitui em um importante acervo de informações, que poderá colaborar imensamente com a prevenção de degradações ambientais. Na pós- modernidade, em que a informação é sinônimo de poder, o Registro de Imóveis se constitui em um dos mais importantes órgãos públicos da atualidade, contendo em seus registros informações valiosas para a proteção do cidadão, funcionando como um instrumento de prevenção de litígios, auxiliando na proteção ambiental ao publicizar situações, fatos ou atos jurídicos capazes de restringir o exercício do direito de propriedade em nome da sua função sócio-ambiental. Afigura-se de extrema importância a averbação das restrições ambientais na matrícula do imóvel, já que através da publicidade se atinge uma maior segurança jurídica, em atendimento aos princípios da informação e da prevenção, com a distribuição das informações para a sociedade em geral, bem como para os órgãos estatais de proteção ao meio ambiente. Em face da obrigação do Poder Público de proteção e defesa do meio ambiente ecologicamente equilibrado, é dever do cidadão dele exigir uma atuação favorável ao meio ambiente. A fiscalização da atuação do Poder Público pelo cidadão é direito garantido pelo Estado Democrático de Direito. O Registro de Imóveis pode exercer relevante papel ao fornecer ao cidadão a oportunidade de tomar conhecimento da situação jurídica de um determinado imóvel, inclusive acerca de questões ambientais. Tais informações poderão servir de alicerce para que o cidadão possa exercer o seu direito de fiscalização da atuação do Poder Público em matéria ambiental. A facilidade de acesso às informações constantes do acervo imobiliário, através da simples expedição de certidão, proporciona segurança jurídica e auxilia a atuação dos órgãos ambientais, que estarão cientes da situação jurídica e ambiental de um imóvel antes de tomar as providências pertinentes em prol do meio ambiente. Em termos de passivos ambientais, a sua publicidade na matrícula dos imóveis envolvidos é medida salutar. Eventuais terceiros interessados na aquisição dos imóveis envolvidos terão acesso às obrigações assumidas pelo proprietário do imóvel, tais como o dever de adoção de ações de controle, preservação e recuperação ambiental. Ao Estado assiste o interesse público de proteção ao adquirente de boa-fé. A ação civil pública e os termos de ajustamento de conduta porventura existentes poderão ser publicizados pela averbação nas matrículas dos imóveis, dando conhecimento a terceiros das restrições ambientais incidentes sobre os imóveis, prevenindo futuros litígios e preservando os direitos do terceiro de boa-fé. A publicidade ambiental no Registro de Imóveis é forma eficaz de prevenção dos futuros adquirentes. 131 No mundo pós-moderno, urge a necessidade de adaptação do Registro de Imóveis à função sócio-ambiental da propriedade, utilizando-se a estrutura do Registro de Imóveis e sua publicidade para a publicidade das restrições e informações de cunho ambiental. A estrutura do Registro de Imóveis afigura-se apropriada para tal desiderato por ser um serviço público exercido por profissionais qualificados por aprovação em concurso público, organizado territorialmente, facilitando o acesso a todos os brasileiros às informações constantes de seus registros e que possui estreitas relações com vários órgãos da administração pública, facilitando o tráfego das informações. Em recente decisão do Superior Tribunal de Justiça, datada de 22 de fevereiro de 2011, consubstanciada em Acórdão proveniente do RESP nº 1.161.300/SC, sendo recorrente Habitasul Empreendimentos Imobiliários Ltda, recorrido o Ministério Público Federal e relator o Ministro Herman Benjamin, é possível vislumbrar vários elementos que corroboram a importância e a finalidade das averbações das restrições ambientais na matrícula do imóvel. No referido Acórdão288, a Habitasul Empreendimentos Imobiliários interpõe Recurso Especial perante o Superior Tribunal de Justiça em face do Ministério Público Federal, em 288 PROCESSUAL CIVIL E AMBIENTAL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. ALEGAÇÃO DE COISA JULGADA. VIOLAÇÃO DO §3º DO ART. 267 DO CPC NÃO CONFIGURADA. NÃO-DEMONSTRAÇÃO DA DIVERGÊNCIA. AVERBAÇÃO DA DEMANDA NA MATRÍCULA DO IMÓVEL. LEGALIDADE. DIREITO DOS CONSUMIDORES À INFORMAÇÃO E À TRANSPARÊNCIA. PODER GERAL DE CAUTELA.1. Cuidam os autos de Ação Civil Pública proposta com o fito de obstar a construção de empreendimento imobiliário de grande porte em Área de Preservação Permanente situada em Jurerê Internacional, sem licenciamento do Ibama. O acórdão recorrido limitou-se a manter decisão liminar que determinou a averbação da demanda no cartório de registro de imóveis. 2. As peculiaridades do Termo de Ajustamento de Conduta, mencionadas em Memorial, não foram analisadas pelo Tribunal a quo, nem debatidas nos Aclaratórios ou no Recurso Especial, sendo inviável, nessa oportunidade, o pronunciamento do STJ. 3. Não está configurada a alegada violação do art. 267, § 3º, do CPC, porquanto o Tribunal de origem não afastou a possibilidade de reconhecimento, de ofício e em qualquer grau de jurisdição, da coisa julgada. Sua recusa em apreciá-la está justificada no fato de que tal preliminar já havia sido rechaçada por decisão anterior, pendente de recurso, sendo descabida e inoportuna a renovação da mesma questão. Nesse ponto, tampouco ficou demonstrada divergência jurisprudencial. 4. Quanto ao mérito, observo que a recorrente carece de interesse jurídico tutelável porque a averbação, em si, obrigação alguma lhe impõe, servindo apenas para informar os pretensos adquirentes da existência de Ação Civil Pública na qual se questiona a legalidade do empreendimento. 5. Na verdade, o interesse implícito da empresa, que não se mostra legítimo, é de que inexista prejuízo mediato à sua atividade comercial com a ampliação da publicidade acerca da demanda, em negativa ao direito básico à informação do consumidor, bem como aos princípios da transparência e da boa-fé , estatuídos pelo CDC. 6. Impende anotar que a averbação foi determinada na esteira de acórdão (questionado no REsp 1.177.692/SC) que deferira em parte a liminar pleiteada pelo Ministério Público para condicionar o prosseguimento das obras à prestação de caução imobiliária equivalente a 15% do valor comercial dos imóveis, para fins de compensação ambiental, bem como à ciência dos adquirentes. 7. Nesse contexto, o provimento encontra suporte no art. 167, II, item 12, da Lei 6.015/1973, que determina a averbação "das decisões, recursos e seus efeitos, que tenham por objeto atos ou títulos registrados ou averbados". 8. Ressalto ainda que, ao contrário do que sustenta a recorrente, o amparo legal para proceder à averbação não se restringe ao art. 167, II, da Lei 6.015/1973, porquanto o rol nele estabelecido não é taxativo, e sim exemplificativo, haja vista a norma extensiva do art. 246 da mesma lei. 9. Na hipótese, a averbação serve para tornar completa e adequada a informação sobre a real situação do empreendimento, o que se coaduna com a finalidade do sistema registral e com os direitos do consumidor. 10. Ademais, tal medida está legitimada no poder geral de cautela do julgador (art. 798 do CPC), que, a par da decisão liminar, considerou-a adequada para assegurar a necessária informação dos adquirentes acerca do litígio existente. 11. Recurso Especial não provido. 132 razão de Ação Civil Pública proposta pelo Ministério Público Federal com a finalidade de obstar a construção de empreendimento imobiliário de grande porte em Área de Preservação Permanente situada em Jurerê Internacional, sem licenciamento do IBAMA. O acórdão recorrido limitou-se a manter a decisão liminar que determinou a averbação da demanda no cartório de Registro de Imóveis. A parte recorrente alega, em síntese, a existência de coisa julgada e a ausência de previsão legal para a averbação determinada no acórdão do juízo a quo, com a seguinte ementa: ADMINISTRATIVO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. OBRAS DE DRENAGEM, ATERRAMENTO E CONSTRUÇÃO. IMPACTO AMBIENTAL, MEDIDAS ACAUTELATÓRIAS. ÁREA DE PRESERVAÇÃO. EMPREENDIMENTO HOTELEIRO. AVERBAÇÃO DA DEMANDA NO CARTÓRIO DE REGISTRO DE IMÓVEIS. PROTEÇÃO AO CONSUMIDOR. Tratando-se de obras com questionamentos ambientais, e tendo seu andamento sido condicionado à realização de medidas acautelatórias, a averbação da demanda em cartório de registro de imóveis é medida pertinente, em atenção ao direito de proteção ao consumidor adquirente. Interpretação dos arts. 125, III, do CPC, art. 247 da Lei 6.015/73 e art. 6º, IV, do CDC. O voto-vencedor do Acórdão do juízo a quo, negou provimento ao agravo em que o agravante pretendia a exclusão da averbação da demanda no Cartório do Registro de Imóveis, sob a alegação de que a publicidade característica da averbação divulgaria a situação do empreendimento, causando prejuízos mediatos à sua atividade comercial289. A motivação da negativa de provimento ao agravo se deu através de precedente da Turma, em que foi deferido o prosseguimento das obras, todavia com reserva de cautela imobiliária equivalente a percentual do empreendimento, para eventual compensação ambiental, devendo, ainda, informar aos adquirentes a existência da ação civil pública290. 289 A esse respeito, assim se pronunciou o Relator Ministro Herman Benjamin: “Inicialmente, observo que a recorrente carece de interesse jurídico tutelável, porque a averbação em si não lhe impõe restrição alguma, servindo apenas para informar os pretensos adquirentes da existência de Ação Civil Pública em que se questiona a legalidade do empreendimento. Na verdade, o interesse implícito da empresa é de que não haja prejuízo mediato à sua atividade comercial com a ampliação da publicidade acerca da situação do empreendimento, em negativa do direito básico à informação dos consumidores, bem como aos princípios da transparência e da boa- fé, o que não se mostra legítimo.” 290 Assim se pronunciou o referido voto-vencedor: “Com a devida vênia, divirjo em parte do eminente Relator, para negar provimento ao agravo no ponto em que pretende o agravante a exclusão da averbação da demanda no Cartório do Registro de Imóveis. E assim o faço porque recentemente esta Turma apreciou o Agravo de Instrumento nº 2006.04.00.032821-4/SC em que, por voto médio, foi deferido o prosseguimento das obras, todavia com reserva de cautela imobiliária equivalente a percentual do empreendimento, para eventual compensação ambiental, devendo, ainda, informar aos adquirentes a existência da ação civil pública. De modo que a averbação da demanda em cartório de registro de imóveis tem pertinência complementar com o que já decidido pela Turma. Interpretação dos artigos 125, III do CPC, art. 247 da Lei 6.015/73 e art. 6º, IV do CDC.” 133 O juízo a quo já vinha demonstrando a importância da averbação da existência da Ação Civil Pública na matrícula do imóvel objeto do empreendimento, bem como a necessidade de se publicizar uma situação jurídica que teria influência direta na proteção de terceiros interessados no empreendimento, o que ajudaria não somente a sociedade a se prevenir de litígios futuros, bem como atenderia ao princípio da informação sob duas esferas: no direito de defesa do consumidor e no direito ambiental. Mais adiante, em seu relatório, o Ministro Herman Benjamin, afasta a alegação de falta de respaldo jurídico para a averbação em questão, com base no artigo 167, II, item 12, da Lei nº 6.015/73 (Lei dos Registros Públicos), e enfatiza não ser este o único dispositivo legal que embasaria sua tese, ao evocar o artigo 246 da mesma lei, que amplia o rol de atos sujeitos a averbação, tornando-o meramente exemplificativo291. Em continuação, o Ministro Herman Benjamin, salienta a importância da medida que determinou a averbação da existência da Ação Civil Pública na matrícula do imóvel objeto do empreendimento para a tutela do meio ambiente e das relações de consumo, fazendo menção ao Parecer 155/2006E, elaborado pelos juízes Álvaro Luiz Valery Mirra, Ana Luiza Villa Nova, Roberto Maia Filho e Vicente de Abreu Amadei, e aprovado pelo Corregedor-Geral de Justiça do TJ/SP, Desembargador Gilberto Passos de Freitas, em resposta a consulta elaborada pelo Ministério Público e pela Companhia de Tecnologia de Saneamento Ambiental do Estado de São Paulo – Cetesb. No referido Parecer, ressaltam os juízes, ser admissível e relevante averbar em registro imobiliário declaração emitida pela Cetesb de área contaminada por substâncias tóxicas, a fim de promover ampla publicidade da situação do imóvel, não só pelos problemas causados à saúde e ao meio ambiente, mas também ao patrimônio. Além disso, assim se pronunciam292: Em resumo, o valioso estudo assenta-se no princípio da informação que rege, simultaneamente, o Direito Ambiental e o Direito do Consumidor; na ausência de 291 A esse respeito, assim se pronunciou o Relator Ministro Herman Benjamin: “Ressalto ainda que, ao contrário do que sustenta a recorrente, o embasamento legal para a averbação não se restringe ao art. 167, II, da Lei 6.015/1973, tendo em vista que o rol nele estabelecido não é taxativo, e sim exemplificativo. Tal conclusão decorre da norma contida no art. 246 da mesma lei, de seguinte teor: Art. 246 – Além dos casos expressamente indicados no item II do artigo 167, serão averbados na matrícula as subrogações e outras ocorrências que, por qualquer modo, alterem o registro. Na hipótese, insisto, a averbação serve para tornar completa e adequada a informação sobre a real situação do empreendimento, o que se coaduna com a finalidade do sistema registral e com os direitos dos consumidores, conforme esclarecido alhures.” 292 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Processual civil e ambiental. Ação civil pública. Alegação de coisa julgada. Violação do §3º do art. 267 do CPC não configurada. Não-demonstração da divergência. Averbação da demanda na matrícula do imóvel. Legalidade. Direito dos consumidores à informação e à transparência. Poder geral de cautela. Acórdão em Recurso Especial nº 1.161.300-SC. Habitasul Empreendimentos Imobiliários Ltda e Ministério Público Federal. 2ª Turma STJ. Relator: Ministro Herman Benjamin. DJe, 20 maio 2011.Disponível em: . Acesso em: 01 jun. 2011. 134 rol taxativo da hipótese de averbação, ante a norma extensiva contida no art. 246 da Lei 6.015/1973; e na hodierna necessidade de integração do sistema de registro imobiliário com a tutela ambiental, seja pela função social da propriedade, pelas novas frentes de Direito Público (urbanístico e ambiental), seja pela “necessidade de fomento da segurança jurídica inerente ao próprio sistema de publicidade registral- imobiliária”. Não restam dúvidas, portanto, que o Registro de Imóveis, hoje, assume uma nova dimensão, tendo múltiplas funções sociais: além de sua função precípua de proteção do direito de propriedade, assume funções secundárias, mas de significativa relevância, atuando como instrumento protetivo-social e de controle urbanístico e ambiental, integrando-se aos novos ramos do direito (direito agrário, direito urbanístico, direito ambiental, etc.). Conclui seu relatório, o Ministro Herman Benjamin, decidindo por negar provimento ao Recurso Especial, sendo seguido pelos demais Ministros componentes da 2ª Turma do STJ, de forma unânime, confirmando, portanto, a importância e a necessidade da utilização do Registro de Imóveis como um instrumento de publicidade e segurança jurídica na proteção ambiental, através da averbação das ocorrências, fatos, atos, situações ou restrições ambientais que possam gerar efeitos sobre o imóvel ou seu proprietário. O Brasil ainda está engatinhando em termos de utilização do Registro de Imóveis como instrumento de proteção ambiental. Mas esta é uma tendência que paulatinamente acabará por se impor neste país. Existem experiências registrais que se revelam mais avançadas em termos de proteção ambiental através do Registro de Imóveis, como no caso do sistema registral espanhol. O sistema de Registro de Imóveis da Espanha é modelo ideal de publicidade ambiental. Ele parte da premissa de que qualquer mecanismo de proteção do meio ambiente que pretenda ser realmente efetivo necessita de um sistema de coleta e sistematização das informações, para, posteriormente, sobre essa base, executar políticas de proteção ambiental com a adoção de medidas de restabelecimento e reparação, quando necessárias. Este sistema de coleta e sistematização de informações, para alcançar maior eficácia, somente pode ser através do Registro de Imóveis293. 293 RAMOS, Joaquín Delgado. La protección registral del medio ambiente. Madrid: Fundación Registral, 2007, p. 10: “Pero lo que sí constituye una premisa común es la percepción de que cualquier mecanismo de protección medioambiental que pretenda ser efectivo precisa articular un sistema de recogida y sistematización de la información pertinente, para, sobre la base del mismo, ejecutar políticas de protección preventiva y conservación, de fomento de recursos naturales renovables, asignación ordenada de recursos, y adopción de medidas de restablecimiento y reparación cuando sean precisas. Y esa herramienta básica de partida suele ser, en unos casos, un sistema de inventario. O bien, para alcanzar mayor eficácia, un sistema de registro.” Tradução livre do autor: “Mas o que se constitui uma premissa comum é a percepção de que qualquer mecanismo de proteção do meio ambiente que queira ser efetiva precisa articular um sistema de coleta e sistematização da informação pertinente, para, sobre a base do mesmo, executar políticas de proteção preventiva e conservação, de fomento de recursos naturais renováveis, atribuição ordenada de recursos, e adoção de 135 O sistema espanhol considera que mesmo que os sistemas de registros jurídicos, como o Registro de Imóveis, o registro de bens móveis e o registro mercantil, tenham sido criados com uma finalidade alheia às preocupações ambientais, oferecem características idôneas para servir também, com eficácia, para a efetiva proteção do meio ambiente294. Todo registro imobiliário possui uma base territorial de atuação. Esta característica faz do Registro de Imóveis um meio idôneo de proteção ambiental, podendo reunir e coordenar todas as qualificações legais ou administrativas dos imóveis. A presença de registros imobiliários em todas as comarcas facilita e muito o acesso às informações registradas ou averbadas pelo cidadão e pelos entes públicos e com isso aproxima o cidadão das políticas públicas de proteção ambiental. Além disso, a facilidade de acesso a tais informações propicia um maior controle da situação jurídico-ambiental dos imóveis, pelos entes públicos. O Registro de Imóveis é um ofício público, a cargo de um funcionário público qualificado, habituado ao tratamento e controle das informações que recebe, sistematizando- as em bases de dados, capaz de publicizar e fornecer as informações constantes de seus registros a quem for interessado em obtê-las. A estrutura do Registro de Imóveis, portanto, é ideal para abarcar essa nova função de prevenção de danos ambientais, bem como para o tratamento das informações e sua disponibilização à sociedade. A utilização de novas tecnologias em matéria de redes de computadores, internet e a informatização crescente dos serviços de Registros está caminhando para oferecer, no futuro, uma centralização de informações registrais, a alcance de todos, inclusive com conexões diretas entre os Registros de Imóveis e os órgãos da administração, facilitando o tráfego das informações e aprimorando o controle dos imóveis gravados com restrições ambientais de qualquer gênero. Através do Real Decreto Ley 5/2004, a Espanha criou o Registro Nacional de direitos de emissão de gases de efeito estufa, a fim de oferecer proteção ambiental com medidas de restabelecimento e reparação quando forem necessárias. E essa ferramenta básica de partida costuma ser, em alguns casos, um sistema de inventário. Ou, para alcançar uma maior eficácia, um sistema de registro.” 294 Idem, p. 11: “Y, por outro lado, se há sabido aprovechar, aunque todavía hoy sólo en parte, la existencia de los registros propiamente jurídicos, a saber, el registro de la propiedad inmueble, el registro de bienes muebles y el registro mercantil, que, aunque nacieron con una finalidad concreta y ajena a las preocupaciones medioambientales, como es la de servir a la seguridad jurídica del trafico inmobiliario y mercantil, y con ello, al progreso económico, sí que ofrecen al legislador unas características idôneas para servir también con eficácia, en los nuevos tiempos que así lo demandan, a la efectiva protección del medio ambiente.” Tradução livre do autor: “E, por outro lado, se tem sabido aproveitar, ainda que somente em parte, a existência dos registros propriamente jurídicos, a saber, o registro da propriedade imóvel, o registro de bens móveis e o registro mercantil, que, ainda que tenham nascido com uma finalidade concreta e alheia à das preocupações com o meio ambiente, como é a de servir à segurança jurídica do tráfego imobiliário e mercantil, e com isso, ao progresso econômico, oferecem ao legislador umas características idôneas para servir também com eficácia, nos novos tempos que assim o exigem, à efetiva proteção do meio ambiente.” 136 relação ao ar atmosférico e à qualidade do ar. As informações relevantes acerca das restrições impostas pelos órgãos ambientais competentes passam a ser publicizados na matrícula dos imóveis, tornando públicas as obrigações que foram impostas ao proprietário do imóvel, e, prevenindo futuros interessados no imóvel das restrições ambientais que deverão assumir caso venham a adquirir tal bem. Essa publicização acaba por auxiliar, inclusive, na formação de uma conscientização ecológica, deixando os proprietários dos imóveis cientes de que a função social da propriedade também se cumpre através do respeito ao meio ambiente. Por todas essas características inerentes ao Registro de Imóveis, conforme Joaquín Delgado Ramos “podría perfectamente configurarse el Registro de la Propiedad como ‘Oficina de información medioambiental’”295, podendo ser integrado no registro a cartografia ambiental, com todas as informações relevantes. A integração da cartografia registral com outras cartografias tais como a cadastral e urbanística, utilizando-se de sistemas informatizados capazes de armazenar os dados, através de uma publicidade notícia, sem necessidade de submeter os dados coletados ao rigor das exigências registrais, salvo nos casos especiais e com os requisitos que em cada caso sejam determinados legalmente, representaria um eficiente instrumento de controle das restrições ambientais. O sistema registral espanhol não dispõe a informação ambiental na matrícula do imóvel nos casos das informações cartográficas, em que as informações ambientais são arquivadas em programas gráficos existentes no registro, com critérios provenientes da Directiva 90/313 da CEE, trasladada ao ordenamento espanhol pela lei 38/95296. Através desse sistema informatizado é possível a integração de toda a informação cartográfica, utilizando-se das bases gráficas georreferenciadas e digitalizadas, permitindo a sobreposição destas com os registros, com a integração gráfica de espaços protegidos ou parques naturais, solos contaminados, níveis de risco de incêndio, superfícies a reflorestar, mapas de ruído, domínio público marítimo terrestre, entre outros. É permitido e utilizado no sistema registral espanhol a realização de um assento registral nos livros das informações relativas ao meio ambiente, podendo ser objeto de publicidade formal, por uma simples certificação. Este assento registral pode ser realizado por 295 Ibidem, p. 15. Tradução livre do autor: “poderia perfeitamente configurar-se o Registro de Imóveis como ‘Escritório de informações relativas ao meio ambiente’”. 296 Ibidem, p. 17: “En ocasiones, la información medioambiental no tiene su expresión en los libros registrales, sino sólo en los archivos auxiliares y programas gráficos existentes en el registro, aplicando critérios emanados de la Directiva 90/313 de CEE, trasladada al ordenamiento español por ley 38/95, o de Directivas posteriores, pendientes de transposición.” Tradução livre do autor: “Em alguns casos, a informação relativa ao meio ambiente não é expressa nos livros registrais, mas somente nos arquivos auxiliares e programas gráficos existentes no registro, aplicando critérios emanados da Directiva 90/313 de CEE, trasladada al ordenamiento español por ley 38/95, ou de Diretivas posteriores, pendentes de transposição.” 137 aquilo que os espanhóis denominam de “notas marginales”, ou seja, anotações à margem, que correspondem às averbações do sistema registral brasileiro e possuem um efeito de mera publicidade notícia, dando a conhecer a quem interesse a qualificação ou situação ambiental do imóvel. As “notas marginales” do sistema espanhol podem ser utilizadas inclusive para publicizar as licenças e autorizações administrativas ambientais. O Registro de Imóveis afigura-se no sistema ideal para o controle das informações necessárias para uma eficiente proteção ambiental, pois além de ser o único órgão público capaz de garantir o direito de propriedade ao cidadão, bem como os direitos reais que recaem sobre os bens imóveis, é o único sistema capaz de oferecer ao cidadão que pretende transmitir ou adquirir um terreno as informações e características urbanísticas e ambientais do imóvel. Seria um contra-senso que o interessado no imóvel tenha que recorrer a vários outros órgãos públicos a fim de reunir as informações necessárias para a realização do negócio. Desse modo, a centralização das informações pertinentes ao meio ambiente e suas restrições ambientais no sistema de Registro de Imóveis, além de oferecer a facilidade na obtenção das informações, gera fé pública e segurança jurídica. O Registro de Imóveis poderá se tornar um provedor de informações ambientais necessárias para a própria administração pública, que necessita conhecer a titularidade do território sobre o qual opera quando este for de domínio privado, como também pode aproveitar em seu favor a proteção registral quando o terreno for de titularidade pública, podendo inclusive assegurar a efetividade perante terceiros dos expedientes administrativos protetores ou restauradores do meio ambiente. O controle das áreas de interesse ambiental, como as áreas de preservação permanente, as unidades de conservação, bem como quaisquer outras que possam sofrer restrições ambientais à sua utilização, ao exercício do direito de propriedade, ou até mesmo, que venham a impedir sua transmissão, se tornará muito mais eficiente com o auxílio do Registro de Imóveis. O registrador imobiliário deverá proceder à qualificação registral dos títulos levados a registro ou averbação, impedindo que se efetuem tais atos quando consubstanciados em títulos que se apresentem em desconformidade com a lei ou que porventura já se encontrem inscritos em seus registros. O dever de qualificação dos títulos evita o acesso ao álbum imobiliário de situações já registradas ou averbadas impedindo o lançar de registro ou averbação de restrição ambiental em duplicidade ou sobre o imóvel errado. No sistema registral espanhol, o registrador possui a obrigação de, após efetuar uma restrição ambiental sobre um determinado imóvel, oficiar aos órgãos da Administração 138 Pública para seu conhecimento, permitindo que estes possam reagir frente a assentos registrais que possam ser considerados prejudiciais a seus direitos ou interesses297. Ainda com relação ao sistema registral espanhol cumpre destacar que as edificações dependerão de licença municipal de obras e de um certificado técnico que certifique a adequação da obra ao projeto aprovado pela licença, todavia, para a outorga da licença, a legislação espanhola prevê a possibilidade de exigência de requisitos ambientais que deverão ser cumpridos pelo construtor proprietário. Neste cenário, o Registro de Imóveis apenas procederia à averbação da construção em face da licença municipal e do certificado da adequação da obra ao projeto aprovado, pois somente após a apresentação de tais documentos teria a certeza da fiscalização da obra pela Administração municipal, bem como do atendimento de todas as exigências, inclusive as de caráter ambiental que possam ter sido feitas pelos órgãos competentes. Assim como as restrições ambientais são publicizadas através do Registro de Imóveis na Espanha, o Brasil poderia adotar sistema semelhante, procedendo às averbações das restrições ambientais nas matrículas dos imóveis, com base em documentos oficiais emanados dos órgãos ambientais competentes. O processo de adoção de um sistema semelhante ao da Espanha no Brasil é possível, tendo em vista a semelhança existente entre os sistemas registrais de ambos os países. O caminho está aberto, basta uma intensificação dos serviços de informatização dos Ofícios de Registro de Imóveis brasileiros e vontade política para a adequação da legislação brasileira a essa nova tendência pós-moderna de publicização de direitos. Inúmeras são as vantagens provenientes da publicização das restrições ambientais através do Registro de Imóveis, tanto para o cidadão como para o Poder Público e os competentes órgãos ambientais. A degradação do meio ambiente somente poderá ser realmente controlada através de um sistema capaz de prevenir futuros danos ambientais, publicizando as regras de aproveitamento e utilização do solo nas respectivas matrículas. Esta simples providência informará com eficiência os proprietários dos imóveis acerca do cumprimento da função sócio-ambiental da propriedade, educando-os a exercer o direito de propriedade de forma racional e sustentável. 297 Ibidem, p. 32: “La obligación impuesta al Registrador de comunicar a posteriori ciertas inscripciones permite en todo caso a la Administración conocer y reaccionar frente a aquellos asientos registrales que estime perjudiciales a sus derechos o interesses.” Tradução livre do autor: “A obrigação imposta ao Registrador de comunicar posteriormente certas inscrições permite em todo caso à Administração conhecer e reagir frente a aqueles assentos registrais que estime prejudiciais a seus direitos ou interesses.” 139 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS A proteção da propriedade privada no Direito Romano era um tanto quanto precária. A inexistência de um sistema de registro de propriedades exigia sua proteção por meio de ações. Os romanos dividiam os bens em res mancipi e res nec mancipi, correspondendo aos bens móveis e imóveis, respectivamente. A transferência ou alienação das res nec mancipi era mais natural e simples e consistia na transmissão da posse ou traditio. No que pertine a res mancipi, a transmissão era solene e pública, através da mancipatio ou da in iure cessio, além da necessidade da auctoritas tutoris para as mulheres que alienavam. Desde os romanos, portanto, a transmissão da propriedade requeria atos solenes e públicos. A proteção da propriedade somente ocorria através de duas ações principais, a reivindicatio e a actio negatória. Faltava, portanto, aos romanos, um sistema que simplificasse a aquisição da propriedade e confiasse segurança jurídica aos proprietários e aos demais cidadãos. O direito de propriedade entre os romanos era baseado na autonomia do proprietário, que possuía o pleno domínio do imóvel, nele podendo realizar o que bem entendesse, podendo o pater famílias adquirir ou alienar os bens imóveis, sem que ninguém tivesse o direito de impugnar a alienação ou impor limites a ela. A propriedade era extremamente individualista e patrimonialista. O proprietário possuía poder absoluto sobre o imóvel. Com a chegada do feudalismo, as fronteiras entre o privado e o público começam a esmorecer. No sistema feudal, o senhor feudal é o proprietário da terra e também a autoridade pública no seio da comunidade que vive em suas terras. Após a Revolução Francesa, o feudalismo deixa de existir e a propriedade passa a um modelo liberal-individualista, favorecendo o livre acesso e circulação da propriedade. Com o advento do Código Civil Francês de 1804, a propriedade volta a ter características individualistas e patrimonialistas, o que acabou, posteriormente, por inspirar o Código Civil Brasileiro de 1916. A codificação surge na esperança de se enfeixar, no código, todas as soluções e hipóteses jurídicas necessárias para a resolução dos futuros conflitos jurídicos. Era o dogma da completude. Essa crença no código como uma coletânea de hipóteses jurídicas suficientes para resolver todos os problemas futuros, com o tempo, revelou a insuficiência do código para tal desiderato. 140 Surge a descodificação, que faz com que o código deixe de ser aquele rol infalível de hipóteses jurídicas. Os valores da sociedade não são mais aqueles da sociedade liberal. Estes valores, outrora encontrados no Direito Civil, agora estão nas Constituições. A Constituição Federal é que positiva os direitos concernentes à justiça, segurança, liberdade, igualdade, propriedade, herança, que antes estavam no Código Civil. Com a Constituição Federal, surge outro fenômeno, o da constitucionalização do direito privado. Este fenômeno apregoa a necessidade de interpretações sistemáticas do direito, de modo que o direito privado sempre deverá ser interpretado à luz da Constituição Federal, como forma de integração de normas públicas e privadas, acarretando na socialização de direitos privados. A crescente intromissão do Estado na autonomia individual faz surgir correntes socializadoras do direito de propriedade. A concepção romana de propriedade, de caráter individualista, entra em declínio. A garantia do direito de propriedade somente é possível através de um sistema que ofereça publicidade e segurança jurídica nos negócios imobiliários. O crescimento do comércio e a necessidade de crédito fazem surgir os Ofícios de Hipoteca que, após o Código Civil de 1916 são, pela primeira vez, denominados de Registro de Imóveis. A transmissão da propriedade passa a se dar através do registro no Registro de Imóveis de sua situação. O Registro de Imóveis acaba preenchendo esse papel, como garantidor de publicidade e segurança jurídica nos negócios imobiliários. A segurança jurídica que o Registro de Imóveis proporciona se dá através de atos de registros e averbações e da publicidade que lhe é inerente. A publicidade do Registro de Imóveis se dá por meio da expedição de certidões a todo e qualquer cidadão interessado, possibilitando conhecer a situação jurídica do imóvel de forma segura e precisa. O artigo 225 da Constituição Federal refere que o meio ambiente ecologicamente equilibrado é bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, porém, após a vigência do Código de Defesa do Consumidor, o bem ambiental passa a ter natureza difusa, não sendo de propriedade do Estado nem do particular, mas, sim, pertencente à coletividade. O Estado passa a ser mero gestor dos bens ambientais, devendo protegê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações. O direito de propriedade, atualmente, deve ser exercido em consonância com as normas ambientais, evitando-se a degradação do meio ambiente, a fim de garantir sua defesa e proteção, sob pena de se descumprir o comando do artigo 5°, XXIII, da Constituição Federal, que obriga o atendimento à função social da propriedade. 141 O proprietário de terreno que pretender utilizá-lo para a instalação de atividade potencialmente causadora de significativa degradação ao meio ambiente, segundo o inciso IV do § 1° do artigo 225 da Constituição Federal, deverá atender à exigência do Poder Público de realização de Estudo Prévio de Impacto Ambiental, a que se dará publicidade. A publicidade relativa ao Estudo de Impacto Ambiental realizado sobre o imóvel onde se instalaria a atividade potencialmente causadora de dano ao meio ambiente poderia ser muito bem atendida através da publicidade inerente ao serviço do Registro de Imóveis. A antiga dicotomia público/privado está ultrapassada. O direito público interfere nas relações privadas, inclusive no atendimento da função social da propriedade. O direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado e à sadia qualidade de vida é um direito difuso, que perpassa os limites do indivíduo, mas não deixa de incluí-lo em um regime jurídico diferenciado que propicia a toda a coletividade a fruição do bem ambiental. O direito de propriedade, portanto, é instituto de direito privado, porém, vinculado aos ditames da Constituição Federal, da função social, do poder público, da lei, bem como ao respeito aos direitos da coletividade e ao meio ambiente. A partir do Estado liberal de direito, o cidadão passa a ser capaz de se proteger das interferências do Estado em sua vida privada. O Estado começa a sofrer limitações ao reconhecer as garantias próprias dos indivíduos como a liberdade individual, a liberdade de comércio, a liberdade de contratar e o direito à propriedade privada. Com o desenvolvimento econômico e social, a política liberal não mais servia como modelo de Estado por si só, surgindo a necessidade de um novo modelo de Estado, capaz de intervir no domínio econômico. A sociedade clamava por um Estado intervencionista. Dá-se, a partir daí, a transição do Estado Liberal de Direito para o Estado Social de Direito, com finalidades sociais e econômicas, na busca do bem comum e da justiça social. O Estado Social de Direito, mesclado ao Estado Liberal, não atende de forma eficiente as inúmeras demandas sociais. A sociedade, insatisfeita, busca a igualdade, através de um Estado Democrático de Direito. Nesse modelo, o Estado busca garantir o constitucionalismo, os direitos individuais do cidadão, os direitos fundamentais e os direitos coletivos, bem como a igualdade e a dignidade humana e, ao mesmo tempo, impõe limites ao exercício de tais direitos. Com o Estado Democrático de Direito, acentua-se a função social da propriedade. Esta aparece como uma reação anti-individualista do exercício da propriedade, que atua através de limites de direito público, impostos sobre o exercício privado da propriedade, buscando o seu uso racional e sustentável. 142 A função social da propriedade, além de outras metas, busca evitar apropriação do solo para fins meramente especulativos, que acaba por produzir instabilidade social, violência, criminalidade, a concentração da riqueza nas mãos de poucos e o aumento da miséria. A utilização irracional da terra e do espaço urbano é a principal causa da violência social. A construção de uma sociedade livre, justa e solidária, a erradicação da pobreza e da marginalização, bem como a redução das desigualdades sociais e regionais, que são objetivos da República Federativa do Brasil, consoante o artigo 3°, I e III, da CF/88, dependem também do tratamento dado ao instituto da propriedade. A propriedade deve atender aos interesses da sociedade e não exclusivamente ao interesse do seu único proprietário. A função social não transforma a propriedade em um patrimônio coletivo, apenas o seu exercício está condicionado aos interesses sociais. Pode-se dizer, portanto, que apenas merece proteção constitucional a propriedade que cumpre sua função social, em sua dimensão econômica e sócio-ambiental. O exercício do direito de propriedade deve ser de modo a satisfazer as necessidades do proprietário, sem comprometer os recursos naturais necessários para a subsistência das futuras gerações. Trata-se do princípio do desenvolvimento sustentável, aplicado ao exercício do direito de propriedade. O desenvolvimento somente poderá ser considerado sustentável na medida em que for capaz de responder às necessidades do presente, sem esgotar os recursos naturais, reservando um estoque desses recursos para as gerações futuras. Assim, a exploração dos recursos naturais não pode ser superior ao crescimento natural dos mesmos. A publicização dos direitos é uma tendência da pós-modernidade. As formas de proteção ambiental merecem ser publicizadas. A publicização de direitos traz maior segurança jurídica. Com a Revolução Industrial, a produção em massa e a publicidade, criam-se necessidades de consumo, persuadindo as pessoas ao consumo pelo consumo. O consumo desenfreado traz enormes prejuízos ao meio ambiente. O esgotamento dos recursos naturais é a consequência imediata. No mundo pós-moderno de estilos e padrões de vida concorrentes, aqueles que não forem capazes de serem seduzidos pelo mercado consumidor são considerados a sujeira da pureza pós-moderna, levando-se em consideração que, no mundo pós-moderno, o critério de pureza é a aptidão de participar do jogo consumista. O homem busca sua identidade no mundo pós-moderno através dos bens de consumo, para satisfazer o sentimento de que é preciso “ter” para se inserir na sociedade, mas também procura afirmar sua personalidade, na tentativa de alcançar um lugar de destaque e “ser” uma referência para a sociedade. 143 Vivemos na era da tecnologia e da informática. Hoje, a informação, a comunicação representa poder. Na pós-modernidade, a publicidade não se aplica apenas às relações de consumo. A publicização do direito é uma tendência que foi acentuada na pós-modernidade. O direito, que sabidamente anda a reboque dos fatos sociais, paulatinamente se insere nesta nova tendência de publicização do direito. A tendência de publicização do direito privado faz com que, cada vez mais, se torne difícil a distinção entre direito público e direito privado. Mas o direito é uno e, por isso, deve ser interpretado de forma sistêmica. Em face do princípio da unidade do sistema jurídico e da superioridade dos valores e princípios insculpidos na Constituição Federal, não se pode mais aceitar a separação entre Estado e sociedade civil, no sentido de se ter a Constituição Federal como lei do Estado e o Código Civil como lei da sociedade civil. Hodiernamente, a apropriação de bens ambientais, no sistema constitucional vigente, depende das características propostas para a ordem econômica e para as relações de produção. A Constituição propõe um novo significado para a ordem econômica e define-a como uma economia social e ecológica de mercado, em que as relações de produção e de apropriação sobre os recursos naturais passam a ter, por base, a proteção da propriedade privada sobre os bens. O Poder Público tem a incumbência de definir, em todos os Estados da Federação, espaços territoriais e seus componentes a serem especialmente protegidos, sendo a alteração e a supressão permitidas somente através de lei, vedada qualquer utilização que comprometa a integridade dos atributos que justifiquem sua proteção. A esses espaços, sejam públicos ou privados, a lei deve assegurar sua relativa imodificabilidade e sua utilização sustentável, de modo que a modificação dos limites territoriais desses espaços fica condicionada à lei. O Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC) tem como função definir as formas de ocupação de espaços territoriais especialmente protegidos, através da definição de espécies diferenciadas de unidades e usos específicos admissíveis em cada uma delas. As unidades de conservação merecem um sistema de publicização dos direitos a ela inerentes, a fim de prevenir degradações ambientais. Na pós-modernidade, na era da informação e da informática, em que a informação precisa e rápida é sinônimo de poder, a intensificação da proteção ambiental dependerá, também, de um sistema capaz de fornecer as informações necessárias à proteção ambiental, de forma segura, fidedigna, eficiente, rápida e, ainda, colorida pela autenticidade e fé pública da informação, em resumo, com segurança jurídica. Este sistema de informações já existe. Trata- se do Registro de Imóveis que, através dele, é plenamente possível a obtenção de informações 144 autênticas e seguras, inclusive acerca da existência de restrições ambientais sobre determinados imóveis, bem como sobre os efeitos que tais restrições ambientais geram. O Registro de Imóveis, nesta senda, recepcionará as restrições ambientais e as averbará na matrícula do imóvel objeto da restrição. A averbação das restrições ambientais na matrícula do imóvel traz inúmeros benefícios aos interessados no imóvel, evita prejuízos futuros e propicia a paz social. Além disso, as informações estariam concentradas em um só órgão, que disponibilizaria as informações a qualquer cidadão, mediante a expedição de uma simples certidão. A adoção pelo Brasil de um sistema de publicização de fatos, atos, direitos e restrições ambientais através do Registro de Imóveis, semelhante ao sistema registral espanhol, levando a conhecimento de terceiros interessados a atual e real situação jurídica e ambiental do imóvel, é medida urgente e importante na proteção ambiental. A publicidade das restrições ambientais, através da averbação no Registro de Imóveis competente, é medida de extrema utilidade, devido à segurança proporcionada, à fé pública inerente ao Registro de Imóveis, à facilidade de acesso às informações e à diminuição de custos para obtenção dessas informações. A publicidade das restrições ambientais auxiliaria na fiscalização do Poder Público, prevenindo litígios e fazendo prova pré- constituída de conhecimento da restrição ambiental pelo proprietário do imóvel. Com todos estes atributos, o Registro de Imóveis poderá ser considerado um instrumento de publicidade na proteção ambiental. 145 REFERÊNCIAS ALBUQUERQUE, Ronaldo Gatti de. Constituição e codificação: a dinâmica atual do binômio. In: MARTINS-COSTA, Judith (Org.). A Reconstrução do Direito Privado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. ALMEIDA JÚNIOR, João Mendes de. Órgãos da fé pública. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1963. ALPA, Guido. Istituzioni di diritto privato: problemi. Torino: Utet, 2002. ANTUNES, Paulo de Bessa. Direito ambiental. 6. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002. ARENDT, Hannah. A condição humana. 11. ed. Tradução de Roberto Raposo. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010. ARISTÓTELES. Política. Tradução de Torrieri Guimarães. São Paulo: Martin Claret, 2002. 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